O
presente trabalho não tem a pretensão de ser definitivo nem tampouco de exaurir o tema,
mas tão somente suscitar a discussão e possibilitar, além da exposição de um ponto de
vista objetivo, a oportunidade de que os colegas exercitem os neurônios e reflitam sobre
o tema.
Freqüentemente
lavramos em nossas serventias, escrituras de transmissão de imóveis com algum tipo de
reserva (uso, habitação, usufruto, etc...). No mais das vezes as escrituras com reserva
são de Doação com reserva de usufruto, objeto deste nosso estudo.
Levadas a
registro, ditas escrituras são registradas pelos Cartórios de Registros de Imóveis como
se fossem Doação comum, e imediatamente após o registro, é lavrado um segundo ato, às
vezes sob a forma de registro, às vezes sob a forma de averbação, onde é feita a
"RESERVA DE USUFRUTO". O título transmissivo é indicado às vezes como
"DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO", às vezes simplesmente como
‘DOAÇÃO’.
Este
procedimento, de efetuar duplo registro, tem origem em uma corrente de pensamento que
entende ser a propriedade, no contexto jurídico brasileiro, um direito uno e
indivisível, que pode sofrer restrições, mas que não se cinde nas suas diversas
faculdades. Sob esta ótica, o nú-proprietário e o usufrutuário não seriam titulares
de direitos diferentes sobre o mesmo imóvel (de um lado uso e gozo, de outro disposição
e seqüela), mas partilhariam entre eles um mesmo direito monolítico de propriedade,
apenas com restrições de parte a parte.
Assim, sob
a ótica daqueles que consideram a propriedade una e indivisível, a DOAÇÃO COM RESERVA
DE USUFRUTO, seria a doação do direito de propriedade onerado com usufruto, razão pela
qual se faria o registro da transmissão da propriedade plena, e após o registro do
ônus, ou usufruto.
De outra
banda, aqueles que pensam ser cindível a propriedade nas suas diversas faculdades,
entendem que na DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO, é transmitida somente a
nua-propriedade, e o usufruto que se reserva o doador, não é senão o mesmo direito
primitivo e remanescente de uso e gozo que ele já desfrutava anteriormente, razão pela
qual não é necessário fazer-se um registro posterior à transmissão da
nua-propriedade, vez que o direito de usufruto, por não ter sido transmitido, não
poderia ser instituído do doador para sí próprio. Seria tão apenas uma reserva a ser
feita no registro, a título de ‘condição do contrato’ de doação, a teor do
disposto no artigo 176, inciso III, n° ‘5’ da Lei 6.015/73:
"Art° 176...................
Inciso I .....................
III – São requisitos do registro no Livro 2:
1 – a data;
2 – o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do
devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:
a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o
número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do
Registro Geral da Cédula de identidade, ou à falta deste, sua filiação;
b) tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de
inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda;
3 – o título da transmissão ou do ônus;
4 – a forma do título, sua procedência e caracterização;
5 – o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições
e demais especificações, inclusive os juros, se houver."(grifo
nosso)
Esta
condição (reserva de
usufruto) de conformidade com o artigo 118 do CCB, é uma
condição suspensiva, que se implementará quando do falecimento do
usufrutuário,
reunindo a plenitude da propriedade na pessoa do nú-proprietário.
A esta
segunda corrente nos filiamos, embora reconheçamos e respeitemos a quantidade e a
qualidade de tantos quantos defendem a primeira. Por diversos motivos, que abaixo
discorreremos, entendemos que é inconteste a opção do direito pátrio pela propriedade
divisível nas suas diversas faculdades, senão vejamos:
O artigo
524 do Código Civil Brasileiro é do teor seguinte:
"Art° 524. A lei assegura ao proprietário o direito de
usar,
gozar e
dispor de seus bens, e de
reavê-los do poder de quem quer
que injustamente os possua" (o grifo é nosso)
Está
expresso de forma clara que a propriedade não é um direito uno e indivisível, mas uma
reunião de faculdades, e que quando agrupadas todos na mesma pessoa chama-se
‘domínio’.
O
artigo 713, por sua vez, assim define o direito de
usufruto:
"Art° 713. Constitui
usufruto o direito real de fruir as
utilidades e
frutos de uma coisa, enquanto temporariamente
destacado da propriedade"
(grifo nosso)
Da
interpretação conjunta destes dois artigos, 524 e 713, parece-nos evidente a opção do
legislador pátrio em permitir a cisão, mesmo que temporária, dos direitos inerentes à
propriedade, de um lado
uso e gozo, de outro
disposição e seqüela.
Dentro da
boa técnica registral, qualquer que seja a opção doutrinária, parece-nos
desnecessário, mas impossível um segundo ato de registro de ‘reserva de
usufruto’, seja sob a forma de registro seja sob a forma de averbação.
Justificaremos:
O
registro,
como elemento constitutivo de direito, é um ato que se encerra em sí mesmo, que não
pode depender de nenhum apêndice, nenhuma referência, nenhum complemento, nenhum
acréscimo para gerar seus efeitos. Encerrado o ato de registro com a assinatura do
registrador, o ato está perfeito e completo, e de nada mais depende para produzir todos
os seus efeitos legais.
Somente por exceção, e caso tenha sido cometido algum engano ou
sido omitido algum elemento essencial do registro, é que se pode lavrar um ato
complementar, ou seja, uma averbação ‘ex-ofício’, e que fará parte
integrante do registro original. O registro da transmissão seja ela qual for, se faz
através de um único ato.
A dita
‘RESERVA DE
USUFRUTO’ que alguns entendem ser possível em registro autônomo,
não encontra-se elencada nem entre os atos de registros, no Artigo 167, inciso I, nem
entre as averbações, no Artigo 167, II da Lei 6.016/73, e não sendo nem ato de registro
nem de averbação legalmente previstos, é ato impossível de ser praticado pelo
registrador, sob pena de lesão ao princípio da ‘Tipicidade’ expresso no Artigo
285, inciso IX da CNNR (CGJ/RS), e artigo 172 da Lei 6.015/73, que afirmam serem
registráveis, apenas títulos relativos a direitos reais, previstos em lei.
O único
registro autônomo, envolvendo ‘
usufruto’, seria o da
instituição do
usufruto convencional, cujo registro está previsto no artigo 167, Inciso II, n°
‘7’ da Lei 6.015/73.
Especialmente
se admitida como correta a interpretação de que o artigo 167 da Lei 6.015/73 não é
simplesmente exemplificativo, mas sim, relaciona e exaure todos os atos de registro e
averbação possíveis de serem praticados no Registro de Imóveis. Assim nos parece a
opção do legislador pátrio. Se assim não fosse, e aquela relação de atos fosse
simplesmente exemplificativa, não seria necessário que o artigo 40 da lei 9.514/97
(Alienação Fiduciária de Imóveis) tivesse acrescido o n° ‘35’ ao inciso I
do Artigo 167 da Lei 6.015/73. Bastaria simplesmente ser necessário este tipo de
registro, que deveria ele ser lavrado pelo registrador, independente de sua previsão na
Lei 6.015/73. Da mesma forma em relação à lei n° 9.785/99 (altera o artigo 4° da Lei
6766), que acresceu o n° ´36´ ao inciso I do artigo 167 da Lei 6.015/73.
Tampouco
encontra previsão na tabela de emolumentos o registro ou a averbação de ‘reserva
de
usufruto’. Incluí-la como registro ou averbação sem valor declarado não nos
parece lícito, embora rotineiramente este segundo ato seja cobrado das partes, ora como
registro sem valor, ora como registro com o mesmo valor do registro da doação.
Analisando
sob a ótica daqueles que entendem ser
cindível a propriedade, o segundo ato - da
reserva de
usufruto - não pode ser lavrado porque no momento do registro da Doação com
Reserva de
Usufruto, a propriedade cinde-se, dividindo-se em nua-propriedade de um lado e
direito de
usufruto de outro. Somente a nua-propriedade é transmitida e nas
‘condições do contrato’ é explicitado que os doadores reservaram para sí o
usufruto vitalício. Assim, é lavrado um único ato de registro da escritura de doação
com reserva de
usufruto, que num mesmo momento registra a transmissão da nua-propriedade
e reserva o
usufruto. O segundo ato, da ‘reserva de
usufruto’ não deve ser
realizado pois seria redundante. O
usufruto sequer chega a ser transmitido e não é
necessário a lavratura de novo ato para noticiar e dar oponibilidade ‘erga
omnes’. O ato pelo qual se constituiu o direito de uso e gozo do imóvel em favor do
doador, foi aquele no qual ele anteriormente adquiriu a propriedade plena, da qual, na
doação transmitiu somente parte.
Fazendo um
exercício e tentando visualizar sob a ótica dos pensadores da
propriedade una e
indivisível, também nos parece desnecessária a lavratura de dois atos, um de registro
da doação e outro da reserva de
usufruto. Aquela corrente sustenta a necessidade do
segundo ato de registro basicamente por dois motivos:
Primeiro
porque a transmissão do imóvel não seria somente da nua-propriedade. A transmissão
seria daquele bloco monolítico que entendem ser a propriedade, una e indivisível,
simplesmente onerada com o
usufruto. Rebatendo este argumento e justificando a
impossibilidade de um segundo registro, parece-nos ser obrigatório que este ônus ou
gravame imposto pelo doador conste no próprio ato de registro da doação, e não em ato
posterior, razão pela qual somente um ato é necessário e possível de ser lavrado.
Segundo,
pela exigência expressa no artigo 715 do CCB, de que o
usufruto de imóveis, quando não
resulte do direito de família, dependerá de transcrição (atualmente registro) no
respectivo registro imobiliário. Contra-argumentando, parece-nos que o sentido pretendido
pelo legislador foi o de, em exigindo a formalização de um ato no registro, fazer
contra-ponto ao
usufruto decorrente do direito de família, que não requer registro
algum. Assim, o
usufruto em favor do doador não pode ser presumido pelo simples fato de
haver sido transmitida a nua-propriedade. É necessário que o
usufruto se consubstancie
expressamente na ‘
reserva de usufruto para o doador nas ‘condições do
contrato’ e no título transmissivo que deverá ser ‘
Doação com Reserva de
Usufruto’.
Necessário
aqui definir ‘
registro’: segundo ‘De Plácido e Silva’ in
‘Vocabulário Jurídico’, registro é assento ou cópia em livro próprio, de
ato que se tenha praticado ou de documento que se tenha passado, ou ainda em sentido
amplo, a soma de formalidades de natureza extrínseca a que estão sujeitos certos atos
jurídicos, a fim de que se tornem públicos e autênticos e possam valer contra
terceiros.
Entendemos
ter sido este o sentido pretendido pelo legislador pátrio ao exigir a transcrição
(atualmente registro) como formalidade necessária à validade do
usufruto, o de
consubstanciar o
usufruto em um ato que desse publicidade e oponibilidade erga omnes.
Assim sendo, a ‘Doação com Reserva de
Usufruto’ e a condição expressa,
integrante do registro, de que o doador reserva para sí o
usufruto, supre a necessidade
do artigo 715 do CCB.
O segundo
registro - da reserva de
usufruto -, por sobre ser oneroso para a parte, é desnecessário
e inócuo, pois não gera nenhum efeito ou direito adicional, vez que a ‘reserva de
usufruto’ já foi transcrita no registro da doação da nua-propriedade.
Há um
argumento que não encontramos dissecado na literatura pesquisada: O aspecto tributário.
Desnecessário
declinar a capitulação legal que determina a incidência de Imposto de Transmissão
sobre a transmissão tanto da ‘propriedade’, quanto do ‘direito de
usufruto’.
Admitido o
ponto de vista da corrente da propriedade una, seria necessário um registro para a
doação, sobre o qual inequívocamente há incidência de imposto de transmissão, vez
que haveria a transmissão da propriedade plena. Por esta corrente é necessário um
segundo registro para a constituição do
usufruto, e o
usufruto aí constituído não
seria o mesmo direito remanescente do doador, seria um direito instituído do donatário
para o doador, de modo que haveria novamente a incidência do Imposto de Transmissão, uma
pela transmissão da propriedade para o donatário, e outra pela constituição do
usufruto para o doador. Somente por uma ficção jurídica é que se pode admitir que os
dois atos fazem parte de uma mesma transmissão e que sobre o segundo não incide imposto.
Pela
corrente contrária, a doação com reserva de
usufruto realiza-se em um único ato e
configura-se em doação somente da nua-propriedade, razão pela qual, não tendo sido
transmitido o direito de
usufruto - que é reservado -, não incide imposto de
transmissão. Convém lembrar que no Estado do Rio Grande do Sul, por força da
Legislação Estadual, o ITCD na Doação com Reserva de
Usufruto é
antecipado
para o momento da transmissão da nua-propriedade, e na extinção do
usufruto nada se
recolhe ao estado, pois o tributo já foi recolhido antecipadamente.
Contendo em
sí o ato de registro todos os elementos necessários e indispensáveis, tendo sido
indicada a reserva de
usufruto como condição do contrato, a lavratura de um segundo ato,
é completamente vazio, vez que não produz nenhum efeito adicional ao ato primitivamente
lavrado.
Por fim
expomos aqui um depoimento pessoal, que embora não tenha nenhum valor como argumento de
sustentação de nossa tese, tem valor para entender o porque as escrituras de Doação
com Reserva de
Usufruto são lavradas em dois atos: A grande maioria dos registradores com
quem nos entrevistamos para a realização deste trabalho justificou este procedimento
basicamente por dois motivos: Primeiro, por uma espécie de moto contínuo, segundo o
qual, há muito lavram estes dois atos, e questionar este precedimento exigiria algum
tempo e esforço do registrador; segundo porque este segundo ato é remunerado, e deixar
de fazê-lo implicaria em redução de receita.
Por todo o
exposto, entendemos devam ser registradas as DOAÇÕES COM RESERVA DE
USUFRUTO em um
único ato, suprimindo-se o registro da dita RESERVA DE
USUFRUTO.
Autor: Gilceu Antonio Vivan
Fonte: Revista Jus Navigand
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