sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A AFETAÇÃO DAS INCORPORADORAS IMOBILIÁRIAS - LEI Nº. 10.931 / 2004

Trata-se de importante mecanismo que, independente de intervenção judicial, possibilita aos adquirentes substituir o incorporador na administração do negócio e prosseguir a obra.

Sumário:1. Introdução. 2. Breve nota sobre a teoria da afetação e sua aplicação às incorporações imobiliárias. 3. A estrutura normativa do regime de afetação das incorporações. 3.1. Definição legal, constituição do patrimônio separado e seus efeitos. 3.2. Procedimentos em caso de falência da empresa incorporadora. 4. Aspectos tributários. 5. Nota crítica: deficiências, excessos e incongruências. 6. Conclusão.


1. Introdução

            A Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, introduz no direito positivo brasileiro um moderno mecanismo de segregação de riscos, aplicável às incorporações imobiliárias, que constitui, sem dúvida, atividade de extraordinário alcance econômico e social.
            A lei resulta do Projeto de Lei nº 2.109/99, que reproduz anteprojeto originário do Instituto dos Advogados Brasileiros, ao qual foi anexado o Projeto de Lei do Poder Executivo nº 3.065/2004, este reunindo diversas matérias relativas aos mercados de capitais, financeiro e imobiliário.
            O regime de afetação preenche importante lacuna da Lei das Incorporações, pois, apesar de essa lei conter mecanismos de proteção contratual, não contemplava meios de proteção patrimonial, circunstância que poderia deixar expostos a risco os adquirentes e demais credores do empreendimento, em caso de frustração do empreendimento, inclusive em razão de falência do incorporador.
            Trata-se de importante mecanismo de resolução extrajudicial de problemas decorrentes do desequilíbrio econômico-financeiro da incorporação, na medida em que, independente de intervenção judicial, possibilita aos adquirentes substituir o incorporador na administração do negócio e prosseguir a obra.
            Caso venha a ocorrer a falência da incorporadora, os créditos vinculados à incorporação afetada não estarão sujeitos a habilitação no Juízo da falência, devendo ser satisfeitos com as receitas da própria incorporação, cuja administração passa a ser conduzida pela comissão de representantes dos adquirentes, com autonomia em relação ao processo falimentar. Essa autonomia é ratificada pela recente Lei n° 11.101/2005, que regulamenta a Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário, ao estabelecer, no inciso IX do art. 119, que as atividades relacionadas a patrimônios de afetação prosseguirão independente do processo de falência até que cumpram sua finalidade.
            A nova estruturação atende às atuais necessidades do mercado e da sociedade; de uma parte, acrescenta à atividade da incorporação novos elementos, que poderão revitalizar a credibilidade do negócio perante a clientela; de outra parte, do ponto de vista jurídico-empresarial, ajusta-se à atual tendência da teoria contratual, assentada nos princípios da boa-fé e da equidade, ao dar maior nitidez ao negócio, com mecanismos de controle mais eficazes e novos elementos de equilíbrio do contrato.


2. Breve nota sobre a teoria da afetação e sua aplicação às incorporações imobiliárias –

            A afetação encontra justificativa na necessidade de se privilegiar determinadas atividades merecedoras de tutela especial.
            Francesco Messineo assinala que a razão de ser da segregação patrimonial está ligada à idéia de "1) atribuir ou reservar certos bens a uma determinada exclusiva destinação, de maneira que fique excluída outra destinação, mesmo que não possa ser alcançada; 2) ou então reservar a um certo grupo de credores um determinado núcleo de bens, sobre os quais possam eles satisfazer-se com exclusão dos outros, com a conseqüência de que os outros credores fiquem excluídos e de que, sobre os outros bens, tal grupo de credores não pode alegar direitos ou que, ao contrário, este grupo pode satisfazer-se só subsidiariamente, e se necessário, sobre os restantes bens do sujeito (devedor)" [01]
            A afetação é, de fato, como registra Caio Mário da Silva Pereira, engenhosa concepção pela qual determinados bens passam a vincular-se a um fim determinado, são gravados com um encargo ou são sujeitos a uma restrição, de modo que, "separados do patrimônio e afetados a um fim, são tratados como bens independentes do patrimônio geral do indivíduo." [02]
            Temos defendido a aplicação da teoria da afetação para uma série de negócios típicos da sociedade contemporânea, sobretudo aqueles em que se promove a captação de recursos do público para contratos de investimento coletivo, como são os casos dos fundos de investimento, das incorporações imobiliárias e do fornecimento de capital para criação e comercialização de gado, entre outros, chamando a atenção para a necessidade de expressa previsão legal para a afetação de bens e direitos, salientando que "a formação desses patrimônios é submetida ao princípio do ‘numerus clausus’. Assim, para resguardo dos interesses de terceiros, a lei deve prever expressamente os meios de publicidade da constituição dos patrimônios de afetação." [03]
            Esses princípios estão presentes no trust e constituem elemento essencial dessa figura jurídica, operando como mecanismo de extrema utilidade para realização de inúmeros negócios e em múltiplas situações, como, por exemplo, os investment trust. Como se sabe, por efeito da afetação, os bens que integram a carteira dos fundos de investimento não se confundem nem se comunicam com o ativo da instituição administradora do fundo, de modo que a eventual falência ou liquidação extrajudicial dessa instituição não afeta os direitos dos titulares de quotas do fundo; vindo a administradora a falir, os investidores a substituem, prosseguindo os negócios do fundo com outra administradora. [04]
            A atividade de incorporação imobiliária é naturalmente vocacionada para a afetação, seja em razão da relativa autonomia do empreendimento, considerado de per si, seja porque o custeio da obra é, em parte, suportado pelos próprios adquirentes, com os recursos provenientes das prestações pagas durante a obra, ou por financiamento, com recursos oriundos do Sistema Financeiro da Habitação-SFH.
            Dados esses princípios, fica claro que a segregação patrimonial na incorporação imobiliária se ajusta com perfeição à teoria da afetação.
            Observe-se a estrutura do negócio incorporativo, traçada a partir do art. 28 da Lei 4.591/64.
            De acordo com o art. 32 da Lei das Incorporações, o incorporador arquiva no Registro de Imóveis um dossiê composto de documentos que definem por completo o objeto de cada negócio incorporativo e seu programa financeiro, como que atribuindo-lhe identidade, que o distingue dos demais empreendimentos e o torna único, inconfundível. No conjunto de elementos desse dossiê, é possível vislumbrar uma certa autonomia material e financeira da incorporação.
            O Memorial de Incorporação fixa o contorno e os elementos do patrimônio que será objeto de afetação. Compõem esse dossiê o projeto de construção, a descrição e caracterização das futuras unidades imobiliárias autônomas, a discriminação das frações ideais, o orçamento da obra, além de outras peças enumeradas pelo art. 32 da Lei n° 4.591/64, tudo isso compondo um conjunto que atribui identidade própria a cada incorporação e demonstra sua capacidade de geração de receita suficiente para a completa realização da obra, com autonomia em relação a outras fontes de receita da empresa incorporadora.
            A existência de condições de auto-sustentação financeira viabiliza a segregação patrimonial de cada incorporação, de modo que ela se desenvolva com suas próprias forças, com relativa autonomia e, assim, a segregação afasta o risco de pressões decorrentes de compromissos da empresa incorporadora, estranhos ao orçamento da obra do patrimônio segregado.


3. A estrutura normativa do regime de afetação das incorporações –

            Considerados esses pressupostos, a Lei n° 10.931/2004 introduz os arts. 31A a 31F à Lei n° 4.591/64, permitindo a segregação do patrimônio vinculado a cada incorporação imobiliária. Para esse fim, faculta a criação de um regime de vinculação de receitas visando a completa execução da obra e dá poderes aos adquirentes para, em caso de paralisação da obra, recuperação da empresa incorporadora ou falência, prosseguir a obra com autonomia, independente de intervenção do Judiciário.
            Para assegurar a eficácia do sistema, a lei torna incomunicável o acervo da incorporação afetada, protegendo-o, conseqüentemente, contra os riscos empresariais da incorporadora. O controle do negócio se realiza mediante balancetes e relatórios trimestrais, demonstrando a movimentação financeira do empreendimento e o andamento da obra, em cotejo com a programação financeira correspondente. Haverá uma contabilidade própria para cada incorporação, destacada da contabilidade da incorporadora. A movimentação dos recursos é feita em conta-corrente bancária específica.
            Em caso de falência da empresa incorporadora, a Comissão de Representantes dos adquirentes assumirá a administração da incorporação e prosseguirá a obra independente dos efeitos da falência, recolhendo à massa falida a eventual sobra, se houver, depois de concluída a obra.
            Trata-se de mecanismo extrajudicial de composição de interesses, dotado de especial eficácia e extraordinário efeito social e econômico, na medida em que privilegia a continuidade da atividade econômica, assegurando a circulação de riquezas, a manutenção da fonte de renda dos trabalhadores e o cumprimento da função social do crédito.

            3.1. Definição legal, constituição do patrimônio separado e seus efeitos –

            Dispõe o art. 31A que, a critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, "pelo qual o terreno e as acessões objeto da incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes."
            A afetação se efetiva mediante "termo de afetação", que deverá ser averbado no Registro de Imóveis. A incorporação poderá ser afetada a qualquer momento, mesmo depois de iniciadas as vendas, e nesse caso o "termo" deverá ser firmado pelo incorporador e pelos adquirentes.
            Uma vez afetado, o patrimônio da incorporação é considerado incomunicável em relação aos demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral da empresa incorporadora, bem como em relação aos demais patrimônios de afetação que ela tiver constituído. Em conseqüência, cada incorporação-patrimônio-de-afetação só responde pelas dívidas e obrigações a ela vinculadas.
            Cada incorporação afetada tem ativo e passivo próprios, incumbindo ao incorporador diligenciar a obtenção dos recursos necessários ao pagamento do passivo de cada patrimônio de afetação. A segregação patrimonial, entretanto, não exclui o acervo da incorporação do patrimônio geral do incorporador, nem limita sua responsabilidade pela incorporação, de modo que ele é que é o responsável pela obtenção dos recursos para conclusão da obra e entrega das unidades, mesmo retirando-os do seu patrimônio geral.
            A afetação não atinge o direito subjetivo do incorporador, que, sendo titular do terreno e das acessões, continua investido dos poderes de livre disponibilidade dos bens integrantes da incorporação. A afetação, sendo um encargo que vincula esses bens a uma determinada destinação (conclusão da obra e entrega das unidades aos adquirentes), apenas condiciona o exercício dos poderes do titular da incorporação, impedindo que ele perpetre atos de desvio de destinação. Por isso mesmo, os parágrafos 3° ao 8° do art. 31A autorizam o incorporador a constituir garantias reais sobre os bens e direitos da incorporação, bem como a ceder os créditos oriundos da comercialização, seja em termos plenos ou fiduciários. Mas, coerentemente com o regime de vinculação de receitas visando a consecução da incorporação, esses dispositivos deixam claro que (i) a constituição de garantias reais só é admitida em operação de crédito cujo produto seja integralmente destinado à realização da incorporação, (ii) o produto da cessão de créditos, plena ou fiduciária, passa a integrar o patrimônio de afetação. Pode o incorporador, entretanto, apropriar-se "dos recursos financeiros que excederem a importância necessária à conclusão da obra (art. 44), considerando-se os valores a receber até sua conclusão e, bem assim, os recursos necessários à quitação de financiamento para a construção, se houver" (§ 8° do art. 31A).
            O incorporador tem, assim, assegurado seu direito subjetivo de titular do negócio, mas a lei lhe impõe determinadas obrigações correspectivas. Assim, a despeito de poder ceder até mesmo a totalidade dos créditos oriundos da comercialização, ele é obrigado a "preservar os recursos necessários à conclusão da obra", "manter apartados os bens e direitos objeto de cada incorporação", manter e movimentar os recursos financeiros em conta de depósito específica para a incorporação afetada, manter contabilidade separada e fornecer à Comissão de Representantes, trimestralmente, balancetes e demonstrativos do estado da obra (art. 31D).
            O fato de o incorporador ceder seus créditos ou constituir garantias sobre os bens e direitos da incorporação não importa em transferência para o credor de nenhuma das obrigações ou responsabilidades do cedente, do incorporador ou do construtor.
            O controle e a fiscalização do desenvolvimento da incorporação afetada será feito pela Comissão de Representantes dos adquirentes, a partir dos relatórios trimestrais que receberá do incorporador, bem como pela instituição financiadora do empreendimento, mediante mecanismos livremente pactuados no contrato de financiamento; para esse fim, a lei lhes faculta, às suas expensas, a realização de auditoria na incorporação (art. 31C), se a situação do empreendimento a justificar.
            Concluída a obra, entregues as unidades aos adquirentes e paga a dívida decorrente do financiamento, se houver, a afetação se extingue. As hipóteses são cumulativas; assim, se a obra foi concluída e entregues as unidades até então vendidas, mas ainda há saldo devedor do financiamento, as unidades restantes continuam afetadas até que se complete o pagamento do saldo devedor. Dá-se também a extinção da afetação em duas outras hipóteses, a saber: (i) em caso de denúncia da incorporação, depois de restituídas as quantias aos adquirentes, e (ii) em caso de liquidação da incorporação, deliberada pela assembléia geral.

            3.2. Procedimentos em caso de falência –

            Em caso de falência da empresa incorporadora, ou insolvência civil do incorporador, se pessoa física, os efeitos da quebra não atingem os patrimônios de afetação, dispondo a lei, expressamente, que o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da afetação não podem ser arrecadados à massa falida (art. 31F).
            O texto legal (art. 31F) assegura, assim, as condições jurídico-patrimoniais necessárias à continuidade da incorporação e, afinal, apropriação das unidades por parte dos adquirentes. Fica claro que estão excluídos dos efeitos da quebra não só o terreno e acessões, mas, também, os direitos creditórios representados pelo saldo do preço dos contratos de venda das unidades, e essa exclusão é essencial para cumprimento da destinação definida no art. 31A, pois o montante correspondente às prestações do saldo do preço é que irá sustentar a conclusão da obra.
            Dispõe a lei que nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da Comissão de Representantes, ou, na sua falta, de um sexto dos adquirentes ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral para, (i) por maioria simples, ratificar o mandado da Comissão ou eleger novos membros, (ii) por 2/3 dos adquirentes, em primeira convocação, ou por maioria absoluta, instituir o "condomínio da construção" e (iii) por esse mesmo quorum, deliberar pela continuação da obra ou pela liquidação do patrimônio.
            A Comissão de Representantes está investida de mandato legal para adotar todas as providências necessárias à continuação da obra ou à liquidação do patrimônio, notadamente para vender as unidades do "estoque" do incorporador ou, caso decidam pela liquidação, vender a totalidade do acervo.
            A venda será feita mediante leilão extrajudicial, segundo o procedimento estabelecido pelo art. 63 da Lei n° 4.591/64.
            Aspecto de especial relevância nessa legislação é a rigorosa observância da ordem legal de preferências dos credores, de modo tal que o produto do leilão será destinado em primeiro lugar ao pagamento dos créditos trabalhistas, previdenciários e fiscais vinculados ao empreendimento, só sendo distribuído aos demais credores posteriormente; havendo saldo, a quantia correspondente será arrecadada à massa falida.
            As receitas da incorporação afetada destinam-se ao pagamento das suas próprias obrigações e dívidas, vedado o desvio para qualquer outra finalidade. Assim sendo, a lei deixa claro que as dívidas trabalhistas, previdenciárias e fiscais a serem satisfeitas com o produto dos pagamentos feitos pelos adquirentes, bem como com o produto do leilão, são somente aquelas vinculadas ao empreendimento, ficando "excluídas da responsabilidade dos adquirentes as obrigações relativas, de maneira direta ou indireta, ao imposto de renda e à contribuição social sobre o lucro, devidas pela pessoa jurídica do incorporador, inclusive por equiparação, bem como as obrigações oriundas de outras atividades do incorporador não relacionadas com as incorporações objeto de afetação" (§ 20 do art. 31F).
            Além de não alterar o regime legal de preferências creditícias, a afetação patrimonial dá maior liquidez aos créditos vinculados à incorporação, na medida em que as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são mantidas apartadas para satisfação dos créditos a ele vinculados e não podem ser desviados para outros patrimônios de afetação, ou para o patrimônio geral do incorporador. Disso decorre que, havendo uma reserva patrimonial para cada grupo de credores, eles receberão diretamente da Comissão de Representantes, que passará a administrar a incorporação, estando esses credores, portanto, livres do processo de falência.
            Caso decidam pela continuação da obra, "os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato de financiamento da obra, se houver" (§ 11 do art. 31F). Para esse fim, a instituição financiadora deverá promover o desdobramento do financiamento de modo a atribuí-lo aos adquirentes; a lei não dispõe sobre o critério de rateio, mas parece razoável que o financiamento seja desdobrado na proporção dos coeficientes de construção das unidades; se ainda houver saldo do financiamento, relativo a etapas da obra ainda não executadas, a liberação deverá ser feita em nome dos adquirentes, proporção que tiver sido feito o desdobramento; para simplificação operacional, a liberação poderá ser feita mediante depósito na conta-corrente bancária que vier a ser aberta em nome do condomínio da construção, que será movimentada pela Comissão de Representantes, sendo certo, todavia, que os valores deverão ser lançados a débito de cada adquirente, na proporção que lhes couber.
            O saldo do preço de compra das unidades deverá ser pago à Comissão de Representantes, permanecendo afetados os valores correspondentes, até o limite necessário à conclusão da obra. Para assegurar os meios administrativos e financeiros à conclusão da obra, a lei confere à Comissão de Representantes poderes para receber as prestações vincendas dos contratos de venda de unidades, firmar recibo e dar quitação, devendo aplicar as quantias recebidas na conclusão da obra. Depois de concluída a obra e averbada a construção no Registro de Imóveis, a Comissão de Representantes deverá arrecadar à massa o saldo que porventura restar, relativo as parcelas do preço de venda das unidades. Se o produto das vendas não for suficiente para concluir a obra e os adquirentes tiverem completado com pagamentos além do preço de aquisição, deverão habilitar essa diferença como crédito perante a massa falida.
            A par da extraordinária eficácia da afetação, para garantia dos credores, a lei cuidou de simplificar procedimentos visando facilitar ao máximo a outorga dos direitos aos adquirentes. Nesse sentido, o § 3° do art. 31F investe a Comissão de Representantes de poderes irrevogáveis para que outorgar aos adquirentes o contrato definitivo a que estiver obrigado o incorporador, livrando-os do encargo de ir buscar em Juízo, no processo de falência, alvará para obtenção da escritura "definitiva". A nova lei simplifica, também, os procedimentos de venda do terreno e acessões a terceiros, caso a assembléia geral dos adquirentes resolva liquidar o patrimônio de afetação; nesse sentido, uma vez aprovada, na assembléia geral, a venda, o preço e as condições de pagamento, a Comissão de Representantes fica investida de poderes para firmar, em nome de todos os adquirentes, a escritura de alienação; o produto da venda será destinado ao pagamento das dívidas da incorporação e o saldo será distribuído entre os adquirentes, depositando-se em Juízo os valores pertencentes aos condôminos não localizados. 
4. Aspectos tributários –

            Sob o aspecto tributário, a afetação do patrimônio da incorporação não altera a responsabilidade tributária da empresa incorporadora ou o sistema de apuração do lucro tributável. A lei, entretanto, criou um regime especial, opcional, denominado "regime especial tributário do patrimônio de afetação". Assim, poderá o incorporador manter a incorporação afetada subordinada ao regime do lucro real ou adotar o regime especial da Lei n° 10.931/2004.
            Pelo regime especial, a alíquota é de 7% da receita mensal recebida, e esse pagamento corresponderá ao pagamento unificado dos seguintes impostos e contribuições:
            I – IRPJ – Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – 2,2%;
            II – PPIS/PASEP – Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – 0,75%;
            III – CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – 1,15%;
            IV – Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – 3%.
            Os recolhimentos devem ser feitos a partir do mês da opção, até o 10° dia do mês subseqüente àquele em que houver sido auferida a receita. É admitida a compensação, mas somente por espécie e com o montante devido no mesmo período de apuração, até o limite desse montante. Pelo regime especial, a incorporação afetada terá um número de inscrição próprio no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ, bem como código de arrecadação próprio. Os débitos do regime especial não poderão ser parcelados.
            Se o incorporador não optar pelo regime especial, continuarão sendo adotados os mesmos procedimentos de apuração de resultados e oferecimento à tributação, apurando-se o resultado de cada incorporação e, após, reunindo-se esses resultados no balanço geral do incorporador. Para esse fim, procede-se à reunião dos resultados de cada uma das incorporações da empresa, somados aos resultados não-operacionais e às participações, apurando-se o lucro líquido, ajustando-o pelas adições, exclusões ou compensações, donde de apura o lucro real, que constitui a base de cálculo do imposto de renda da empresa incorporadora (Regulamento do Imposto de Renda, arts. 219, 246, 248 e 277).
5. Nota crítica: deficiências, excessos e incongruências –

            Não obstante o grande aperfeiçoamento que a nova lei introduz no sistema de proteção do adquirente, preservando de forma eficaz seus direitos patrimoniais, restam ainda algumas deficiências que prejudicam o pleno cumprimento da função social desse importante mecanismo.
            Referimo-nos, em primeiro lugar, ao art. 31A, pelo qual a garantia da afetação será prestada por opção do incorporador. Trata-se de caso esdrúxulo, em que é o devedor quem decide se prestará ou não prestará garantia do cumprimento de suas obrigações. O dispositivo precisa ser modificado para tornar compulsória a afetação patrimonial, até porque o que está em jogo é a proteção da economia popular, e não a conveniência do incorporador.
            De fato, a atividade da incorporação imobiliária se caracteriza pela captação de recursos do público e sua aplicação em determinada obra; ao realizar oferta pública de imóveis a construir o incorporador está lidando com a economia popular; esses elementos, por si sós, são suficientes para configurar uma situação merecedora de tutela especial, e um dos propósitos basilares da afetação é disciplinar essa modalidade de captação de recursos e preservar o patrimônio formado com recursos dos adquirentes e demais credores. Esse fato, por si só, recomenda que toda e qualquer incorporação deve ser qualificada como um patrimônio de afetação, independente de qualquer manifestação do incorporador, bastando para tal o registro do Memorial de Incorporação.
            Nada justifica que a afetação seja manejada a critério do incorporador, pois a proteção da economia popular é matéria de interesse público que, a exemplo do que sucede no âmbito das relações de consumo, decorre do "reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo" (Lei n° 8.078/90, art. 4°, I), daí a necessidade de intervenção legislativa "para compensar eventual desvantagem contratual e garantir a segurança jurídica em favor do contratante mais fraco, impondo, para tal, regime jurídico próprio para determinadas atividades."
            Ao deixar a afetação a critério do incorporador, a Lei 10.931/04 concede vantagem exagerada ao incorporador, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos adquirentes e contrapondo-se ao fundamento axiológico da norma, expresso na concepção original do anteprojeto do Instituto dos Advogados Brasileiros e em quatro Projetos de Lei apresentados na Câmara Federal nesse mesmo sentido, todos eles, unissonamente, caracterizando a incorporação imobiliária como um patrimônio de afetação.
            Outro aspecto que merece revisão é o regime tributário.
            Com efeito, os arts. 1° a 11 da Lei n° 10.931/2004 instituem um regime tributário mais oneroso do que o regime do lucro real e do que o do lucro presumido, circunstância que desestimula sua adoção pelo incorporador, prejudicando, em última análise, os adquirentes. É que, na medida em que pode importar em aumento, injustificado, da carga tributária, e sendo a afetação uma opção do incorporador, este preferirá manter-se no sistema tradicional da incorporação, no qual não existe nenhuma proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes. Para afastar esse obstáculo, propõe-se que o regime especial tributário instituído pelos arts. 1° a 11 da Lei n° 10.931/2004 seja estruturado de acordo com os critérios do regime do lucro presumido.
            Nesse contexto ressalta um aspecto de especial relevância, na medida em que imputa encargos absolutamente injustificáveis aos adquirentes.
            Com efeito, dispõe o art. 9° da Lei n° 10.931/2004 que, em caso de falência da empresa incorporadora, "perde eficácia a deliberação pela continuação da obra (...), bem como os efeitos do regime de afetação instituídos por esta lei, caso não se verifique o pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas, vinculadas ao respectivo patrimônio de afetação (...), as quais deverão ser pagas pelos adquirentes em até um ano daquela deliberação, ou até a data da concessão do habite-se, se este ocorrer em prazo inferior."
            Nos termos em que está redigido, o art. 9° viola, a um só tempo, os princípios da isonomia, da defesa do consumidor e do devido processo legal.
            Em primeiro lugar, é absolutamente dispensável a transferência, para os adquirentes, da obrigação de pagar os encargos vinculados ao patrimônio de afetação, pois o § 11 do art. 31F da Lei 4.591/64, com a redação dada pelo art. 53 da Lei 10.931/2004, já contempla sua sub-rogação nos direitos e obrigações da incorporadora, obrigando-os, portanto, ao pagamento dos débitos fiscais, previdenciários e trabalhistas vinculados à respectiva incorporação.
            Considerando que um dos pressupostos dessa segregação patrimonial é a vulnerabilidade econômica e técnica dos adquirentes, a lei deveria conceder aos adquirentes condições de pagamento mais favoráveis do que aquelas que normalmente são asseguradas às empresas, em geral. Esta á uma das hipóteses em que o princípio constitucional da isonomia se realiza pela desigualdade de tratamento, pelo qual se dá tratamento privilegiado para as categorias de pessoas que se encontrem em situação de desvantagem econômica ou técnica, como é o caso dos adquirentes de imóveis em construção, diante da caótica situação decorrente da falência da incorporadora.
            Além disso, o art. 9° suprime direitos anteriormente assegurados aos adquirentes pela Lei n° 4.591/64, pela qual já era assegurado o prosseguimento da obra sem necessidade de resgate imediato dos débitos pendentes. A restrição ao exercício dos direitos dos adquirentes é inadmissível, mesmo se se considerar que eles sejam devedores, ainda que sejam devedores inadimplentes e mesmo que se mantenham na condição de devedores inadimplentes, pois, como se sabe, a pendência de débito, mesmo em execução, não priva a pessoa do uso e da fruição de seus bens ou direitos, mesmo que estes estejam submetidos a constrição judicial.
            A par da arbitrariedade, a proibição é desnecessária, pois os débitos em questão estão garantidos pelo próprio patrimônio de afetação constituído pelo acervo da incorporação. De fato, nos precisos termos da definição legal, é o ativo do patrimônio de afetação que responde pelas obrigações contraídas para cumprimento da sua finalidade, e só ele responde por essas obrigações (ressalvada, obviamente, a responsabilidade do incorporador pelos prejuízos que causar). De outra parte, não há que se ter receio de que os adquirentes se esquivem do pagamento, subtraiam bens do ativo do patrimônio de afetação ou os transfiram para outro local, pois esse ativo é constituído de pedra e cal, fixo, inarredável. Além dessa estabilidade material, esse ativo é financeiramente valorizável e o prosseguimento da obra só tende a valorizá-lo ainda mais, aumentando a garantia até mesmo dos credores a que se refere o art. 9° da Lei 10.931/2004.
            De outra parte, a despeito de constituir uma tutela especial que visa compensar a vulnerabilidade dos adquirentes, a afetação protege, igualmente, os demais credores do empreendimento, entre eles os trabalhadores, a previdência e o fisco. Assim sendo, além de ser danoso aos interesses de todos os credores vinculados ao empreendimento, o art. 9° é particularmente desastroso para os trabalhadores.
            É que, independentemente de afetação, os compradores continuam a ter direito de prosseguir a obra, mas se eventualmente vier a ser extinta a afetação, como prevê o art. 9° , os trabalhadores perdem o direito de receber seus créditos diretamente do patrimônio de afetação, sendo obrigados a habilitar seus créditos no processo de falência, devendo aguardar seu encerramento para recebê-los, o que só ocorrerá após a realização do ativo da massa falida.
            A tudo isso acresce que essa proibição jamais poderia ser cogitada, pois se contrapõe à própria finalidade da norma legal, que é facilitar a liberação para que a obra prossiga sem obstáculos, e não bloqueá-la, como se depreende desse art. 9°.
            Por todas essas razões, entendemos que deve ser revogado o art. 9° da Lei n° 10.931/2004.
            Há, de outra parte, excessos em alguns mecanismos de controle, que podem contribuir para emperrar o funcionamento da incorporação e devem, portanto, ser afastados.
            São os casos da exigência de anuência dos adquirentes no "termo de afetação", de apresentação de balancetes e de auditoria.
            A exigência de anuência dos adquirentes é dispensável e pode até tornar inexeqüível a afetação.
            Com efeito, a afetação é uma garantia em favor dos credores, entre eles os adquirentes, que são beneficiários de uma tutela especial, de modo que a tomada da sua assinatura no "termo" constitui ato burocrático absolutamente estéril, que pode, até, prejudicar a comunidade de adquirentes, caso algum deles, por qualquer razão, se recuse a firmar o "termo."
            Só se justificaria essa anuência em caso de algum ato que pudesse prejudicar os adquirentes, mas parece paradoxal exigir sua assinatura para constituir uma garantia em favor deles mesmos, que não lhes impõe nenhum encargo a não ser em seu próprio benefício, qual seja, o encargo de assumir a administração da incorporação e dar prosseguimento à obra nos casos que a lei especifica.
            Não se pode esquecer que a afetação importa numa restrição ao patrimônio separado do incorporador, e não ao patrimônio dos adquirentes, sendo certo que essa restrição é instituída exatamente para assegurar os direitos destes últimos.
            Na prática já começam a surgir dificuldades para a tomada de assinaturas de adquirentes, podendo até ocorrer grande demora nessa diligência e, até, a recusa de algum deles, por qualquer razão.
            A exigência é uma distorção em relação à garantia dos adquirentes e pode dar causa a graves prejuízos para estes. De fato, a recusa de algum adquirente poderá levar a comunidade de adquirentes a sofrer prejuízos de difícil ou impossível reparação. A lei é omissa quanto às conseqüências dessa falta de anuência, circunstância que pode gerar dúvidas e incertezas dos operadores. Nesse caso, salvo melhor juízo, o oficial do Registro de Imóveis poderá suscitar dúvida ao juiz competente; alternativamente, o incorporador ou a comissão de representantes poderia, diante desse fato, requerer suprimento judicial que assegurasse a averbação do "termo" mesmo sem assinatura de todos os adquirentes. Em suma, considerando que a afetação é garantia em favor dos adquirentes, a exigência de anuência poderia causar mais prejuízos à comunidade de adquirentes do que a dispensa, razão pela qual sugerimos seja reformulada a redação do art. 31B da Lei 4.591/64, substituindo-se a exigência de "assinatura" dos promitentes compradores pela sua "cientificação." [05]
            A apresentação de balancetes trimestrais e a auditoria são também exigências repetitivas e excessivas, que tolhem a atuação do incorporador sem trazer nada em benefício dos adquirentes.
            De fato, o incorporador é obrigado a apresentar, trimestralmente, um demonstrativo físico e financeiro do empreendimento, no qual são considerados o estado da obra e sua correspondência com os recursos captados e com a programação financeira do negócio. Essa demonstração atende as necessidades de controle dos adquirentes, sendo dispensável o balancete. Parece ter havido certo exagero do legislador nesse aspecto. De fato, aqueles que confiaram seus recursos ao empresário da incorporação devem ter assegurado o direito de fiscalizar e acompanhar a incorporação, e é exatamente nesse sentido que a lei obriga o incorporador a apresentar-lhes trimestralmente um relatório do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado. Se tais informações não forem suficientes para controle da aplicação dos recursos, aí, sim, seria razoável a busca de outros documentos e novas informações que complementassem ou esclarecessem aspectos que, no demonstrativo trimestral do estado da obra, tenham permanecido obscuros. Parece razoável que, nesses casos, a lei preveja a busca de tais dados caso o incorporador, notificado, não os tenha entregue tempestivamente.


6. Conclusão –

            Em suma, a afetação das incorporações imobiliárias constitui garantia de incomparável eficácia em favor dos credores vinculados especificamente a cada negócio incorporativo, beneficiando em especial os adquirentes, na medida em que lhes assegura a preservação das suas aplicações financeiras e lhes outorga o direito de assumir a administração do negócio e prosseguir a obra com autonomia em relação a eventual falência da empresa incorporadora, prerrogativa essa que veio a ser reafirmada pelo art. 111 da Lei de Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário (Lei n° 11.101/2005).
            A despeito de a Lei n° 10.931/2004 ter dotado o direito positivo brasileiro de nova e importante garantia, desviou-se do fundamento axiológico que justifica a afetação patrimonial nas incorporações, atribuindo-a como opção do empresário e não como garantia natural daqueles que a ele confiaram suas economias. Urge, portanto, ajustar a lei ao propósito de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes, tornando compulsória a aplicação da afetação a todas as incorporações, única forma de assegurar, na hipótese, a plena realização da função social do contrato e da propriedade.

Autor: Melhim Namem Chalhub
Fonte: Revista Jus Naviganti

Um comentário:

  1. Parabéns pelo blog. Conteúdos muito interessantes...mais um leitor assíduo

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