A aplicação prática do contrato de alienação fiduciária de bens imóveis, especialmente a partir do início dos anos 2000, em decorrência da grande expansão do crédito imobiliário, vem suscitando algumas questões práticas de grande relevância.
A alienação fiduciária é negócio de transmissão condicional, pelo qual o devedor, ou um terceiro prestador da garantia, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor da propriedade resolúvel de determinado bem imóvel, vinculando-o ao cumprimento da obrigação à qual está atrelada.
Tratando-se de direito real de garantia, vez por outra pensa-se em sua estrutura e dinâmica a partir da lógica de outros direitos reais da mesma categoria, como é a hipoteca, daí resultando interpretações distorcidas de graves consequências.
Não se pode pensar, por exemplo, em constituir uma “propriedade fiduciária em segundo grau”, a exemplo da conhecida hipoteca em segundo grau.
Também não se pode pensar em penhorar o imóvel objeto de propriedade fiduciária, seja numa execução contra o credor fiduciário ou numa execução contra o devedor fiduciante.
Com efeito, a propriedade fiduciária distingue-se da hipoteca, fundamentalmente, porque esta é direito real de garantia que incide sobre coisa alheia, enquanto a propriedade fiduciária é direito próprio do credor, um direito real em coisa própria, com função de garantia.
É que por efeito da alienação fiduciária o bem é excluído do patrimônio do devedor fiduciante e incluído no do credor, sob forma de propriedade resolúvel, enquanto pela hipoteca o imóvel, embora onerado pela dívida, permanece no patrimônio do devedor. Tal distinção implica importantes conseqüências.
Em primeiro lugar, na medida em que o bem é retirado da esfera patrimonial do devedor, não mais pode ser objeto de constrição em razão de suas dívidas, mesmo que se trate de dívidas tributárias, já estando consolidada nesse sentido a jurisprudência em relação às dívidas tributárias de responsabilidade do devedor fiduciante1.
O mais relevante efeito da segregação patrimonial do bem objeto da propriedade fiduciária é sua exclusão dos efeitos de eventual insolvência do devedor-fiduciante.
De fato, por efeito da constituição da propriedade fiduciária, cria-se um patrimônio de afetação integrado pelo bem objeto da garantia, que não é atingido pelos efeitos de eventual insolvência do devedor ou do credor, não integrando, portanto, a massa falida de um ou do outro.
Disso resulta que, se o devedor-fiduciante cair em insolvência, o bem objeto da garantia, que foi excluído do seu patrimônio e passou a constituir um patrimônio de afetação, permanecerá separado dos bens da massa “até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento da sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer” (Lei nº 11.101/2005, art. 119, IX), assegurada ao fiduciário, se for o caso, a restituição do bem e eventualmente sua venda, aplicando a importância que aí apurar na satisfação do seu próprio crédito, sem concorrência com os demais credores (Lei nº 9.514/97, art. 32, e Lei nº 11.101/2005, art. 49, § 3º).
Diverso é o efeito em relação à falência de devedor hipotecário, pois, nesse caso, tendo em vista que o imóvel hipotecado permanece em seu patrimônio, será arrecadado pelo administrador judicial e passará a integrar o ativo da massa, submetendo o credor hipotecário à concorrência com os demais credores segundo a ordem legal de preferência.
Além desse relevante efeito decorrente das distintas características dessas garantias, outro aspecto a merecer atenção é a impossibilidade de se aplicar à propriedade fiduciária a regra do art. 1.476 do Código Civil,2 pelo qual o dono do imóvel pode constituir sobre ele sucessivas hipotecas, com diferentes graus de preferência.
Essa regra é absolutamente incompatível com a natureza da garantia fiduciária e, portanto, não se aplica à propriedade fiduciária de bem imóvel, de modo que é juridicamente inadmissível constituir-se propriedades fiduciárias em primeiro grau, segundo grau etc.
É que, como visto, o bem hipotecado permanece no patrimônio do devedor, legitimando-o, portanto, a constituir sobre ele novos gravames e até mesmo vendê-lo, hipótese em que, por força da seqüela, o imóvel hipotecado permanece vinculado ao cumprimento da obrigação garantida mesmo após transferido a terceiro. Já na propriedade fiduciária, na medida em que o bem não mais se encontra no patrimônio do devedor, este não tem mais faculdade de transmiti-lo sucessivamente, seja ao mesmo adquirente ou a diferentes adquirentes.
Essa configuração jurídica, entretanto, não impede o devedor fiduciante de empregar os direitos de que é titular para fins de nova garantia. Recorde-se que, pela alienação fiduciária, o fiduciante é investido no direito aquisitivo sobre o imóvel, sob condição suspensiva, assegurada a reversão da propriedade ao seu patrimônio tão logo conclua o pagamento da dívida garantida. A natureza jurídica desse direito do fiduciante é semelhante à do promitente comprador, ao qual é, igualmente, atribuído direito aquisitivo sobre o imóvel, sob condição suspensiva.
Investido desse direito, pode o devedor fiduciante caucioná-lo nos termos dos arts. 17, III, e 21 da Lei 9.514/97.3 A caução do direito real de aquisição pode ser constituída em favor do mesmo credor-fiduciário ou em favor de outro credor, caso em que a aferição do valor econômico desse direito deve levar em conta, entre outros fatores, o valor do saldo da dívida garantida pela propriedade fiduciária.
Não obstante, pode eventualmente ser admitida a alienação fiduciária da propriedade superveniente, tal como admitido pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil, pelo qual a propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz a garantia fiduciária,4 bem como pelo § 1º do art. 1.420 do Código Civil.5 Assim, a alienação fiduciária de imóvel já anteriormente alienado fiduciariamente (isto é, que não se encontra no patrimônio do devedor-alienante), só terá eficácia após verificada a condição suspensiva que enseja a aquisição da propriedade por parte do devedor-fiduciante, com a averbação, no Registro de Imóveis, do “termo de quitação” da dívida garantida pela propriedade fiduciária anteriormente constituída. Nesse momento surge a propriedade superveniente a que aludem as disposições do Código Civil acima referidas e, em conseqüência, torna-se eficaz a nova garantia fiduciária.
Outro aspecto relevante é que, uma vez alienado fiduciariamente, o bem não pode ser alvo de constrição, podendo ser penhorados, entretanto, os direitos aos quais ele está atrelado.
Esses são os direitos creditórios do credor fiduciário ou os direitos aquisitivos de que é titular o devedor fiduciante.
Com efeito, em processo de execução judicial movido contra o credor-fiduciário, podem ser objeto de penhora o crédito de que ele é titular, permanecendo a ele vinculado o bem alienado fiduciariamente, tendo em vista que o elementar princípio segundo o qual o acessório segue o principal; o objeto do leilão será o crédito penhorado, sendo certo que, ao arrematá-lo, o arrematante se tornará titular do crédito e ficará sub-rogado nos direitos e obrigações decorrentes do contrato de alienação fiduciária, tornando-se proprietário fiduciário do bem objeto da garantia, em substituição ao credor fiduciário; ao completar o recebimento do crédito arrematado, o arrematante será obrigado a dar quitação ao devedor fiduciante e fornecer-lhe o “termo de quitação” para cancelamento da garantia fiduciária.
Vista a situação sob a perspectiva do devedor fiduciante, seu direito aquisitivo também pode ser penhorado.
Nesse caso, o objeto da penhora será o direito de aquisição do domínio, isto é, o direito que tem o devedor fiduciante de reaver o direito de propriedade plena do bem, quando efetivar o resgate da dívida que o onera. Assim, cogitando-se de penhorar os direitos do devedor fiduciante, o objeto da penhora não será a propriedade, que ele ainda não tem,6 mas tão somente os direitos aquisitivos.7
O valor econômico dos direitos aquisitivos, para efeito da penhora, merece especial atenção. Com efeito, na medida em que a aquisição da propriedade, por parte do devedor-fiduciante, é condicionada ao pagamento da dívida, que em geral se faz parceladamente, a apuração do valor econômico do direito aquisitivo penhorável deve levar em conta, necessariamente, o valor do saldo devedor, deduzindo-o do valor de mercado do bem, entre outros fatores. Realizado o leilão dos direitos aquisitivos penhorados, o arrematante ficará sub-rogado nos direitos e obrigações do devedor-fiduciante, substituindo-o na relação contratual como credor-fiduciário; neste caso, o arrematante tornar-se-á titular dos direitos aquisitivos e estará obrigado a resgatar o saldo da dívida, em cumprimento da condição a que está subordinado o contrato.
A penhora dos direitos do devedor-fiduciante não atinge o direito do credor-fiduciário, pois o que ocorre é apenas a substituição do devedor-fiduciante, que deixa de ser o devedor original e passa a ser o arrematante.
Em qualquer dos casos — seja referindo-se aos direitos do credor ou aos direitos aquisitivos do devedor — a penhora deve ser registrada no Registro de competente, seja Registro de Imóveis ou Registro de Títulos e Documentos (neste último caso, se se tratar de bem móvel). Quando a propriedade fiduciária tiver por objeto bem imóvel, o registro se faz com fundamento nos §§ 4º e 5º do art. 659 do Código de Processo Civil.
Cabe notar que longe de serem triviais, essas observações poderão ser úteis, pois vez por outra se verificam equívocos quando se pensa em constituir “propriedade fiduciária em segundo grau” ou, em processos de execução judicial, se cogita de penhorar os direitos do credor ou do devedor.
1. ”Execução Fiscal — Embargos de Terceiro — Penhora — Bem alienado fiduciariamente — Impossibilidade — Propriedade do credor fiduciário — Inexistência de privilégio do crédito tributário. 1. “A alienação fiduciária em garantia expressa negócio jurídico em que o adquirente de um bem móvel transfere — sob condição resolutiva — ao credor que financia a dívida, o domínio do bem adquirido. Permanece, apenas, com a posse direta. Em ocorrendo inadimplência do financiado, consolida-se a propriedade resolúvel” (REsp 47.047-1/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros).
“O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial do credor fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execução fiscal, porquanto o domínio da coisa já não pertence ao executado, mas a um terceiro, alheio à relação jurídico-tributária. 3. A alienação fiduciária não institui um ônus real de garantia, não havendo de se falar, nesses casos, em aplicação da preferência do crédito tributário. 4. Precedentes das Turmas (STJ, 2ª T., RESP 332369-SC, rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 1.8.2006).
2. Código Civil: “Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.”
3. Lei 9.514/97: “Art. 21. São suscetíveis de caução, desde que transmissíveis, os direitos aquisitivos sobre imóvel, ainda que em construção.”
4. Código Civil: “Art. 1.361. ... § 3º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.”
5. Código Civil: “Art. 1.420. ... § 1º A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono.”
6. A situação tem pontos de contato com a caução de direito aquisitivo sobre imóvel, isto é, a caução do direito do promitente comprador ou do promitente cessionário de imóvel, bem como do cessionário do promitente comprador (Lei 9.514/97, arts. 17 e 21).
7. “Processual civil. Locação. Penhora. Direitos. Contrato de alienação fiduciária. O bem alienado fiduciariamente, por não integrar o patrimônio do devedor, não pode ser objeto de penhora. Nada impede, contudo, que os direitos do devedor fiduciante oriundos do contrato sejam constritos. Recurso especial provido.” (REsp 260.880-RS, rel. Min. Félix Fischer, DJ 12.2.2001).
“EXECUÇÃO FISCAL — EMBARGOS DE TERCEIRO — PENHORA — BEM ALIENADO FIDUCIARIAMENTE — IMPOSSIBILIDADE — PROPRIEDADE
DO CREDOR FIDUCIÁRIO — INEXISTÊNCIA DE PRIVILÉGIO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. 1. “A alienação fiduciária em garantia expressa negócio jurídico em que o adquirente de um bem móvel transfere — sob condição resolutiva — ao credor que financia a dívida, o domínio do bem adquirido. Permanece, apenas, com a posse direta. Em ocorrendo inadimplência do financiado, consolida-se a propriedade resolúvel” (REsp 47.047-1/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros). 2. O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial do credor fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execução fiscal, porquanto o domínio da coisa já não pertence ao executado, mas a um terceiro, alheio à relação jurídico-tributária. 3. A alienação fiduciária não institui um ônus real de garantia, não havendo de se falar, nesses casos, em aplicação da preferência do crédito tributário. 4. Precedentes das Turmas (STJ, 2ª T., RESP 332369-SC, rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 1.8.2006).
“O bem sujeito à alienação fiduciária não pode ser penhorado em execução fiscal enquanto devedor o fiduciante, visto que aquele bem não lhe pertence. Trata-se, portanto, de mero possuidor sujeito à responsabilidade dos depositários. Porém nada obsta a constrição dos direitos que lhe advêm do contrato, pois o art. 11, VIII, da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais) permite a constrição de direitos e ações. Precedentes citados: REsp 795.635-PB, DJ 7/8/2006; REsp 679.821-DF, DJ 17/12/2004, e REsp 260.880-RS, DJ 12/2/2001. REsp 910.207-MG, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 9/10/2007).
* Melhim Namem Chalhub é advogado no Rio de Janeiro.
Fonte: Boletim Eletrônico Irib: 3927
A alienação fiduciária é negócio de transmissão condicional, pelo qual o devedor, ou um terceiro prestador da garantia, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor da propriedade resolúvel de determinado bem imóvel, vinculando-o ao cumprimento da obrigação à qual está atrelada.
Tratando-se de direito real de garantia, vez por outra pensa-se em sua estrutura e dinâmica a partir da lógica de outros direitos reais da mesma categoria, como é a hipoteca, daí resultando interpretações distorcidas de graves consequências.
Não se pode pensar, por exemplo, em constituir uma “propriedade fiduciária em segundo grau”, a exemplo da conhecida hipoteca em segundo grau.
Também não se pode pensar em penhorar o imóvel objeto de propriedade fiduciária, seja numa execução contra o credor fiduciário ou numa execução contra o devedor fiduciante.
Com efeito, a propriedade fiduciária distingue-se da hipoteca, fundamentalmente, porque esta é direito real de garantia que incide sobre coisa alheia, enquanto a propriedade fiduciária é direito próprio do credor, um direito real em coisa própria, com função de garantia.
É que por efeito da alienação fiduciária o bem é excluído do patrimônio do devedor fiduciante e incluído no do credor, sob forma de propriedade resolúvel, enquanto pela hipoteca o imóvel, embora onerado pela dívida, permanece no patrimônio do devedor. Tal distinção implica importantes conseqüências.
Em primeiro lugar, na medida em que o bem é retirado da esfera patrimonial do devedor, não mais pode ser objeto de constrição em razão de suas dívidas, mesmo que se trate de dívidas tributárias, já estando consolidada nesse sentido a jurisprudência em relação às dívidas tributárias de responsabilidade do devedor fiduciante1.
O mais relevante efeito da segregação patrimonial do bem objeto da propriedade fiduciária é sua exclusão dos efeitos de eventual insolvência do devedor-fiduciante.
De fato, por efeito da constituição da propriedade fiduciária, cria-se um patrimônio de afetação integrado pelo bem objeto da garantia, que não é atingido pelos efeitos de eventual insolvência do devedor ou do credor, não integrando, portanto, a massa falida de um ou do outro.
Disso resulta que, se o devedor-fiduciante cair em insolvência, o bem objeto da garantia, que foi excluído do seu patrimônio e passou a constituir um patrimônio de afetação, permanecerá separado dos bens da massa “até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento da sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer” (Lei nº 11.101/2005, art. 119, IX), assegurada ao fiduciário, se for o caso, a restituição do bem e eventualmente sua venda, aplicando a importância que aí apurar na satisfação do seu próprio crédito, sem concorrência com os demais credores (Lei nº 9.514/97, art. 32, e Lei nº 11.101/2005, art. 49, § 3º).
Diverso é o efeito em relação à falência de devedor hipotecário, pois, nesse caso, tendo em vista que o imóvel hipotecado permanece em seu patrimônio, será arrecadado pelo administrador judicial e passará a integrar o ativo da massa, submetendo o credor hipotecário à concorrência com os demais credores segundo a ordem legal de preferência.
Além desse relevante efeito decorrente das distintas características dessas garantias, outro aspecto a merecer atenção é a impossibilidade de se aplicar à propriedade fiduciária a regra do art. 1.476 do Código Civil,2 pelo qual o dono do imóvel pode constituir sobre ele sucessivas hipotecas, com diferentes graus de preferência.
Essa regra é absolutamente incompatível com a natureza da garantia fiduciária e, portanto, não se aplica à propriedade fiduciária de bem imóvel, de modo que é juridicamente inadmissível constituir-se propriedades fiduciárias em primeiro grau, segundo grau etc.
É que, como visto, o bem hipotecado permanece no patrimônio do devedor, legitimando-o, portanto, a constituir sobre ele novos gravames e até mesmo vendê-lo, hipótese em que, por força da seqüela, o imóvel hipotecado permanece vinculado ao cumprimento da obrigação garantida mesmo após transferido a terceiro. Já na propriedade fiduciária, na medida em que o bem não mais se encontra no patrimônio do devedor, este não tem mais faculdade de transmiti-lo sucessivamente, seja ao mesmo adquirente ou a diferentes adquirentes.
Essa configuração jurídica, entretanto, não impede o devedor fiduciante de empregar os direitos de que é titular para fins de nova garantia. Recorde-se que, pela alienação fiduciária, o fiduciante é investido no direito aquisitivo sobre o imóvel, sob condição suspensiva, assegurada a reversão da propriedade ao seu patrimônio tão logo conclua o pagamento da dívida garantida. A natureza jurídica desse direito do fiduciante é semelhante à do promitente comprador, ao qual é, igualmente, atribuído direito aquisitivo sobre o imóvel, sob condição suspensiva.
Investido desse direito, pode o devedor fiduciante caucioná-lo nos termos dos arts. 17, III, e 21 da Lei 9.514/97.3 A caução do direito real de aquisição pode ser constituída em favor do mesmo credor-fiduciário ou em favor de outro credor, caso em que a aferição do valor econômico desse direito deve levar em conta, entre outros fatores, o valor do saldo da dívida garantida pela propriedade fiduciária.
Não obstante, pode eventualmente ser admitida a alienação fiduciária da propriedade superveniente, tal como admitido pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil, pelo qual a propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz a garantia fiduciária,4 bem como pelo § 1º do art. 1.420 do Código Civil.5 Assim, a alienação fiduciária de imóvel já anteriormente alienado fiduciariamente (isto é, que não se encontra no patrimônio do devedor-alienante), só terá eficácia após verificada a condição suspensiva que enseja a aquisição da propriedade por parte do devedor-fiduciante, com a averbação, no Registro de Imóveis, do “termo de quitação” da dívida garantida pela propriedade fiduciária anteriormente constituída. Nesse momento surge a propriedade superveniente a que aludem as disposições do Código Civil acima referidas e, em conseqüência, torna-se eficaz a nova garantia fiduciária.
Outro aspecto relevante é que, uma vez alienado fiduciariamente, o bem não pode ser alvo de constrição, podendo ser penhorados, entretanto, os direitos aos quais ele está atrelado.
Esses são os direitos creditórios do credor fiduciário ou os direitos aquisitivos de que é titular o devedor fiduciante.
Com efeito, em processo de execução judicial movido contra o credor-fiduciário, podem ser objeto de penhora o crédito de que ele é titular, permanecendo a ele vinculado o bem alienado fiduciariamente, tendo em vista que o elementar princípio segundo o qual o acessório segue o principal; o objeto do leilão será o crédito penhorado, sendo certo que, ao arrematá-lo, o arrematante se tornará titular do crédito e ficará sub-rogado nos direitos e obrigações decorrentes do contrato de alienação fiduciária, tornando-se proprietário fiduciário do bem objeto da garantia, em substituição ao credor fiduciário; ao completar o recebimento do crédito arrematado, o arrematante será obrigado a dar quitação ao devedor fiduciante e fornecer-lhe o “termo de quitação” para cancelamento da garantia fiduciária.
Vista a situação sob a perspectiva do devedor fiduciante, seu direito aquisitivo também pode ser penhorado.
Nesse caso, o objeto da penhora será o direito de aquisição do domínio, isto é, o direito que tem o devedor fiduciante de reaver o direito de propriedade plena do bem, quando efetivar o resgate da dívida que o onera. Assim, cogitando-se de penhorar os direitos do devedor fiduciante, o objeto da penhora não será a propriedade, que ele ainda não tem,6 mas tão somente os direitos aquisitivos.7
O valor econômico dos direitos aquisitivos, para efeito da penhora, merece especial atenção. Com efeito, na medida em que a aquisição da propriedade, por parte do devedor-fiduciante, é condicionada ao pagamento da dívida, que em geral se faz parceladamente, a apuração do valor econômico do direito aquisitivo penhorável deve levar em conta, necessariamente, o valor do saldo devedor, deduzindo-o do valor de mercado do bem, entre outros fatores. Realizado o leilão dos direitos aquisitivos penhorados, o arrematante ficará sub-rogado nos direitos e obrigações do devedor-fiduciante, substituindo-o na relação contratual como credor-fiduciário; neste caso, o arrematante tornar-se-á titular dos direitos aquisitivos e estará obrigado a resgatar o saldo da dívida, em cumprimento da condição a que está subordinado o contrato.
A penhora dos direitos do devedor-fiduciante não atinge o direito do credor-fiduciário, pois o que ocorre é apenas a substituição do devedor-fiduciante, que deixa de ser o devedor original e passa a ser o arrematante.
Em qualquer dos casos — seja referindo-se aos direitos do credor ou aos direitos aquisitivos do devedor — a penhora deve ser registrada no Registro de competente, seja Registro de Imóveis ou Registro de Títulos e Documentos (neste último caso, se se tratar de bem móvel). Quando a propriedade fiduciária tiver por objeto bem imóvel, o registro se faz com fundamento nos §§ 4º e 5º do art. 659 do Código de Processo Civil.
Cabe notar que longe de serem triviais, essas observações poderão ser úteis, pois vez por outra se verificam equívocos quando se pensa em constituir “propriedade fiduciária em segundo grau” ou, em processos de execução judicial, se cogita de penhorar os direitos do credor ou do devedor.
1. ”Execução Fiscal — Embargos de Terceiro — Penhora — Bem alienado fiduciariamente — Impossibilidade — Propriedade do credor fiduciário — Inexistência de privilégio do crédito tributário. 1. “A alienação fiduciária em garantia expressa negócio jurídico em que o adquirente de um bem móvel transfere — sob condição resolutiva — ao credor que financia a dívida, o domínio do bem adquirido. Permanece, apenas, com a posse direta. Em ocorrendo inadimplência do financiado, consolida-se a propriedade resolúvel” (REsp 47.047-1/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros).
“O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial do credor fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execução fiscal, porquanto o domínio da coisa já não pertence ao executado, mas a um terceiro, alheio à relação jurídico-tributária. 3. A alienação fiduciária não institui um ônus real de garantia, não havendo de se falar, nesses casos, em aplicação da preferência do crédito tributário. 4. Precedentes das Turmas (STJ, 2ª T., RESP 332369-SC, rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 1.8.2006).
2. Código Civil: “Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.”
3. Lei 9.514/97: “Art. 21. São suscetíveis de caução, desde que transmissíveis, os direitos aquisitivos sobre imóvel, ainda que em construção.”
4. Código Civil: “Art. 1.361. ... § 3º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.”
5. Código Civil: “Art. 1.420. ... § 1º A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono.”
6. A situação tem pontos de contato com a caução de direito aquisitivo sobre imóvel, isto é, a caução do direito do promitente comprador ou do promitente cessionário de imóvel, bem como do cessionário do promitente comprador (Lei 9.514/97, arts. 17 e 21).
7. “Processual civil. Locação. Penhora. Direitos. Contrato de alienação fiduciária. O bem alienado fiduciariamente, por não integrar o patrimônio do devedor, não pode ser objeto de penhora. Nada impede, contudo, que os direitos do devedor fiduciante oriundos do contrato sejam constritos. Recurso especial provido.” (REsp 260.880-RS, rel. Min. Félix Fischer, DJ 12.2.2001).
“EXECUÇÃO FISCAL — EMBARGOS DE TERCEIRO — PENHORA — BEM ALIENADO FIDUCIARIAMENTE — IMPOSSIBILIDADE — PROPRIEDADE
DO CREDOR FIDUCIÁRIO — INEXISTÊNCIA DE PRIVILÉGIO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. 1. “A alienação fiduciária em garantia expressa negócio jurídico em que o adquirente de um bem móvel transfere — sob condição resolutiva — ao credor que financia a dívida, o domínio do bem adquirido. Permanece, apenas, com a posse direta. Em ocorrendo inadimplência do financiado, consolida-se a propriedade resolúvel” (REsp 47.047-1/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros). 2. O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial do credor fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execução fiscal, porquanto o domínio da coisa já não pertence ao executado, mas a um terceiro, alheio à relação jurídico-tributária. 3. A alienação fiduciária não institui um ônus real de garantia, não havendo de se falar, nesses casos, em aplicação da preferência do crédito tributário. 4. Precedentes das Turmas (STJ, 2ª T., RESP 332369-SC, rel. Ministra Eliana Calmon, DJ 1.8.2006).
“O bem sujeito à alienação fiduciária não pode ser penhorado em execução fiscal enquanto devedor o fiduciante, visto que aquele bem não lhe pertence. Trata-se, portanto, de mero possuidor sujeito à responsabilidade dos depositários. Porém nada obsta a constrição dos direitos que lhe advêm do contrato, pois o art. 11, VIII, da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais) permite a constrição de direitos e ações. Precedentes citados: REsp 795.635-PB, DJ 7/8/2006; REsp 679.821-DF, DJ 17/12/2004, e REsp 260.880-RS, DJ 12/2/2001. REsp 910.207-MG, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 9/10/2007).
* Melhim Namem Chalhub é advogado no Rio de Janeiro.
Fonte: Boletim Eletrônico Irib: 3927
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