Tem-se tornado cada vez mais rotineira a oferta pública de bem imóvel por meio da alienação de participação em Sociedades em Conta de Participação – SCP´s, concebidas para o desenvolvimento de empreendimentos imobiliários.
O tipo societário em questão não é nenhuma novidade legislativa, posto já estar concebido em nosso ordenamento desde a edição do Código Comercial de 1850. Sua previsão foi mantida no Código Civil vigente, cujo art. 911 dispõe que "na sociedade em conta de participação, a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados correspondentes".
Fábio Ulhoa Coelho esclarece que "a conta de participação se constitui da seguinte forma: um empreendedor (sócio ostensivo) associa-se a investidores (os sócios participantes), para a exploração de uma atividade econômica. O primeiro realiza todos os negócios ligados à atividade, em seu próprio nome, respondendo por eles de forma pessoal e ilimitada". [01]
Em que pese a Conta de Participação estar prevista como modalidade societária, trata-se, na verdade, de um contrato de investimento, vez que, como bem previsto na própria legislação aplicável, o negócio entabulado não confere nova personalidade jurídica à entidade criada e tampouco a SCP pode receber denominação social.
Trata-se, portanto, de uma modalidade contratual, em que investidores (sócios participantes) interessados no retorno (lucro) sobre negócios acerca dos quais não detêm qualquer expertise, se comprometem a efetuar aportes financeiros em favor de determinada atividade, a ser desenvolvida sob exclusiva responsabilidade do sócio ostensivo. Este último, detentor da tecnologia ou expertise envolvida no projeto, é quem negocia, contrata, enfim, adota todos os atos necessários ao desenvolvimento do negócio.
Os sócios participantes jamais aparecem em qualquer negociação entabulada pelo sócio ostensivo, sendo certo que os terceiros sequer tomam ciência da existência da Conta em Participação. Aliás, como bem prevê o parágrafo único do art. 993 do Código Civil, "o sócio participante não pode tomar parte nas relações do sócio ostensivo com terceiros, sob pena de responder solidariamente com este pelas obrigações em que intervier".
Em que pese, no meu entendimento, a SCP não se constituir numa modalidade de sociedade comercial, a affectio societatis – vontade de união e proximidade pessoal – é elemento essencial para a sua constituição. A prova disso é que o art. 995 dispõe que, "salvo estipulação em contrário, o sócio ostensivo não pode admitir novo sócio sem o consentimento expresso dos demais". Eis, portanto, o primeiro impeditivo para que a participação em qualquer Sociedade em Conta de Participação seja ofertada publicamente.
Como mencionado anteriormente, algumas construtoras têm oferecido no mercado, como se fosse um bem de consumo, a participação em SCP’s criadas para o desenvolvimento de empreendimentos imobiliários, garantindo-se como retorno dos aportes realizados pelos adquirentes, a titularidade de uma ou mais das unidades imobiliárias geradas no futuro empreendimento. O ingresso na suposta Sociedade em Conta de Participação é, portanto, franqueado a todo e qualquer interessado, fato que, por si só, já desnatura o instituto, vez que inexistente a affectio societatis entre as partes envolvidas.
Outros elementos que desnaturam a caracterização de tal modalidade de negócio em Sociedade em Conta de Participação são (i) a natureza adesiva do contrato e (ii) a ausência de poder de fiscalização dos adquirentes sobre a gestão do sócio ostensivo.
Correto afirmar que este tipo de engenharia corresponde, na realidade, a uma incorporação mascarada, engendrada com o fito de eximir o construtor das responsabilidades, obrigações e custos previstos na Lei n. 4.591/64 (Lei de Incorporação). Do mesmo, corresponde a uma leviana tentativa de excluir as diversas garantias previstas no Código de Defesa do Consumidor em favor dos "quotistas" ou "sócios participantes".
Em operações de tal ordem, a jurisprudência já pacificou o entendimento de serem aplicáveis as normas do CDC em proteção aos supostos "sócios participantes", que nada mais são do que consumidores de imóveis na planta, em regime de camuflada incorporação. Nesse sentido já julgou o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme ementa abaixo transcrita:
"Rescisão contratual e pedido de restituição – Não há que se falar em anulação parcial do processo – O apelante assinou contrato de constituição de sociedade em conta de participação, sendo a ré sócia ostensiva para aquisição da casa própria e quer a restituição das quantias pagas em razão de problemas de gerenciamento da sócia ostensiva, que sequer comprou o lote de terreno – Não obstante o instrumento firmado pelas partes receba a denominação de ‘Contrato de Constituição de Sociedade em Conta de Participação’, patente que a relação jurídica subjacente representa uma verdadeira promessa de venda de imóvel mediante a oferta pública e recebimento antecipado de dividendos para entrega futura de bem imóvel – Ausência de affectio societatis – O contrato realmente é nulo, destinado a fraudar o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor e a jurisprudência desta Corte – As quantias pagas deverão ser devolvidas de uma só vez (...)". [02]
Importante dizer que não se está aqui atacando a figura salutar da Sociedade em Conta de Participação. Tal modalidade de contrato, sem sombra de dúvidas, perfaz-se um interessante veículo de investimento em mercados sobre os quais os investidores não detêm qualquer expertise, com a vantagem de não ocorrer a assunção dos indesejáveis riscos do negócio, que se limitam à perda (total ou parcial) do aporte financeiro realizado em caso de insucesso do projeto.
Muitos são os projetos desenvolvidos no mercado imobiliário por meio de Sociedades em Conta de Participação, entabuladas por investidores e construtores que nutrem a necessária affectio societatis e guardam o mínimo necessário de proximidade pessoal. Os contratos que regem tais negócios são discutidos em pé de igualdade pelas partes, em que cada uma delas tenta fazer impor seus desejos e previsões que entendam cabíveis. Aos sócios participantes, por sua vez, franqueia-se o controle da gestão do negócio a ser executada pelo sócio ostensivo. Enfim, não há nem de perto a chamada vulnerabilidade que justificaria a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
A jurisprudência já afastou a aplicação das normas do CDC em favor de sócio participante que se julgava consumidor, em demanda destinada à declaração de extinção de contrato de SCP firmado entre empresário experiente e determinada empresa incorporadora, com o fito de desenvolvimento de prédio de apartamentos. No caso em referência, assim decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:
"Infere-se dos autos que as partes constituíram sociedade em conta de participação, na qual a ré assumiu o papel de sócia ostensiva e o autor, de sócio oculto (ou sócio participante, na dicção do art. 191 do Código Civil). (...)
Não havia previsão contratual de que caberia aos sócios ocultos, ao final do empreendimento, cota ou fração ideal dos prédios, ou mesmo alguma unidade autônoma, como constou da r. sentença, o que, de fato, caracterizaria um desvirtuamento ou infração à Lei nº. 4.591/64, ‘buscando mascarar a relação jurídica existente entre as partes’ (...)
Ao contrário, pelo que se infere dos autos, o autor constitui sociedade com a empresa ré com o objetivo precípuo de obter lucro, fazendo da sociedade uma modalidade de investimento (...)". [03]
Como se vê, quando se trata de efetivo de contrato de investimento feito sob a modelagem de uma SPC, não se aplicam em favor dos sócios participantes as previsões e garantias do Código de Defesa do Consumidor. Caberá ao julgador a análise de cada caso concreto, sendo indícios de que se trata de uma incorporação disfarçada a presença dos seguintes elementos: (i) a natureza adesiva do contrato, (ii) o número de participantes da relação (a detonar a ocorrência de oferta pública na participação do suposto contrato de investimento), (iii) a previsão de conversão da participação do sócio participante em unidade(s) imobiliária(s) e não em pecúnia e (iv) a ausência de poderes dos sócios participantes no controle da gestão dos atos praticados pelo sócio ostensivo.
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Notas
Curso de Direito Comercial, vol. II. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 476.
TJ-SP, 8ª Câm. Direito Privado, Apel. 253.891.4/0-00, Rel. Des. Ribeiro da Silva, acórdão registrado sob n. 02230366, j. 11.03.2009, v.u., in www.tj.sp.gov.br.
TJ-SP, 3ª Câm. Direito Privado, Apel. 301.139-4/3-00, Rel. Des. Beretta da Silveira, acórdão registrado sob n. 02557622, j. 15.09.2009, v.u., in www.tj.sp.gov.br.
Autor: Hyltom Pinto de Castro FilhoAdvogado em São Paulo. Sócio Fundador da Castro Filho & Medeiros Advogados. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro de Extensão Universitária - CEU. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade SECOVI.
O tipo societário em questão não é nenhuma novidade legislativa, posto já estar concebido em nosso ordenamento desde a edição do Código Comercial de 1850. Sua previsão foi mantida no Código Civil vigente, cujo art. 911 dispõe que "na sociedade em conta de participação, a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados correspondentes".
Fábio Ulhoa Coelho esclarece que "a conta de participação se constitui da seguinte forma: um empreendedor (sócio ostensivo) associa-se a investidores (os sócios participantes), para a exploração de uma atividade econômica. O primeiro realiza todos os negócios ligados à atividade, em seu próprio nome, respondendo por eles de forma pessoal e ilimitada". [01]
Em que pese a Conta de Participação estar prevista como modalidade societária, trata-se, na verdade, de um contrato de investimento, vez que, como bem previsto na própria legislação aplicável, o negócio entabulado não confere nova personalidade jurídica à entidade criada e tampouco a SCP pode receber denominação social.
Trata-se, portanto, de uma modalidade contratual, em que investidores (sócios participantes) interessados no retorno (lucro) sobre negócios acerca dos quais não detêm qualquer expertise, se comprometem a efetuar aportes financeiros em favor de determinada atividade, a ser desenvolvida sob exclusiva responsabilidade do sócio ostensivo. Este último, detentor da tecnologia ou expertise envolvida no projeto, é quem negocia, contrata, enfim, adota todos os atos necessários ao desenvolvimento do negócio.
Os sócios participantes jamais aparecem em qualquer negociação entabulada pelo sócio ostensivo, sendo certo que os terceiros sequer tomam ciência da existência da Conta em Participação. Aliás, como bem prevê o parágrafo único do art. 993 do Código Civil, "o sócio participante não pode tomar parte nas relações do sócio ostensivo com terceiros, sob pena de responder solidariamente com este pelas obrigações em que intervier".
Em que pese, no meu entendimento, a SCP não se constituir numa modalidade de sociedade comercial, a affectio societatis – vontade de união e proximidade pessoal – é elemento essencial para a sua constituição. A prova disso é que o art. 995 dispõe que, "salvo estipulação em contrário, o sócio ostensivo não pode admitir novo sócio sem o consentimento expresso dos demais". Eis, portanto, o primeiro impeditivo para que a participação em qualquer Sociedade em Conta de Participação seja ofertada publicamente.
Como mencionado anteriormente, algumas construtoras têm oferecido no mercado, como se fosse um bem de consumo, a participação em SCP’s criadas para o desenvolvimento de empreendimentos imobiliários, garantindo-se como retorno dos aportes realizados pelos adquirentes, a titularidade de uma ou mais das unidades imobiliárias geradas no futuro empreendimento. O ingresso na suposta Sociedade em Conta de Participação é, portanto, franqueado a todo e qualquer interessado, fato que, por si só, já desnatura o instituto, vez que inexistente a affectio societatis entre as partes envolvidas.
Outros elementos que desnaturam a caracterização de tal modalidade de negócio em Sociedade em Conta de Participação são (i) a natureza adesiva do contrato e (ii) a ausência de poder de fiscalização dos adquirentes sobre a gestão do sócio ostensivo.
Correto afirmar que este tipo de engenharia corresponde, na realidade, a uma incorporação mascarada, engendrada com o fito de eximir o construtor das responsabilidades, obrigações e custos previstos na Lei n. 4.591/64 (Lei de Incorporação). Do mesmo, corresponde a uma leviana tentativa de excluir as diversas garantias previstas no Código de Defesa do Consumidor em favor dos "quotistas" ou "sócios participantes".
Em operações de tal ordem, a jurisprudência já pacificou o entendimento de serem aplicáveis as normas do CDC em proteção aos supostos "sócios participantes", que nada mais são do que consumidores de imóveis na planta, em regime de camuflada incorporação. Nesse sentido já julgou o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme ementa abaixo transcrita:
"Rescisão contratual e pedido de restituição – Não há que se falar em anulação parcial do processo – O apelante assinou contrato de constituição de sociedade em conta de participação, sendo a ré sócia ostensiva para aquisição da casa própria e quer a restituição das quantias pagas em razão de problemas de gerenciamento da sócia ostensiva, que sequer comprou o lote de terreno – Não obstante o instrumento firmado pelas partes receba a denominação de ‘Contrato de Constituição de Sociedade em Conta de Participação’, patente que a relação jurídica subjacente representa uma verdadeira promessa de venda de imóvel mediante a oferta pública e recebimento antecipado de dividendos para entrega futura de bem imóvel – Ausência de affectio societatis – O contrato realmente é nulo, destinado a fraudar o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor e a jurisprudência desta Corte – As quantias pagas deverão ser devolvidas de uma só vez (...)". [02]
Importante dizer que não se está aqui atacando a figura salutar da Sociedade em Conta de Participação. Tal modalidade de contrato, sem sombra de dúvidas, perfaz-se um interessante veículo de investimento em mercados sobre os quais os investidores não detêm qualquer expertise, com a vantagem de não ocorrer a assunção dos indesejáveis riscos do negócio, que se limitam à perda (total ou parcial) do aporte financeiro realizado em caso de insucesso do projeto.
Muitos são os projetos desenvolvidos no mercado imobiliário por meio de Sociedades em Conta de Participação, entabuladas por investidores e construtores que nutrem a necessária affectio societatis e guardam o mínimo necessário de proximidade pessoal. Os contratos que regem tais negócios são discutidos em pé de igualdade pelas partes, em que cada uma delas tenta fazer impor seus desejos e previsões que entendam cabíveis. Aos sócios participantes, por sua vez, franqueia-se o controle da gestão do negócio a ser executada pelo sócio ostensivo. Enfim, não há nem de perto a chamada vulnerabilidade que justificaria a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
A jurisprudência já afastou a aplicação das normas do CDC em favor de sócio participante que se julgava consumidor, em demanda destinada à declaração de extinção de contrato de SCP firmado entre empresário experiente e determinada empresa incorporadora, com o fito de desenvolvimento de prédio de apartamentos. No caso em referência, assim decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:
"Infere-se dos autos que as partes constituíram sociedade em conta de participação, na qual a ré assumiu o papel de sócia ostensiva e o autor, de sócio oculto (ou sócio participante, na dicção do art. 191 do Código Civil). (...)
Não havia previsão contratual de que caberia aos sócios ocultos, ao final do empreendimento, cota ou fração ideal dos prédios, ou mesmo alguma unidade autônoma, como constou da r. sentença, o que, de fato, caracterizaria um desvirtuamento ou infração à Lei nº. 4.591/64, ‘buscando mascarar a relação jurídica existente entre as partes’ (...)
Ao contrário, pelo que se infere dos autos, o autor constitui sociedade com a empresa ré com o objetivo precípuo de obter lucro, fazendo da sociedade uma modalidade de investimento (...)". [03]
Como se vê, quando se trata de efetivo de contrato de investimento feito sob a modelagem de uma SPC, não se aplicam em favor dos sócios participantes as previsões e garantias do Código de Defesa do Consumidor. Caberá ao julgador a análise de cada caso concreto, sendo indícios de que se trata de uma incorporação disfarçada a presença dos seguintes elementos: (i) a natureza adesiva do contrato, (ii) o número de participantes da relação (a detonar a ocorrência de oferta pública na participação do suposto contrato de investimento), (iii) a previsão de conversão da participação do sócio participante em unidade(s) imobiliária(s) e não em pecúnia e (iv) a ausência de poderes dos sócios participantes no controle da gestão dos atos praticados pelo sócio ostensivo.
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Notas
Curso de Direito Comercial, vol. II. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 476.
TJ-SP, 8ª Câm. Direito Privado, Apel. 253.891.4/0-00, Rel. Des. Ribeiro da Silva, acórdão registrado sob n. 02230366, j. 11.03.2009, v.u., in www.tj.sp.gov.br.
TJ-SP, 3ª Câm. Direito Privado, Apel. 301.139-4/3-00, Rel. Des. Beretta da Silveira, acórdão registrado sob n. 02557622, j. 15.09.2009, v.u., in www.tj.sp.gov.br.
Autor: Hyltom Pinto de Castro FilhoAdvogado em São Paulo. Sócio Fundador da Castro Filho & Medeiros Advogados. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro de Extensão Universitária - CEU. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade SECOVI.
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