Sylvio Capanema
Uma das razões que explicam a longevidade da Lei do Inquilinato, que
vigora, praticamente inalterada, desde 1991, foi a necessidade de se
adotar um sistema equilibrado para a relação locatícia imobiliária
urbana, preservando sua equação econômica, de modo a atender os
interesses de locadores e locatários.
Alcançou-se, assim, a esperada estabilidade jurídica e econômica,
para um mercado de relevante densidade social, e até então tumultuado,
nervoso, em que as partes se comportavam como exércitos inimigos.
Uma das perversas consequências deste clima caótico era o crescimento
do déficit habitacional, em razão do desestímulo para que se investisse
na construção de novas unidades destinadas à locação.
Mas, por melhor que tenha sido a lei, não poderia ela resistir,
imaculada, durante mais de duas décadas, em que profundas mudanças
econômicas vieram a ocorrer em nossa sociedade.
A Lei 12.112/09, por exemplo, introduziu necessárias modificações de
natureza processual, com o objetivo nítido de agilizar a entrega da
prestação jurisdicional nas chamadas ações locatícias cujo retardamento
já vinha provocando turbulências no mercado.
Não alterou, entretanto, as regras de direito material, no que
concerne ao regime jurídico das locações residenciais e não
residenciais.
Ocorre que o crescimento quase explosivo do mercado imobiliário, em
todos os seus segmentos, produziu o surgimento de novos modelos de
locação, aos quais já não se aplicavam, adequadamente, as regras gerais
da Lei 8.245/91, elaborada em época ainda bastante tradicional.
Um dos mais engenhosos e de sofisticada estrutura jurídica, é o
sistema conhecido como “built to suit”, cuja equação econômica é
complexa, a exigir cuidadoso planejamento.
Neste novo modelo, o locador, que em geral é um investidor, adquire
um imóvel, promovendo, por si mesmo, ou por outrem, a construção ou a
sua substancial reforma, atendendo às especificações de um terceiro, que
assume, previamente, o compromisso de alugá-lo, por tempo determinado e
aluguel já avençado, de modo a remunerar o investimento feito pelo
locador.
Trata-se, portanto, de um empreendimento, sempre de grande vulto, o
que vem atraindo, cada vez mais o interesse de fundos imobiliários,
inclusive estrangeiros, além de entidades de previdência privada, todos
dispostos a investir no mercado de locações corporativas, atraídos pela
sua rentabilidade, além da maior segurança, já que está livre das
oscilações das bolsas de valores. Para os locatários, a opção pelo
“built to suit” pode representar significativas vantagens tributárias,
já que o preço será considerado despesa e não investimento.
Vislumbra-se, assim, na estrutura interna do sistema, uma promessa de
locação, feita pelo terceiro interessado, que assim evita imobilizar
expressivo capital na compra do terreno e na construção, além da
vantagem de poder se instalar em imóvel adequado às suas necessidades
físicas, cujas especificações são por ele formuladas.
Não será difícil perceber que o investidor dispende elevadas somas,
para operacionalizar o empreendimento global, com o objetivo de, através
dos futuros e garantidos aluguéis, já avençados, remunerar o capital
investido.
Para o êxito do modelo é indispensável: (i) que o tempo de duração do
contrato seja suficientemente longo para que o locador recupere o que
investiu e realize sua remuneração; (ii) que o aluguel represente o real
valor do mercado, e não possa ser reduzido; (iii) que seja vedada a
denúncia antecipada do contrato, por iniciativa do locatário, salvo
pagando adequada multa compensatória.
Na redação original do art. 4º da Lei nº 8.245/91, assegura-se ao
locatário o direito potestativo de devolver o imóvel ao locador, antes
do advento do termo final do contrato, pagando a multa prevista, ou a
que vier a ser arbitrada judicialmente.
Ocorre que a construção pretoriana considera abusiva a estipulação de
multa de valor superior a três meses do aluguel vigente, à época da
denúncia, e ainda a reduzindo proporcionalmente ao tempo do contrato já
cumprido.
Se isto ocorrer, restando tempo considerável para o término do
contrato, o prejuízo do locador será expressivo, tendo em vista que
receberá ele um imóvel, em geral de grandes dimensões, e que
dificilmente conseguirá alugar a terceiro, já que foi construído segundo
as necessidades e especificações do próprio locatário.
Além de deixar de perceber os aluguéis, passará a arcar, por tempo
indeterminado, com os impostos e taxas que recaem sobre o imóvel.
Do mesmo modo, eventual redução do aluguel pela via da ação
revisional, manejada pelo locatário, romperá a equação econômica do
contrato.
Estas razões nos levaram, desde o surgimento do novo modelo, a
sustentar a imperiosa necessidade de se afastar dele a incidência
integral das regras da Lei nº 8.245/91, que poderiam inviabilizá-lo.
Daí aplaudirmos, com entusiasmo, o advento da Lei nº 12.744 de
19/12/12, que atendeu a estas exigências empresariais preservando o
sistema “built to suit”, que tem proporcionado grande desenvolvimento do
mercado, especialmente no setor de locações corporativas, de elevado
valor, o que justifica a advertência do legislador de que as alterações
introduzidas só se aplicam às locações não residenciais.
Segundo o que agora dispõe a Lei 12.744/12, no sistema “built to
suit”, as partes poderão estipular, livremente, condições especiais, tal
como ocorre com as locações de espaços em Shopping-Centers.
Amplia-se, assim, a autonomia privada, o que decorre do fato de se
equivalerem economicamente as partes, dispensando a intervenção estatal,
ou, pelo menos, a reduzindo.
Como consequência imediata, poder-se-á ajustar, para o caso de
denúncia antecipada do contrato, por iniciativa do locatário, multa
adequada, que compense, realmente, o prejuízo do locador, mas que não
poderá ultrapassar a soma dos aluguéis vincendos, até o advento do termo
final do contrato.
Também se admite a renúncia ao direito de revisão do valor dos
aluguéis, seja durante todo o prazo do contrato ou durante certo tempo.
Este dispositivo, entretanto, pode, no futuro, gerar conflitos e vacilações doutrinárias e pretorianas.
Isto porque, como já foi assinalado, o sistema “built to suit” exige
que os contratos sejam celebrados por prazo longo, geralmente de 25
anos, ou mais, o que, em princípio, é do interesse do locador e do
locatário.
Durante a vida do contrato poderão surgir expressivas modificações na
economia, tornando-o excessivamente oneroso para uma das partes.
Neste caso, eventual revisão do locativo deve ser considerada com
extrema prudência pelo Judiciário, e em situações excepcionais, para se
preservar a comutatividade inaugural do contrato, atendendo-se às suas
peculiaridades. Considerando os novos ares que regem as relações
contratuais e os princípios mais relevantes como a boa-fé objetiva, é
recomendável que nas negociações preliminares, as partes estabeleçam que
na formação do preço o principal fator é o retorno esperado do
investimento feito e não apenas uma fração do valor do imóvel, como se
dá nas locações comuns.
Só nos resta agora aguardar que o tempo comprove que foram úteis as
mudanças, e esperando que proporcionem elas o crescimento e consolidação
do modelo “built to suit”, o que é do interesse de toda a sociedade.
Autor: Sylvio Capanema
Fonte: Revista JC
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