Tem plena validade a mutação
contratual decorrente do consenso dos contratantes ao operarem o
contrato, mesmo que sem nova formalização, passível a nova operação
contratual de ser provada através de todos os meios disponíveis em lei.
1. Os negócios, como quaisquer relacionamentos, evoluem e, sob o prisma contratual, findam sendo celebrados novos ajustes, por vezes através da criação de novos moldes pactuais. Sempre buscando a segurança que emana de um pacto escrito, os contratantes se esforçam na descrição do negócio que pretendem encetar ou das novas condições, para disciplinar o relacionamento do melhor modo possível.
Mas não raro, impera a indolência, quiçá dolosa, de uma das partes,
findando-se naquelas situações em que o combinado não é escrito, ao
menos a tempo. A jurisprudência e a doutrina já apreciaram situações do
gênero e, em matéria de locação imobiliária, talvez o melhor exemplo
resida na consideração de lapsos entre contratos, para a concessão do
direito à renovação do contrato de locação comercial, malgrado a
exigência de prazo contratual mínimo ou da soma de prazos ininterruptos,
presente no artigo 51 – II, da Lei n. 8.245/91.
2. Não é somente através de novos pactos que os interessados se acertam, valendo-se por vezes, de paulatinas mutações no exercício do contrato, mutações consensuais até que convenha - bem ou mal - a uma das partes, apontá-la e tentar qualificá-la como “infração” hábil à rescisão e à imposição de penas ou à cobrança de indenizações. Não parece razoável se pensar em descumprimento contratual, nessas hipóteses.
Cumpre preliminarmente ter em mente que existem normas, “cláusulas
gerais” francamente adotadas pelo Código Civil, realçando a preservação
da boa-fé objetiva[1] e determinando a
perseguição do equilíbrio das posições dos contratantes no negócio. A
atenção a estes pressupostos por certo conduzirá à melhor análise de
cada situação concreta.
E dentre tais “cláusulas gerais” há de ser destacada a previsão do
artigo 422, do Código Civil, forte ao exigir atenção à boa-fé e à
probidade não somente quando da celebração do contrato, mas também, na
sua execução (que talvez se sintetize na exigência de comportamento leal
de todos os pactuantes), mote destas notas.
3. Se a repentina alegação de infração diz com a forma de entender o ajuste, é plenamente aplicável a regra de interpretação de contratos “Talis enim proesumitur proecessisse titulus, qualis apparte usus et possessio”, brocardo claramente explicado – lição tradicional – por Carvalho de Mendonça[2]: “Entretanto, se as partes interpretaram suas convenções de um certo modo pela observância das cláusulas contratuais durante um certo período, essa forma de observância servirá de norma na hipótese de um litígio ulterior para dúvidas de execução que puderem se suscitar”.
E, na igualmente preciosa lição de Caio Mario da Silva Pereira[3],
“a doutrina acrescenta que o intérprete deve cogitar de como o contrato
tem sido anteriormente cumprido pelas partes, pois que são elas o
melhor juiz de sua hermenêutica, devendo considerar-se que, se se
executou num dado sentido, é porque entenderam os contratantes que esta
era a sua verdadeira intenção.”.
Nessa lógica, o Código Comercial[4] dispunha no
seu artigo 131 acerca das regras de interpretação das cláusulas
contratuais, impondo: “3. o fato dos contraentes posterior ao contrato,
que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da
vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato”.
Inferir a verdadeira intenção dos contratantes é essencial à análise e, tanto o artigo 85, do antigo Código Civil[5], quanto o artigo 112 do Código de 2002 deram supremacia à “intenção”, sobre “o sentido literal da linguagem”.
Recordando-se novamente o artigo 131, do Código Comercial, apura-se
quão consolidada é a compreensão de que “4. o uso e prática geralmente
observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente o
costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a
qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras”,
como previa aquele Diploma, após definir que “1. a inteligência simples e
adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e
natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita
significação das palavras”. E parece evidente que a melhor exibição da
“intenção”, será a prática, a operação concretizada pelos interessados.
Situação com conseqüências semelhantes ocorre quando - e a prática é
comum - são utilizados “modelos” (e os formulários colhidos na internet
pouco diferem daqueles antigamente vendidos em papelarias) preenchidos
com a menção a um ou outro item[6] da relação.
São, portanto, precariamente – sob o prisma da exatidão dos dizeres -
assumidas as disposições dessas minutas, por evidente desatenção dos
pactuantes.
4. Sob o aspecto da existência de dúvida em contrato de adesão ou mesmo, naqueles contratos que praticamente o sejam, deve ser recordado um conceito presente no antigo Código Civil, no novo Código, no Código de Defesa do Consumidor e em tantos outros diplomas, lembrando Clóvis Bevilaqua[7]: “Na dúvida, a cláusula deve interpretar-se contra o que estipula e a favor do que se obriga”.
Trata-se de conclusão sedimentada[8] e que se aplica
em um sem número de situações. No mercado das locações, não é de hoje
que grandes locadores utilizam minutas padronizadas (vide, por exemplo,
os contratos em shopping centers, idênticos para centenas de locações).
5. Em prosseguimento: caso se entenda, hipoteticamente, existente infração (que não se mescla com dúvida de interpretação), restaria analisar a presença de excludente de ilicitude, dada a contumaz concordância manifestada pelas partes (em especial, pela que entendeu de passar a alegar) até o surgimento da alegação.
Vem a propósito a síntese do Professor Francisco Amaral[9]:
“Ainda como excludente de ilicitude, se bem que não prevista no Código
Civil, temos o consentimento do ofendido (“volenti non fit injuria”). Se
o prejudicado consente na lesão a seu próprio direito, não há ilicitude
no comportamento do agente e o dano não é indenizável”.
6. Enfrentando-se situação que não tenha se mostrado adequada às hipóteses anteriores, vale perceber que nem sempre há de ocorrer condenação legal, quando vista alteração (frisa-se: quando exista mesmo a inovação, ao arrepio do intento comum). É jurisprudencial que somente se repute infracional, a mudança que efetivamente se mostre lesiva economicamente à outra parte.
Pois bem, em matéria de locação, já se julgou que: “Despejo – Infração
Contratual – Alteração da destinação do imóvel – Prejuízo para o locador
– Inexistência – Descaracterização: A mudança do destino do prédio
condenada pela lei é substancial, isto é, a que modifica o valor
econômico do imóvel ou gera conceito ético depreciativo a respeito do
senhorio” [10].
7. A doutrina e a jurisprudência sempre exigiram gravidade, para então cogitar-se da rescisão do contrato de locação. Décadas atrás, em 1952, expressando a compreensão da época, ensinavam Luiz Antonio de Andrade e J. J. Marques Filho[11]: “... não constituir motivo de rescisão, a instalação de pequena oficina em um dos cômodos de uso residencial; o fato de manter o locatário pequeno estabelecimento de ensino em um dos pavimentos do prédio locado para moradia; a mudança do ramo de negócio do locatário de prédio comercial diverso do que consta do contrato...”.
Resumindo a conclusão moderna, Francisco Carlos Rocha de Barros[12]:
“Não é difícil localizar decisões judiciais que, embora reconhecendo a
prática de infrações, consideram-nas irrelevantes para os fins deste
artigo”, comentando o artigo 9º, inciso II da Lei n. 8245/91 (que dispõe
sobre o desfazimento da locação “em decorrência da prática de infração
legal ou contratual”).
É interessante observar, de resto, diante das vastas análises
realizadas pela jurisprudência e pela doutrina, quais são os casos
realmente considerados relevantes, hábeis para a caracterização de
infração a ponto, por sinal, de até impedirem a renovação judicial da
locação. São somente aqueles que tragam efetivos[13]
danos ou riscos à outra parte, exemplificando-se (sempre lembrada a
necessidade de averiguar-se cada caso concreto e suas nuances) com as
situações de falta de contratação de seguro suficiente, de danos físicos
ao imóvel, de extinção da garantia da locação, de sublocação sem
autorização, de não pagamento de tributos que repercutam no patrimônio
do locador, a par da infração ao dever maior do inquilino: pagar o
aluguel e os encargos.
8. Desde que o objeto da discórdia (a evolução da operação do contrato) não está obviamente expresso em contrato, caberia indagar acerca da possibilidade legal de produzir-se a prova da mutação desse mesmo contrato, sabido que a parte adversária, na hipótese, se bateria pela leitura literal do pacto que fora firmado.
A resposta haveria de ser positiva. Possível a prova testemunhal,
quando se cuidar de vício de consentimento e das suas conseqüências e,
situação corriqueira na espécie destas observações, se houver “começo de
prova por escrito”, na forma prevista pelo artigo 402, do CPC,
evidenciado que por certo, tal prova existirá. Buscando exemplos tão
somente em lides que se refiram às questões imobiliárias, será fácil
identificar a possibilidade, sempre respeitadas as circunstâncias
concretas, de prova testemunhal para debater o adimplemento em contrato
de promessa de venda e compra[14], a corretagem imobiliária[15].
É admissível a produção de outros meios[16] de
prova: em alguns casos, é bastante viável a apuração da verdade por
perícia (exame, vistoria, avaliação), pela juntada de documentos
distintos ao contrato (recibos, fotografias, memorandos, matérias
jornalísticas) e até através de inspeção judicial.
9. Realce conveniente é que nessas situações que perduram ao longo do tempo e contem (ou na visão de quem vai alegar, somente pareçam contar) com o consenso dos interessados, existe a necessidade de, em se desejando acusar infração, proceder ao formal apontamento do intento, antes de manejar-se ação judicial.
Recorda-se a previsão do artigo 397, parágrafo único[17], do Código Civil para concluir que a falta de notificação prévia, fadaria eventual e precipitado processo judicial, à extinção.
Até porque as relações informais ou por prazo indeterminado são usuais
na locação de imóveis urbanos, como ocorre, por exemplo, quando vencido o
período contratado para a locação e continuem a ocorrer o recebimento
dos alugueis pelo locador, a aplicação dos reajustes antes pactuados (ou
mesmo a aplicação de novos índices), a mantença de qualquer
relacionamento que não exteriorize o intento de pretender o
proprietário, a devolução do imóvel alugado. Verificadas tais relações,
considerar-se-á mantida a locação e bem por isso, a lei especial exige[18] a notificação prévia à ação de despejo.
Realmente, fixadas determinadas regras por ajuste formal, ao depois
modificadas por consenso, o novo intento configuraria, ele sim,
alteração do desempenho contratual, do estado da continuada relação
entre as partes, devendo ser manifestado em interpelação, pena de
impossibilitar-se o aparelhamento de demanda. Faltando aquela,
impossível a ação.
10. Possível, portanto, a conclusão (que como visto, é perfeitamente coerente com a inteligência lapidada durante anos, nada inaugura em nosso direito) acerca da plena validade da mutação contratual, decorrente do consenso dos contratantes ao operarem o contrato, mesmo que sem nova formalização, passível a nova operação contratual de ser provada através de todos os meios disponíveis em lei.
Notas
[1] “Os negócios jurídicos devem ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”
(art. 113, do Código Civil).
[2] CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio.
Contratos no Direito Civil Brasileiro. atualização por José de Aguiar
Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1957, Tomo I, p.18.
[3] SILVA PEREIRA, Caio Mario. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1981, volume III, p.48/49.
[4] Lei n. 556, de 25/06/1850.
[5] “Art. 85 – Nas declarações de vontade se
atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”
(Código Civil de 1916)
[6] No mais das vezes, são preenchidos nomes e
dados dos contratantes, valor do aluguel, endereço do imóveis e um prazo
para a locação, nem sempre discutido.
[7] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados
Unidos do Brasil comentado. Edição histórica, 2ª tiragem .Rio de
Janeiro: Rio, 1976, p. 206.
[8] Não vindo à toa a lembrança da expressão
latina, a frisar a antiguidade dessa compreensão: “In istipulationibus,
cum quaeritur quid actum sit, verba contra stipulatorem interpretanta
sunt”.
[9] Os atos ilícitos “in” O novo Código Civil – estudos em homenagem ao prof. Miguel Reale, São Paulo: LTR, 2003, p.155.
[10] Apelação com revisão 297.086, 2º TACSP, relator Rodrigues da Silva “in” Boletim AASP 1722/1.
[11] ANDRADE, Luiz Antonio de e MARQUES FILHO, J. J. Locação Predial Urbana. São Paulo: Max Limonad, 1952, p. 306.
[12]ROCHA DE BARROS, Francisco Carlos. Comentários à Lei do Inquilinato. São Paulo: Saraiva, 1995, p.48.
[13] TJSP - Apelação com Revisão n° 858
749-00/2 (relatora designada: Desembargadora Silvia Rocha Gouvêa;
relator sorteado: Desembargador Carlos Nunes, julgamento aos
17/02/2009): “Assim, promovendo os proprietários a demolição das
construções destinadas ao funcionamento de posto de combustíveis para o
fim de construir prédio para alocação de uma agência bancária, por certo
que o estado de conservação do imóvel pouco importava aos locadores, de
vez que toda a estrutura então existente seria posta abaixo. (...). Não
havia mesmo causa para indenizar os locadores, como foi extensamente
tratado no voto do E. Relator sorteado, porque, em suma, eles demoliram o
posto de gasolina sobre o qual incidia a locação, para construir outro
prédio, donde danos causados ao antigo imóvel não lhes causou nenhum
prejuízo, cuja origem, parece-me, já era discutível, diante da
antigüidade do imóvel original e do tempo decorrido entre o fim da
locação e a vistoria realizada Por outro lado, se não há danos, não há
causa para incidência da cláusula penal ou multa compensatória, porque
ela visa compor perdas e danos previamente estabelecidos, para o caso de
desocupação voluntária do imóvel pelo inquilino ou por infração a
alguma cláusula do contrato, neste caso a afirmada falta de manutenção
do imóvel locado. Ora, se a falta de manutenção não implicou em
prejuízos, não há causa para imposição da multa que serviria para
ressarci-los. Por tais razões não merece provimento o apelo dos
autores.” (extraído do corpo do acórdão).
[14] STJ-RJ 180/61, ainda com base no artigo 141, do Código Civil anterior.
[15]STJ, 2ª Seção, Embargos de Declaração no
RESP 263.387, relator Ministro Castro Filho, julgamento aos 14/08/2002;
STJ – Revista dos Tribunais 173/31, 802/184 são exemplos.
[16]Num caso, a Locadora acusou infração
contratual, pois a locatária deveria se restringir ao comércio de
calçados, mas passara a prestar serviços de engraxate e a vender
vestuário. O TJSP, em acórdão relatado pelo Desembargador Felipe
Ferreira prestigiou a posição da locatária, chegando a dispor: “... a
locadora permitiu que a locatária exercesse outros tipos de atividades,
concordando com a reforma realizada, recebendo o aluguel pelo
faturamento bruto ciente de que eram vendidos produtos de vestuário, bem
como determinou a confecção de um cartaz luminoso com os dizeres
'engraxataria'. Desta forma, tangencia a má-fé a alegação de que deveria
haver contratação por escrito alterando a finalidade da loja...”,
possível ao leitor supor quais as provas produzidas naquele processo,
acerca da mutação contratual. (TJSP, Apelação com revisão n°
1.069.605-0/1, julgamento aos 05/05/2008, trecho extraído do corpo do
acórdão).
[17] Correspondente ao artigo 960 do Código
anterior, dispõe tal parágrafo único: “Não havendo termo, a mora se
constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial”.
[18] Artigo 57, da Lei n. 8245/91.
Autor: Jaques Bushatsky
Fonte: Revista Jus Navigandi
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