A exigência de seguro-fiança por
corretora integrante do mesmo grupo da imobiliária que administra o
imóvel ou outra por ela indicada é prática abusiva porque implica venda
casada, restringe a concorrência e viola a liberdade do consumidor,
ensejando reprimendas pela Susep e pelo CADE.
Tornou-se uma prática bastante comum nas grandes cidades brasileiras a
exigência do chamado seguro-fiança locatício como garantia acessória aos
contratos de locação residencial no lugar da tradicional fiança. No
entanto, sob a aparente facilidade dada ao inquilino de deixar de
apresentar um fiador ou de diluir o valor do contrato do seguro-fiança
ao longo dos meses, as imobiliárias, ao indicar uma corretora de
seguros, violam a liberdade de contratar e, muitas vezes, lesionam os
contratos ao majorar os preços do seguro para patamares além daqueles
praticados pelo mercado, o que acaba passando despercebido pelo
inquilino em razão das peculiaridades desse mercado relevante.
De uma forma geral, nas locações residenciais, a venda do seguro-fiança é
feita por um corretor ou mesmo uma pessoa jurídica ligada à própria
imobiliária que administra o imóvel. Situação idêntica ocorria nos
contratos do sistema financeiro da habitação, em que o agente financeiro
exigia do mutuário, numa típica venda casada, a contratação do
seguro-habitacional obrigatório com companhia de seguros por ela
indicada. Essas situações foram fortemente repreendidas pelo Poder
Judiciário, por cercear o direito de liberdade dos mutuários, resultando
na edição do verbete nº 473 da Súmula do STJ, que dispõe: “O mutuário
do SFH não pode ser compelido a contratar o segurohabitacional
obrigatório com a instituição financeira mutuanteou com a seguradora por
ela indicada”.
A mesma razão de ser que levou a pacificação da jurisprudência do STJ
está presente no caso da administração de aluguéis e venda do
seguro-fiança concomitantes: o inquilino não pode ser compelido a
contratar o seguro dado em garantia com corretor indicado pela
administradora do imóvel.
Com efeito, é justamente na fase pré-contratual que o inquilino está
mais sujeito aos abusos das imobiliárias. Se não pactuar o seguro-fiança
por intermédio de corretora ligada à imobiliária e pelo valor que ela
lhe impõe, não se celebrará a locação. Nesse momento, falta-se com a
verdade; informações relevantes, como a possibilidade de se obter preço
menor para o mesmo seguro-fiança no mercado, são omitidas; abusa-se da
vulnerabilidade do consumidor/inquilino diante das peculiaridades do
aquecido mercado imobiliário, que envolve, em última análise, o direito
fundamental de moradia, compelindo os contratantes a curvarem-se perante
abusos sutis e bem disfarçados.
Em primeiro lugar, a negociação do seguro-fiança por corretor ligado à
administradora do imóvel tolhe a liberdade do consumidor de procurar e
negociar o melhor preço do seguro com outras corretoras no mercado, ao
mesmo tempo em que há a configuração de uma conduta anticompetitiva,
pois prejudica a livre-concorrência, impedindo que outras corretoras
pudessem vender o mesmo seguro, o que configura, simultaneamente,
infração à ordem econômica prevista no art. 36, I da Lei Antitruste, e
violação a direitos básicos do consumidor, conforme art. 6º, II, IV e
VII do CDC.
É verdade: o seguro-fiança locatício, que serve como garantia num
contrato de aluguel, é um produto impessoal disponível no mercado para
qualquer consumidor. Ao contrário da fiança, em que as características
pessoais do fiador repercutirão sobre o sucesso desse pacto acessório, o
seguro-fiança está posto no mercado a quem quiser contratar, somente
variando o valor cobrado por cada corretor, cuja função é basicamente
intermediar o negócio. Por isso, a vinculação do locatário a uma
corretora indicada pela imobiliária que caracteriza típico caso de venda
casada, lesando a regra do art. 36, § 3º, XVIII da Lei nº 12.529/2011 e
também a regra do art. 39, I do CDC.
A venda casada é apenas o primeiro passo de uma série de abusos. Ao
parcelar em várias vezes o valor do seguro-fiança, as corretoras
disfarçam preços abuivos que resultam em lucros arbitrários decorrentes
da negociação do seguro-fiança antes e durante a execução do contrato.
Talvez um primeiro indício do abuso que pode ser notado pelo consumidor é
a majoração do preço do seguro-fiança de um ano para o outro pela
corretora que intermedia o contrato, quando o que se vê, no dia a dia do
mercado, é a redução do prêmio do seguro, em razão da incidência do
bônus anual. Na verdade, pode-se estar diante de um contrato
geneticamente lesionado, o que pode ser desvendado numa pesquisa de
mercado depois do primeiro ano de vigência do seguro.
Em se constatando que o valor do seguro-fiança pago pelo inquilino é
superior àquele praticado no mercado, em condições de livre-concorrência
entre corretores, entende-se que o contrato de seguro-fiança já nasce
lesionado (Código Civil art. 157). Quando a corretora de seguros ligada à
imobiliária oferece ao inquilino uma proposta, ele é levado a pensar
que valor cobrado é aquele praticado no mercado. Um consumidor de
boa-fé não imaginará que administradoras chegam a cobrar pelo mesmo
seguro-fiança locatício valor bastante superior aquele que esse mesmo
produto é comercializado por outras corretoras. Por isso, é possível a
revisão do contrato, mesmo durante sua execução, como faculta o
Enunciado nº 291 do Conselho da Justiça Federal, que reza que “[n]as
hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o
lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico,
deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio
por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do
preço”.
Nesses casos, o valor da diferença representa cobrança de quantia
indevida, que deve ser repetida em dobro, com base no art. 42, parágrafo
único, do CDC ou no art. 940 do Código Civil. De todo modo, seja com
base na lei civil, seja com base na lei consumerista, o pagamento a
maior não é apenas um mau negócio, mas uma conduta proibida pelo art.
36, V do CDC, que caracteriza um indébito merecedor de revisão. A
propósito do tema, vale ressaltar que a jurisprudência do STJ firmou
entendimento que é perfeitamente possível a revisão do contrato mesmo
após o térmo do seu prazo de vigência, que é posição mais vantajosa para
o credor[1].
Não é incomum, diante da resistência do consumidor de se curvar diante
de um abuso dessa natureza, que a administradora do imóvel se recuse a
permitir a celebração do seguro-fiança com outra corretora, recusando-se
inclusive a receber o aluguel sem o pagamento do valor do
seguro-fiança. Neste caso, haverá espaço para consignação em pagamento, a
exemplo da hipótese do art. 164, I do CTN.
Também não é incomum a renovação do seguro-fiança pela própria
imobiliária, com supedâneo em cláusula abusiva que impõe a renovação
automática[2], independente da manifestação de
vontade do inquilino. No entanto, a conduta de enviar ou entregar, sem
solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço, deve
se equiparar ao fornecimento de amostras grátis, inexistindo obrigação
de pagamento (art. 39, III e parágrafo único do CDC). No mais, aplica-se
a teoria do abuso de direito, na modalidade tu quoque, que, segundo
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias “[i]mporta dizer que quem
viola determinada norma jurídica não poderá exercer a situação jurídica
que essa mesma norma lhe atribui” (Curso de direito civil, 2º ed.,
Salvador: JusPodivm, 2012, p. 195).
De toda forma, a situação exemplifica ainda caso que pode demandar a
atuação do Ministério Público e da Susep em defesa dos direitos
coletivos, conforme o Enunciado nº 23 do Conselho da Justiça Federal que
dita que: “a função social do contrato prevista no art. 421 do novo
Código Civil não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua
ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses
metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa
humana.”
Enfim, a sofisticação e sutileza de abusos dessa natureza escondidos em
práticas contratuais rotineiras podem passar despercebidos diante do
cidadão comum, o que reclama a sua repressão enérgica pela
Administração Pública Federal, ajudando a corrigir distorções no mercado
imobiliário e humanizando as relações contratuais que envolvem o
direito fundamental de moradia.
Notas
[1]. STJ: “Discute-se no REsp o interesse
recursal em apelação que versa sobre cláusulas de contrato de mútuo
hipotecário após a quitação de todas as prestações pelos recorrentes
(mutuários). O tribunal a quo considerou prejudicado o recurso por falta
de interesse recursal ao fundamento de que os mutuários haviam pago a
totalidade das prestações do contrato. Observa o Min. Relator que a
jurisprudência deste Superior Tribunal entende que o cumprimento da
obrigação assumida em contrato de adesão não retira do mutuário o
direito de discutir em ação revisional a legalidade das cláusulas
contratuais, visto que o adimplemento pode ter ocorrido apenas para
evitar sanções de natureza contratual e teria como finalidade não
incentivar a inadimplência. Isso porque, segundo os precedentes deste
Tribunal, se o entendimento fosse ao contrário, a inadimplência passaria
a ser exigida como condição para a ação no direito contratual, além de
que serviria de incentivo ao descumprimento dos contratos. Para o Min.
Relator, não há justificativa para não considerar o direito à
revisão após a quitação, uma vez que é mais vantajoso para o credor
receber todo o contrato para só depois se submeter a uma demanda em que,
se nela fosse vencido, teria de devolver o que foi pago a mais. Com
esse entendimento, a Turma deu provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 293.778-RS, DJ 20/8/2001, e REsp 565.235-RS, DJ 9/2/2005”.(REsp 904.769-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 2/12/2010).
[2]. A renovação só é viável se houver cláusula
expressa nesse sentido, conforme aconselha a boa técnica contratual, ex
vi do sarts. 111 e 539 do Código Civil.
Autor: Ricardo Marques de Almeida - Procurador Federal
Fonte: Revista Jus Navigandi
Nenhum comentário:
Postar um comentário