terça-feira, 16 de outubro de 2012

LOCAÇÃO DE IMÓVEL URBANO: MUTAÇÕES CONTRATUAIS NÃO FORMALIZADAS


Tem plena validade a mutação contratual decorrente do consenso dos contratantes ao operarem o contrato, mesmo que sem nova formalização, passível a nova operação contratual de ser provada através de todos os meios disponíveis em lei.

1. Os negócios, como quaisquer relacionamentos, evoluem e, sob o prisma contratual, findam sendo celebrados novos ajustes, por vezes através da criação de novos moldes pactuais. Sempre buscando a segurança que emana de um pacto escrito, os contratantes se esforçam na descrição do negócio que pretendem encetar ou das novas condições, para disciplinar o relacionamento do melhor modo possível.
Mas não raro, impera a indolência, quiçá dolosa, de uma das partes, findando-se naquelas situações em que o combinado não é escrito, ao menos a tempo. A jurisprudência e a doutrina já apreciaram situações do gênero e, em matéria de locação imobiliária, talvez o melhor exemplo resida na consideração de lapsos entre contratos, para a concessão do direito à renovação do contrato de locação comercial, malgrado a exigência de prazo contratual mínimo ou da soma de prazos ininterruptos, presente no artigo 51 – II, da Lei n. 8.245/91.

2. Não é somente através de novos pactos que os interessados se acertam, valendo-se por vezes, de paulatinas mutações no exercício do contrato, mutações consensuais até que convenha - bem ou mal - a uma das partes, apontá-la e tentar qualificá-la como “infração” hábil à rescisão e à imposição de penas ou à cobrança de indenizações. Não parece razoável se pensar em descumprimento contratual, nessas hipóteses.
Cumpre preliminarmente ter em mente que existem normas, “cláusulas gerais” francamente adotadas pelo Código Civil, realçando a preservação da boa-fé objetiva[1] e determinando a perseguição do equilíbrio das posições dos contratantes no negócio. A atenção a estes pressupostos por certo conduzirá à melhor análise de cada situação concreta.
E dentre tais “cláusulas gerais” há de ser destacada a previsão do artigo 422, do Código Civil, forte ao exigir atenção à boa-fé e à probidade não somente quando da celebração do contrato, mas também, na sua execução (que talvez se sintetize na exigência de comportamento leal de todos os pactuantes), mote destas notas.

3. Se a repentina alegação de infração diz com a forma de entender o ajuste, é plenamente aplicável a regra de interpretação de contratos “Talis enim proesumitur proecessisse titulus, qualis apparte usus et possessio”, brocardo claramente explicado – lição tradicional – por Carvalho de Mendonça[2]: “Entretanto, se as partes interpretaram suas convenções de um certo modo pela observância das cláusulas contratuais durante um certo período, essa forma de observância servirá de norma na hipótese de um litígio ulterior para dúvidas de execução que puderem se suscitar”.
E, na igualmente preciosa lição de Caio Mario da Silva Pereira[3], “a doutrina acrescenta que o intérprete deve cogitar de como o contrato tem sido anteriormente cumprido pelas partes, pois que são elas o melhor juiz de sua hermenêutica, devendo considerar-se que, se se executou num dado sentido, é porque entenderam os contratantes que esta era a sua verdadeira intenção.”.
Nessa lógica, o Código Comercial[4] dispunha no seu artigo 131 acerca das regras de interpretação das cláusulas contratuais, impondo: “3. o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato”.
Inferir a verdadeira intenção dos contratantes é essencial à análise e, tanto o artigo 85, do antigo Código Civil[5], quanto o artigo 112 do Código de 2002 deram supremacia à “intenção”, sobre “o sentido literal da linguagem”.
Recordando-se novamente o artigo 131, do Código Comercial, apura-se quão consolidada é a compreensão de que “4. o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras”, como previa aquele Diploma, após definir que “1. a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”. E parece evidente que a melhor exibição da “intenção”, será a prática, a operação concretizada pelos interessados.
Situação com conseqüências semelhantes ocorre quando - e a prática é comum - são utilizados “modelos” (e os formulários colhidos na internet pouco diferem daqueles antigamente vendidos em papelarias) preenchidos com a menção a um ou outro item[6] da relação. São, portanto, precariamente – sob o prisma da exatidão dos dizeres - assumidas as disposições dessas minutas, por evidente desatenção dos pactuantes.

4. Sob o aspecto da existência de dúvida em contrato de adesão ou mesmo, naqueles contratos que praticamente o sejam, deve ser recordado um conceito presente no antigo Código Civil, no novo Código, no Código de Defesa do Consumidor e em tantos outros diplomas, lembrando Clóvis Bevilaqua[7]: “Na dúvida, a cláusula deve interpretar-se contra o que estipula e a favor do que se obriga”.
Trata-se de conclusão sedimentada[8] e que se aplica em um sem número de situações. No mercado das locações, não é de hoje que grandes locadores utilizam minutas padronizadas (vide, por exemplo, os contratos em shopping centers, idênticos para centenas de locações).

5. Em prosseguimento: caso se entenda, hipoteticamente, existente infração (que não se mescla com dúvida de interpretação), restaria analisar a presença de excludente de ilicitude, dada a contumaz concordância manifestada pelas partes (em especial, pela que entendeu de passar a alegar) até o surgimento da alegação.
Vem a propósito a síntese do Professor Francisco Amaral[9]: “Ainda como excludente de ilicitude, se bem que não prevista no Código Civil, temos o consentimento do ofendido (“volenti non fit injuria”). Se o prejudicado consente na lesão a seu próprio direito, não há ilicitude no comportamento do agente e o dano não é indenizável”.

6. Enfrentando-se situação que não tenha se mostrado adequada às hipóteses anteriores, vale perceber que nem sempre há de ocorrer condenação legal, quando vista alteração (frisa-se: quando exista mesmo a inovação, ao arrepio do intento comum). É jurisprudencial que somente se repute infracional, a mudança que efetivamente se mostre lesiva economicamente à outra parte.
Pois bem, em matéria de locação, já se julgou que: “Despejo – Infração Contratual – Alteração da destinação do imóvel – Prejuízo para o locador – Inexistência – Descaracterização: A mudança do destino do prédio condenada pela lei é substancial, isto é, a que modifica o valor econômico do imóvel ou gera conceito ético depreciativo a respeito do senhorio” [10].

7. A doutrina e a jurisprudência sempre exigiram gravidade, para então cogitar-se da rescisão do contrato de locação. Décadas atrás, em 1952, expressando a compreensão da época, ensinavam Luiz Antonio de Andrade e J. J. Marques Filho[11]: “... não constituir motivo de rescisão, a instalação de pequena oficina em um dos cômodos de uso residencial; o fato de manter o locatário pequeno estabelecimento de ensino em um dos pavimentos do prédio locado para moradia; a mudança do ramo de negócio do locatário de prédio comercial diverso do que consta do contrato...”.
Resumindo a conclusão moderna, Francisco Carlos Rocha de Barros[12]: “Não é difícil localizar decisões judiciais que, embora reconhecendo a prática de infrações, consideram-nas irrelevantes para os fins deste artigo”, comentando o artigo 9º, inciso II da Lei n. 8245/91 (que dispõe sobre o desfazimento da locação “em decorrência da prática de infração legal ou contratual”).
É interessante observar, de resto, diante das vastas análises realizadas pela jurisprudência e pela doutrina, quais são os casos realmente considerados relevantes, hábeis para a caracterização de infração a ponto, por sinal, de até impedirem a renovação judicial da locação. São somente aqueles que tragam efetivos[13] danos ou riscos à outra parte, exemplificando-se (sempre lembrada a necessidade de averiguar-se cada caso concreto e suas nuances) com as situações de falta de contratação de seguro suficiente, de danos físicos ao imóvel, de extinção da garantia da locação, de sublocação sem autorização, de não pagamento de tributos que repercutam no patrimônio do locador, a par da infração ao dever maior do inquilino: pagar o aluguel e os encargos. 

8. Desde que o objeto da discórdia (a evolução da operação do contrato) não está obviamente expresso em contrato, caberia indagar acerca da possibilidade legal de produzir-se a prova da mutação desse mesmo contrato, sabido que a parte adversária, na hipótese, se bateria pela leitura literal do pacto que fora firmado.
A resposta haveria de ser positiva. Possível a prova testemunhal, quando se cuidar de vício de consentimento e das suas conseqüências e, situação corriqueira na espécie destas observações, se houver “começo de prova por escrito”, na forma prevista pelo artigo 402, do CPC, evidenciado que por certo, tal prova existirá. Buscando exemplos tão somente em lides que se refiram às questões imobiliárias, será fácil identificar a possibilidade, sempre respeitadas as circunstâncias concretas, de prova testemunhal para debater o adimplemento em contrato de promessa de venda e compra[14], a corretagem imobiliária[15].
É admissível a produção de outros meios[16] de prova: em alguns casos, é bastante viável a apuração da verdade por perícia (exame, vistoria, avaliação), pela juntada de documentos distintos ao contrato (recibos, fotografias, memorandos, matérias jornalísticas) e até através de inspeção judicial.

9. Realce conveniente é que nessas situações que perduram ao longo do tempo e contem (ou na visão de quem vai alegar, somente pareçam contar) com o consenso dos interessados, existe a necessidade de, em se desejando acusar infração, proceder ao formal apontamento do intento, antes de manejar-se ação judicial.
Recorda-se a previsão do artigo 397, parágrafo único[17], do Código Civil para concluir que a falta de notificação prévia, fadaria eventual e precipitado processo judicial, à extinção.
Até porque as relações informais ou por prazo indeterminado são usuais na locação de imóveis urbanos, como ocorre, por exemplo, quando vencido o período contratado para a locação e continuem a ocorrer o recebimento dos alugueis pelo locador, a aplicação dos reajustes antes pactuados (ou mesmo a aplicação de novos índices), a mantença de qualquer relacionamento que não exteriorize o intento de pretender o proprietário, a devolução do imóvel alugado. Verificadas tais relações, considerar-se-á mantida a locação e bem por isso, a lei especial exige[18] a notificação prévia à ação de despejo.
Realmente, fixadas determinadas regras por ajuste formal, ao depois modificadas por consenso, o novo intento configuraria, ele sim, alteração do desempenho contratual, do estado da continuada relação entre as partes, devendo ser manifestado em interpelação, pena de impossibilitar-se o aparelhamento de demanda. Faltando aquela, impossível a ação.

10. Possível, portanto, a conclusão (que como visto, é perfeitamente coerente com a inteligência lapidada durante anos, nada inaugura em nosso direito) acerca da plena validade da mutação contratual, decorrente do consenso dos contratantes ao operarem o contrato, mesmo que sem nova formalização, passível a nova operação contratual de ser provada através de todos os meios disponíveis em lei.

Notas

[1] “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (art. 113, do Código Civil).
[2] CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no Direito Civil Brasileiro. atualização por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1957, Tomo I, p.18.
[3] SILVA PEREIRA, Caio Mario. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1981, volume III, p.48/49.
[4] Lei n. 556, de 25/06/1850.
[5] “Art. 85 – Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem” (Código Civil de 1916)
[6] No mais das vezes, são preenchidos nomes e dados dos contratantes, valor do aluguel, endereço do imóveis e um prazo para a locação, nem sempre discutido.
[7] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Edição histórica, 2ª tiragem .Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 206.
[8] Não vindo à toa a lembrança da expressão latina, a frisar a antiguidade dessa compreensão: “In istipulationibus, cum quaeritur quid actum sit, verba contra stipulatorem interpretanta sunt”.
[9] Os atos ilícitos “in” O novo Código Civil – estudos em homenagem ao prof. Miguel Reale, São Paulo: LTR, 2003, p.155.
[10] Apelação com revisão 297.086, 2º TACSP, relator Rodrigues da Silva “in” Boletim AASP 1722/1.
[11] ANDRADE, Luiz Antonio de e MARQUES FILHO, J. J. Locação Predial Urbana. São Paulo: Max Limonad, 1952, p. 306.
[12]ROCHA DE BARROS, Francisco Carlos. Comentários à Lei do Inquilinato. São Paulo: Saraiva, 1995, p.48.
[13] TJSP - Apelação com Revisão n° 858 749-00/2 (relatora designada: Desembargadora Silvia Rocha Gouvêa; relator sorteado: Desembargador Carlos Nunes, julgamento aos 17/02/2009): “Assim, promovendo os proprietários a demolição das construções destinadas ao funcionamento de posto de combustíveis para o fim de construir prédio para alocação de uma agência bancária, por certo que o estado de conservação do imóvel pouco importava aos locadores, de vez que toda a estrutura então existente seria posta abaixo. (...). Não havia mesmo causa para indenizar os locadores, como foi extensamente tratado no voto do E. Relator sorteado, porque, em suma, eles demoliram o posto de gasolina sobre o qual incidia a locação, para construir outro prédio, donde danos causados ao antigo imóvel não lhes causou nenhum prejuízo, cuja origem, parece-me, já era discutível, diante da antigüidade do imóvel original e do tempo decorrido entre o fim da locação e a vistoria realizada Por outro lado, se não há danos, não há causa para incidência da cláusula penal ou multa compensatória, porque ela visa compor perdas e danos previamente estabelecidos, para o caso de desocupação voluntária do imóvel pelo inquilino ou por infração a alguma cláusula do contrato, neste caso a afirmada falta de manutenção do imóvel locado. Ora, se a falta de manutenção não implicou em prejuízos, não há causa para imposição da multa que serviria para ressarci-los. Por tais razões não merece provimento o apelo dos autores.” (extraído do corpo do acórdão).
[14] STJ-RJ 180/61, ainda com base no artigo 141, do Código Civil anterior.
[15]STJ, 2ª Seção, Embargos de Declaração no RESP 263.387, relator Ministro Castro Filho, julgamento aos 14/08/2002; STJ – Revista dos Tribunais 173/31, 802/184 são exemplos.
[16]Num caso, a Locadora acusou infração contratual, pois a locatária deveria se restringir ao comércio de calçados, mas passara a prestar serviços de engraxate e a vender vestuário. O TJSP, em acórdão relatado pelo Desembargador Felipe Ferreira prestigiou a posição da locatária, chegando a dispor: “... a locadora permitiu que a locatária exercesse outros tipos de atividades, concordando com a reforma realizada, recebendo o aluguel pelo faturamento bruto ciente de que eram vendidos produtos de vestuário, bem como determinou a confecção de um cartaz luminoso com os dizeres 'engraxataria'. Desta forma, tangencia a má-fé a alegação de que deveria haver contratação por escrito alterando a finalidade da loja...”, possível ao leitor supor quais as provas produzidas naquele processo, acerca da mutação contratual. (TJSP, Apelação com revisão n° 1.069.605-0/1, julgamento aos 05/05/2008, trecho extraído do corpo do acórdão).
[17] Correspondente ao artigo 960 do Código anterior, dispõe tal parágrafo único: “Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial”.
[18] Artigo 57, da Lei n. 8245/91.

Autor: Jaques Bushatsky
Fonte: Revista Jus Navigandi

Nenhum comentário:

Postar um comentário