O mercado imobiliário espanhol vive hoje uma bolha imobiliária?
Há os que dizem que existe, mas estou dentre aqueles que não acreditam em bolha imobiliária. O conceito de bolha imobiliária é semelhante ao conceito de bolha financeira, que por definição é um aumento irracional dos preços, não das quantidades. No caso da Espanha, o aumento dos preços não foi irracional, foi racional, resultado de uma forte pressão de demanda e de uma melhora de algumas condições de longo prazo: a renda cresceu, a liquidez e o crédito aumentaram, os juros caíram, e isso melhorou o acesso aos imóveis, e as pessoas compraram mais. Os mecanismos de funcionamento do mercado justificam isso como um crescimento normal, apesar de bastante concentrado. Entre 2003 e 2007 os preços cresceram acima da média histórica, e próximos ao nosso pico de crescimento nominal no preço dos imóveis, que foi de 17% ao ano. Em 2007, esse crescimento começa a se reduzir, e antes da crise os preços dos imóveis cresciam 6%, em termos reais, e com a crise os preços deixaram de crescer. No auge da crise, a máxima queda nos preços foi de 9%. Para ter uma bolha imobiliária, deveríamos ter uma situação como vivia a Inglaterra, onde os preços subiram 45% ou 50%. No caso da Espanha, o crescimento dos preços foi resultado de uma demanda represada.
Isso aconteceu apenas na Espanha?
Não, aconteceu também na Irlanda, Inglaterra, Itália, em muitas cidades de Portugal, Austrália, países asiáticos. É resultado de uma realocação muito forte da população, praticamente no mundo todo, buscando os grandes centros de atividade, aumento da disponibilidade de crédito a preços muito baixos, que gerou uma entrada de capitais e, portanto, uma facilidade de acesso. Essa acumulação de demanda é que gerou o aumento de preços.
Como a crise afetou o mercado imobiliário na Espanha?
Principalmente afetando a produção. Durante os dois últimos anos foi absorvido o excesso de oferta, e hoje há um problema de déficit de oferta em alguns lugares, e não é um déficit numérico, mas de localização. Em Madri e nos grandes centros, esse movimento é mais acentuado. Em termos gerais na Espanha, não podemos dizer que nos falta habitação, há sim uma falta de imóveis em algumas regiões específicas. Hoje, as vendas estão em 50% do pico histórico, que foi de 900 mil habitações comercializadas em 2004. Atualmente, estamos em 500 mil. Não estamos no pico, mas também não estamos no zero. Já em relação às construções, entretanto, estamos no mínimo histórico, voltamos aos anos 1980. Nos próximos anos, vamos ter um tremendo problema de escassez (de construções).
Qual a situação atual das habitações públicas no mercado imobiliário espanhol?
Apesar de termos tido em nossa economia as mesmas pressões demográficas que sofreram outros países, hoje não temos problemas de habitações públicas em mau estado ou de áreas residenciais deterioradas. O sistema de política habitacional foi muito importante em sua primeira fase, entre os anos de 1950 e 1980, e logo perdeu peso nos últimos vinte anos. Mas esteve crescente, contribuindo para a renovação urbana nas zonas em que as famílias tinham nível de renda médio, ou médio-baixo. Há muitas experiências de mudança e melhora nos bairros com habitações públicas. E como consequência da criação de um entorno atrativo, os próprios habitantes converteram essas regiões em bairros "ricos".
Quais as características das habitações públicas?
Pelo peso que tinham e têm, as habitações públicas determinam as características do mercado. Na média, as unidades têm entre 80 m2 e 90 m2. Uma curiosidade: o segundo banheiro foi uma introdução das habitações públicas ao mercado. Antes dessa determinação, a maioria dos imóveis, incluindo os privados, tinha apenas um banheiro e um lavabo.
Como funciona o sistema espanhol de políticas de habitação pública?
A política de habitação pública na Espanha tem duas grandes áreas: uma é a construção de novas habitações públicas, e a outra é a reconversão de habitações existentes em habitações públicas, ou que podem receber ajuda pública.
E como foi o desenvolvimento dessa política?
Existem dois períodos relevantes no desenvolvimento das políticas de habitação na Espanha. O primeiro vai até o final dos anos de 1980, quando nossa economia modifica sua estrutura e ingressa na União Europeia, o que nos leva a ajustar todas as normas e leis. Entre 1960 e 1980 o número de habitações públicas lançadas por mês era equivalente à metade do total de lançamentos. Isso significa dizer que o âmbito de atuação das políticas públicas era 50% do mercado.
Neste período, qualquer medida de política pública automaticamente se espalhava e se implantava como norma, dando grande poder à política habitacional, que influencia fortemente os níveis de qualidade, condições de preço e tipologia de todas as habitações lançadas, praticamente controlando o mercado. O outro período segue do final dos anos 1980 em diante, em que a relevância das habitações públicas diminui na Espanha, com uma forte redução deste tipo de construção em relação ao número de novas habitações construídas anualmente no país.
A que se deve esta redução?
Os economistas gostam de dizer, e me incluo neste grupo, que é o efeito do mercado. No primeiro período tínhamos um déficit de habitações calculado em 2,5 milhões de unidades, e a partir dos anos de 1980 este problema desaparece e dá lugar a outro problema, o acesso à habitação. A partir dos anos 1990, o mercado passa a determinar as características de habitação no país. Neste período, o alcance das políticas públicas é reduzido, e o governo perde o poder de determinar preços.
O que gerou o forte ciclo de crescimento no primeiro período?
Algumas das razões que geraram o elevado ritmo de construções verificado no primeiro período são semelhantes às vivenciadas pelo Brasil. Na década de 1960, tivemos um forte crescimento demográfico, com grandes deslocamentos de população, isso gerou uma pressão demográfica brutal nas cidades. Muitos desses que chegavam às cidades não encontravam locais para morar, por isso a política de habitação foi tratada como prioritária, com o desenvolvimento de medidas para incentivar as edificações.
O primeiro plano vai de 1955 a 1960, com medidas para facilitar ao Estado a construção de habitações sociais para os primeiros fluxos de migrantes que chegavam a Madri e Barcelona. Naqueles anos o Estado não tinha fundos suficientes, então o plano foi um absoluto desastre. Foram mudadas as condições e o plano desenvolvido entre 1960 e 1975 obteve sucesso. Ele conseguiu aumentar o número de construção de habitações públicas em 50% e impulsionou a criação de uma indústria de edificação privada forte. Esse período tem características específicas: enormes investimentos, poucos fundos, e muita competição pelos fundos existentes, que também eram disputados pela indústria exportadora, pela indústria automobilística e pelo setor de serviços.
E quais foram as mudanças fundamentais para o sucesso deste plano?
O primeiro passo foi retirar do âmbito do poder público o processo de construção. Ou seja, deixar o mercado prover, incentivando a produção privada. Nos primeiros vinte anos a maior parte dos recursos foram dedicados ao incentivo à oferta. Mas como o Estado não tinha fundos para financiar todo o processo, a solução foi financiar os diferenciais, de fundos e de taxas de juros, necessários para a construção. As leis foram modificadas para agilizar o processo de transmissão do imóvel. A regulação também foi usada para incentivar o setor privado, com linhas especiais de financiamento. O sistema financeiro, na época, era fortemente regulado, mas os bancos, e em especial as Caixas, foram obrigados a investir 20% de seus depósitos no financiamento à habitação. Em um mercado em que não havia crédito, este era um atrativo muito importante. Outra medida foi incentivar a construção do modo mais rápido possível. Isso foi feito por meio de uma política generalista, para a qual todo mundo poderia ter uma casa, desde que pudesse obter um crédito. Isso incentivava muito o construtor, porque gerava demanda, que era aumentada pela oferta de crédito.
Mas este modo de construção mais acelerado não afetava a qualidade dos imóveis produzidos?
A política de habitação previu isso, e estabeleceu controles bastante fortes e intensos de qualidade, através do mercado e das administrações públicas, e também pelos colégios profissionais (arquitetura e engenharia), dando a eles a exclusividade no controle dos planos e projetos de construção e forçando-os um pouco a zelar pela qualidade do produto.
Qual percentual destes imóveis era destinado à locação?
Era baixo. Isso porque as mudanças regulatórias e a intensificação da política pública fechavam um ciclo que só tinha uma saída: a propriedade do imóvel. Percebemos que a demanda só conseguia acelerar o ciclo de produção de imóveis quando o produto final fosse vendido. Porque a alternativa de aluguel não era viável para construtoras que eram pequenas no início, cujo trabalho principal era construir, e não gerenciar os imóveis. Não havia um sistema bem definido de aluguéis, então a saída mais rápida era a venda. Isso é um dos motivos que explicam o forte crescimento da taxa de propriedade na Espanha desde os anos 1970 , até chegar aos 89% atuais.
Quais as características do comprador médio?
Temos um sistema generalista, que segue o princípio da constituição que diz que todos têm direito a uma moradia, e portanto qualquer um pode adquirir uma habitação pública. Atualmente, essa generalidade está restrita a famílias com nível de renda médio, a famílias que consigam convencer os agentes de financiamento de sua capacidade de pagamento. Hoje, os casais jovens têm preferência na compra de habitações públicas, e também as famílias de baixa renda que estão comprando seu primeiro imóvel.
Fonte: Bruno de Vizia / Revista Construção Mercado
Nenhum comentário:
Postar um comentário