Resumo: O presente texto aborda de forma singela o contrato de locação imobiliária residencial sob a égide do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e sua aplicabilidade nos referidos contratos, que passaram a ter legislação especial, a Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91), posteriormente à entrada em vigor do CDC. Demonstra-se sinteticamente, as correntes doutrinárias e jurisprudenciais sobre o assunto, que, por serem conflitantes, vêm produzindo muitas polêmicas a respeito de sua da aplicação ou não. Busca ainda, analisar estes dois institutos do ponto de vista do princípio do diálogo das fontes, onde foi possível a conclusão, com o devido respeito às doutas opiniões em contrário, de que o Código de Defesa do Consumidor, sem a menor dúvida, é planamente aplicável aos contratos residenciais de locação.
Palavras-chave: contrato, locação imobiliária residencial, código de defesa do consumidor, Lei 8.078/90, lei do inquilinato, Lei 8.245/91, CDC.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do contrato imobiliário de locação residencial urbano. 3. Da aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor ao contrato imobiliário de locação residencial urbana. 3.1. Da aplicação do CDC ao contrato imobiliário de locação residencial urbano segundo a doutrina. 3.2. Da aplicação do CDC ao contrato imobiliário de locação residencial urbano segundo a jurisprudência. 3.3. A teoria do diálogos das fontes como uma das bases à aplicação do CDC aos contratos de locação imobiliário residencial urbano. 3.4. O Código de Defesa do Consumidor como norma complementadora da Constituição Federal (artigo 5º, XXXII, da CF), adquirindo status constitucional. CDC que não pode ser derrogado pela lei do inquilinato, devendo ser aplicado aos contratos de locação residencial. 4. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A cada dia que passa, nossa sociedade passa por inúmeras transformações em todos os seguimentos.
O que tem nos chamado a atenção é a alta expansão do mercado
imobiliário, que vem gerando uma padronização nos contratos locatícios e
a ideia da aplicação da lei consumerista, ante a desigualdade das
partes contratantes, justamente pela ausência de flexibilidade das
cláusulas contratuais.
Não se pode olvidar que diante da modernidade tecnológica, os
contratos em geral tiveram uma padronização, dificultando a negociação
das suas cláusulas, muitas delas abusivas, as quais fatalmente acabam
prejudicando a parte mais vulnerável da relação contratual, gerando
desequilíbrio.
Desta maneira, há de ser perseguida pelos operadores do direito a
igualdade contratual, um contrato mais justo e que reprima as cláusulas
abusivas por parte dos fornecedores aos consumidores, no presente caso, o
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e o exame da Lei do
Inquilinato (Lei 8.245/91), sendo esta, lei especial e posterior ao CDC.
Observa-se que não é raro, o profissional do Direito deparar-se com
uma série de comandos legislativos, o que o leva a nem sempre encontrar a
solução mais adequada ao caso concreto.
Por isso, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, o tema
tornou-se polêmico, as quais não informam com certeza, sobre a
possibilidade de aplicação do CDC na relação contratual imobiliária
locatícia, uma vez que, nos dias de hoje, o consumo está massificado, o
que leva a vários perigos ao consumidor, parte hipossuficiente da
relação contratual e que raramente participa na elaboração do contrato.
A controvérsia se instalou após a entrada em vigor da Lei do
Inquilinato e da interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça,
que entendeu não ser aplicável o CDC aos contratos de locação. Isso
porque, para o E. STJ, com a promulgação da Lei do Inquilinato, em 18 de
outubro de 1991 (lei especial que dispunha expressamente sobre locações
imobiliárias urbanas), o Código de Defesa do Consumidor, promulgado em
11 de março de 1991, que também dispunha sobre regras contratuais, não
se aplicaria aos casos abarcados por aquele Diploma, o que acabou
gerando inúmeras discussões.
A pergunta que passou a ser feita é: aplica-se o Código de Defesa do
Consumidor aos contratos imobiliários de locação urbanos diante da lei
específica do inquilinato? Por quê? Podem os dois Diplomas legais
coexistirem para uma melhor distribuição do direito?
As respostas a essas perguntas constituem o objetivo deste artigo. A
análise das referidas diferenças dos institutos sob a visão doutrinária e
jurisprudencial e a existência da Teoria do Diálogo das Fontes são o um
dos pontos importantes para se obter algumas idéias sobre o assunto.
2 DO CONTRATO IMOBILIÁRIO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL URBANO
Delimitando desde já a matéria, verificamos a existência do contrato de locação para fins comerciais, o contrato de locação para fins residenciais celebrado entre particulares e o contrato de locação entre particulares, mas realizado por intermédio de imobiliária.
Ao contrato de locação para fins comerciais, ainda que
realizado por intermédio de imobiliária, entendemos a ele não se aplicar
o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que o locatário deste tipo de
imóvel não o utiliza como destinatário final, ou seja, para sua
moradia. Se o imóvel for utilizado para auferir lucros através de
atividade comercial, estará desconfigurada a relação de consumo, e,
portanto, tal contrato está além do campo de atuação do CDC.
Neste sentido:
“EMBARGOS À EXECUÇÃO - EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL - Contrato de
locação de imóvel não residencial - Título líquido, certo e exigível -
Processo instruído com documento hábil – Insuficiência de recursos
financeiros não é razão o bastante para desobrigarem as embargantes -
Cobrança de juros abusivos e prática de anatocismo, afastada - Ausência
de planilha de cálculo que justificasse a cobrança de juros abusivos,
nos termos do art. 739-A, § 5º do Código de Processo Civil - Inaplicável o Código de Defesa do Consumidor por não tratar de relação de consumo entre as partes, bem como considerando a existência de regramento específico pela Lei nº 8.245/911 que regula a matéria - Procedência dos embargos à execução - Recurso desprovido.”[1]
E ainda:
“DIREITO CIVIL. SHOPPING CENTER. INSTALAÇÃO DE LOJA.
PROPAGANDA DO EMPREENDIMENTO QUE INDICAVA A PRESENÇA DE TRÊS
LOJAS-ÂNCORAS. DESCUMPRIMENTO DESSE COMPROMISSO. PEDIDO DE RESCISÃO DO
CONTRATO.
1. Conquanto a relação entre lojistas e administradores de Shopping Center não seja regulada pelo CDC,
é possível ao Poder Judiciário reconhecer a abusividade em
cláusula inserida no contrato de adesão que regula a locação
de espaço no estabelecimento, especialmente na hipótese de
cláusula que isente a administradora de responsabilidade pela
indenização de danos causados ao lojista.
2. A promessa, feita durante a construção do Shopping Center a
potenciais lojistas, de que algumas lojas-âncoras de grande renome
seriam instaladas no estabelecimento para incrementar a frequência de
público, consubstancia promessa de fato de terceiro cujo inadimplemento
pode justificar a rescisão do contrato de locação, notadamente se tal
promessa assumir a condição de causa determinante do contrato e se
não estiver comprovada a plena comunicação aos lojistas sobre a
desistência de referidas lojas, durante a construção do
estabelecimento.
3. Recurso especial conhecido e improvido”[2]
Quando o contrato de locação residencial é celebrado diretamente entre particulares
(o locatário e o proprietário do imóvel), igualmente não se aplica o
Código de Defesa do Consumidor, uma vez que não existem os requisitos
legais para configuração de uma relação de consumo entre os dois
particulares.
Isso porque no que concerne à aplicação do Código de Defesa do
Consumidor, adota-se a corrente finalista mitigada ou de finalismo
aprofundado, segundo a qual, para que seja caracterizada como
consumidora, deve ser destinatária final econômica do bem ou serviço
adquirido, em benefício próprio e para satisfação de suas necessidades
pessoais, sem ter o interesse, de repassá-los a terceiros, nem
empregá-los na geração de outros bens ou serviços, e ainda, demonstrar
sua vulnerabilidade, técnica, jurídica ou econômica em relação ao
fornecedor, no caso concreto.
Luiz Antônio Rizzatto Nunes, citado por Eliseu Jusefovicz[3], esclarece-nos que:
“A idéia de atividade é o que caracteriza o conceito de fornecedor.
Atividade essa que pode ser rotineira ou eventual”. Adiante explica:
“Logo, numa típica relação de locação de imóvel, na qual figuram duas
pessoas, uma locadora e outra inquilina, mas não sendo a locadora,
fornecedora pela qualificação do CDC, esse não tem aplicação”. Pois
“somente poder-se-ia falar em fornecedor se o locador desenvolvesse
atividade de locação de imóveis, isto é, se se pudesse caracterizar a
locação como um serviço oferecido (como o faz, por exemplo, uma locadora
de automóveis)”. Ou seja, “não se deve confundir a relação existente
entre locador e locatário, com a relação existente entre as imobiliárias
e o locador e/ou locatário. As imobiliárias, que regularmente
intermedeiam relações de locação de imóveis, são típicas fornecedoras,
prestadoras de serviços e, nas relações com elas estabelecidas, há
incidência, dentre outras normas, das regras do CDC”
Neste sentido, transcreve-se trecho de v. acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o qual nos esclarece:
“No que concerne à adoção do Código de Defesa do Consumidor este
não é aplicável ao caso, dado que inexiste relação de consumo entre as
partes.
O contrato foi celebrado entre particulares mediante a
aceitação das cláusulas contratuais, afastada qualquer conotação de
fornecimento de produto ou de serviço, como corolário do exercício
habitual de atividade dessa natureza.
Trata-se de relação locatícia em que se aplicam as regras da Lei
8.245/91 e, portanto, as disposições convencionais prevalecem com
efeito vinculativo.”[4]
Ainda, existe o contrato de locação entre particulares, mas realizado por intermédio de imobiliária.
Nesses contratos, existe a imobiliária que faz a intermediação entre o
inquilino e o proprietário do imóvel, ocorrendo, em tese, uma relação
de comércio ou de consumo, configurando um desequilíbrio na relação
contratual ante a vulnerabilidade da parte hipossuficiente da relação, o
inquilino.
Este na quase totalidade das vezes, assina um contrato de adesão, com
várias cláusulas que o colocam em desvantagem excessiva, até mesmo por
não lhe ser permitido a negociação das cláusulas contratuais.
Nestes casos, parece-nos necessária a aplicação do Código de Defesa do
Consumidor visando assegurar a proteção do inquilino consumidor no
mercado de consumo.
3 DA APLICAÇÃO OU NÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR AO CONTRATO IMOBILIÁRIO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL URBANA
Em 11 de março de 1991, entrou em vigor o Código de Defesa do
Consumidor (Lei 8.078/90), lei direcionada à defesa do hipossuficiente.
Em 18 de outubro de 1991, posteriormente, portanto, foi editada a Lei do
Inquilinato (Lei 8.245/91), que entrou em vigor sessenta dias após,
conforme disposto no artigo 89 da referida lei.
A Lei do Inquilinato passou a dispor expressamente em seu bojo sobre a
locação imobiliária urbana, ao passo que o CDC dispunha de forma
genérica sobre as regras contratuais, e a partir daí estabeleceu-se uma
celeuma sobre o assunto, pelo fato de ambas as leis serem ordinárias,
sendo este o objeto da presente abordagem.
3.1 DA APLICAÇÃO DO CDC AO CONTRATO IMOBILIÁRIO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL URBANO SEGUNDO A DOUTRINA
Na doutrina, maior prevalência tem a tese de aplicação do CDC aos contratos de locação imobiliária residencial urbana.
Segundo o magistério de Claudia Lima Marques[5]:
“...tratando-se de locação residencial a aplicação das normas
protetivas do CDC será a regra, como concorda apenas parte minoritária
da jurisprudência.”
Nesse diapasão é o entendimento de Silvio de Salvo Venosa, citado por Zilda Tavares[6]:
“O CDC cria um microssistema legal que se insere e se harmoniza
com as relações jurídicas regidas pelas leis civis, mercantis,
administrativas.
Dúvidas inexistem que as constantes leis do inquilinato de nossa
história, afora o caráter emergencial de anteriores leis revogadas,
sempre se mostraram como leis especiais, destinadas unicamente a reger a
relação ex locato, com evidente intuito protetivo do inquilino.
Sob esse aspecto há patente ponto de contato entre o CDC e a Lei
do Inquilinato: ambos os diplomas buscam proteger o contratante em tese
juridicamente mais fraco, contra aquele que se apresenta na relação
negocial, sempre em tese como economicamente mais forte: locador e
locatário; consumidor e fornecedor (estes conceituados respectivamente
nos arts. 2º e 3º do CDC).
No entanto, o CDC é norma abrangente de toda a relação de
consumo, enquanto a lei do inquilinato se particulariza na relação da
locação imobiliária.”
Igual teor possui o entendimento de Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin:
“É de grande a importância da aplicação do CDC aos contratos de
locação em virtude de sua relevância social e de extrema vulnerabilidade
fática, que se encontra o indivíduo ao necessitar alugar um imóvel para
sua moradia e de sua família, tal vulnerabilidade aliada a um mercado
de oferta escassa, parece incentivar práticas abusivas, na contratação
(cobrança de taxas abusivas, por ex.) e na elaboração unilateral dos
contratos; o fenômeno é mundial.”[7]
3.2 DA APLICAÇÃO DO CDC AO CONTRATO IMOBILIÁRIO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL URBANO SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA
Na jurisprudência houve acenos de vários Tribunais em aplicar o Código
de Defesa do Consumidor aos contratos de locação de imóveis
residenciais urbanos, conforme se verifica do julgado abaixo esposado:
“RESP. CIVIL. LOCAÇÃO. BENFEITORIA NECESSÁRIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A benfeitoria necessária é indenizável. O Código
de Defesa do Consumidor veio amparar a parte mais fraca nas relações
jurídicas. Nenhuma decisão judicial pode amparar o enriquecimento sem
justa causa. Toda decisão há de ser justa.” – Resp.n.90.366 – MG” (96.0016186-0) – DJ, 02.06.1997)
Entretanto, recentemente, o Egrégio Superior Tribunal passou a se
inclinar negativamente à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos
contratos de locação imobiliário residencial:
“CIVIL. LOCAÇÃO. MULTA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL.
São inaplicáveis às relações locatícias as normas sobre multa do Código de Defesa do Consumidor.
Agravo desprovido”.[8]
“CIVIL. LOCAÇÃO. FIANÇA. RENÚNCIA DO DIREITO A EXONERAÇÃO.
MULTA CONTRATUAL. REDUÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. LEI
8.070/90 - INAPLICABILIDADE.
1. Não podem exonerar-se da obrigação os fiadores que
manifestaram expressa renúncia ao direito estipulado no CC, art.
1.500. Mesmo que o contrato tenha se tornado por tempo
indeterminado, se expressamente anuído pelos fiadores;
2. Não se aplica às locações prediais urbanas reguladas pela lei 8.245/91, o Código do Consumidor.
3. Recurso Especial conhecido e provido”.[9]
“LOCAÇÃO. DESPESAS DE CONDOMÍNIO. MULTA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE.
I - As relações locatícias possuem lei própria que as
regule. Ademais, falta-lhes as características delineadoras da
relação de consumo apontadas nos arts. 2º e 3º da Lei nº
8.078/90. O Código de Defesa do Consumidor não é aplicável no
que se refere à multa pelo atraso no pagamento de aluguéis.
II - Em caso de decisão condenatória, os honorários
advocatícios devem ser fixados com base na regra do art. 20,
parágrafo 3º, do CPC, e não sobre o valor da causa, cabendo
ao magistrado unicamente definir o percentual dentro dos
parâmetros ali estabelecidos. Recurso provido.”[10]
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À INDENIZAÇÃO DE BENFEITORIAS. QUESTÕES FÁTICAS.
EXAME DE CLÁUSULA CONTRATUAL. SÚMULAS N. 5 E 7 DO STJ. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE EM RELAÇÃO LOCATÍCIA.
- É inviável o reexame de matéria fática constante dos autos,
tendo em vista o óbice contido no verbete Sumular n. 07/STJ, bem como a
interpretação de cláusulas contratuais nesta seara recursal.
- É cediço que, em relação locatícia regida pela Lei n.
8.245/91, não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista
que esta relação está regulada por lei específica.
- Agravo regimental improvido”.[11]
Assim ao contrário da quase totalidade da doutrina, o E. Superior
Tribunal de Justiça entende que o Código de Defesa do Consumidor não é
aplicável a contratos de locação, sob o argumento de estarem regidos por
lei própria.
3.3 A TEORIA DO DIÁLOGOS DAS FONTES COMO UMA DAS BASES À APLICAÇÃO DO CDC AOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO IMOBILIÁRIO RESIDENCIAL URBANO
Segundo o professor Flávio Tartuce[12],
a Teoria do Diálogo das Fontes foi desenvolvida na Alemanha por Erik
Jayme, professor da Universidade de Helderberg, e trazida ao Brasil por
Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A
essência da teoria é que as normas jurídicas não se excluem –
supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se
complementam. Há, nesse marco teórico, a premissa de uma visão unitária
do ordenamento jurídico.
Prossegue Tartuce:
“Pois bem, Claudia Lima Marques demonstra três diálogos possíveis a partir da teoria exposta, diante do modelo
brasileiro de coexistência e aplicação simultânea do Código de Defesa
do Consumidor, do Código Civil de 2002 e da legislação especial.
De início, em havendo aplicação simultânea das duas leis, se uma lei servir de base conceitual para a outra, estará presente o diálogo sistemático de coerência.
Como exemplo, os conceitos e as regras básicas relativas aos contratos
de espécie podem ser retirados do Código Civil mesmo sendo o contrato de
consumo. Tal premissa incide para a compra e venda, para a prestação de
serviços, para a empreitada, para o transporte, para o seguro, entre
outros.
Ato contínuo, se o caso for de aplicação coordenada de duas leis, uma norma pode completar a outra, de forma direta (diálogo de complementaridade) ou indireta (diálogo de subsidiariedade).
(...). Em relação às cláusulas abusivas, pode ser invocada a proteção
dos consumidores constante do art. 51 do CDC e ainda a proteção dos
aderentes constante do art. 424 do CC.
Por fim, os diálogos de influências recíprocas sistemáticas estão presentes quando os conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influências da outra.
Assim, o conceito de consumidor pode sofrer influências do Código Civil
de 2002. Como afirma Claudia Lima Marques, “é a influência do sistema
especial no geral e do geral no especial, um diálogo de doublé sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática).
A busca de um prazo maior, previsto no Código Civil, para
demanda proposta pelo consumidor constitui exemplo típico de incidência
concomitante do segundo e do terceiro diálogo, uma vez que o Código do
Consumidor não prevê prazo específico para a ação fundada em inscrição
indevida em cadastro de inadimplementes. Não se pode socorrer
diretamente ao art. 27 do CDC, que consagra prazo de cinco anos para a
ação de reparação de danos em decorrência de acidente de consumo, pois
tal comando não se enquadra perfeitamente à fattispecie. Dessa forma, o
melhor caminho é de incidência do prazo geral de prescrição, de dez
anos, consagrado pelo art. 205 do Código Civil de 2002.
Jose Ricardo Alvarez Vianna[13]
esclarece que “para que este diálogo ocorra e resulte em bons frutos é
indispensável aquilatar o núcleo essencial que caracteriza e qualifica o
bem jurídico, objeto da controvérsia, e, ato contínuo, mediante uma
análise sistemática, finalística, contextual (e não apenas textual),
seja verificado qual norma jurídica melhor atende ao conteúdo, que
concretiza e materializa a finalidade do desse bem jurídico”.
3.4 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO NORMA COMPLEMENTADORA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ARTIGO 5º, XXXII, DA CF), ADQUIRINDO STATUS CONSTITUCIONAL. CDC QUE NÃO PODE SER DERROGADO PELA LEI DO INQUILINATO, DEVENDO SER APLICADO AOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL
Por outro lado, há ainda autores que entendem não haver antinomia
entre as referidas leis ordinárias, sob o argumento de que o CDC
complementa o texto da Constituição Federal, não havendo como a Lei do
Inquilinato pretender revogar ou diminuir a incidência do CDC, sob pena
de estar retirando a efetividade de uma norma constitucional.
Prossegue José Ricardo Alvarez Vianna, e cita as palavras de Marco Fábio Morsello:
“Sob a ótica constitucional, a defesa do consumidor foi
considerada direito fundamental (CF, art. 5°, XXXII), de modo que a
existência de norma em antinomia com aquelas que tenham implementado a
mencionada defesa naturalmente não poderá prevalecer, levando-se em
conta a força normativa que promana da Constituição Federal, ensejando,
pois, preponderância, inclusive sob o critério hierárquico.”
Diz o artigo 5º, XXXII da Constituição Federal:
“Art. 5º, XXXII - O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;”
Este também o é o entendimento esposado pelo ínclito Desembargador do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Tupinambá Miguel
Castro do Nascimento, Publicado na Revista Jurídica nº 263, p. 78:
“O CDC é norma que complementa a Constituição Federal. O comando inicial da lei protetiva do consumo localiza-se no texto constitucional. A lei ordinária é o instrumento normativo para que haja efetividade da norma constitucional. O artigo 5º, XXXII, da CF regra que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". O
texto constitucional complementado pela lei de consumo codificada dá
vida a uma garantia constitucional. Inclusive, a relevância da lei de
consumo é atestada no ADCT, quando se fixou prazo para que o Congresso
Nacional editasse o Código do Consumidor (art. 48). Tal inocorre com a
Lei de Locação, que é, formal e substancialmente, ordinária.
Repete-se, sob outra visão, o argumento. A garantia constitucional
do inciso XXXII do artigo 5º é um nada normativo, destituída da lei
ordinária que a complementa. A dimensão protetiva do consumidor é na
forma da lei. Sem esta, não há limite máximo, médio ou mínimo de tutela;
em outras palavras, não há a proteção proposta constitucionalmente.
Assim, a lei ordinária que dá vida a texto constitucional não tem a
mesma natureza, substancialmente vista, que a lei ordinária que não se
vincula diretamente à norma constitucional. Há uma diferença entre
ambas, face ao reflexo de constitucionalidade que lhe dá a norma matriz”.
Outro trecho do mesmo artigo vale a transcrição pelo brilhantismo e esclarecedor argumento sobre o tema:
“Embora a doutrina não dê ênfase, com a necessária
desenvoltura, para este aspecto importante na teoria das leis, não
parece correto que uma lei ordinária, inclusive substancialmente, esteja
no mesmo grau hierárquico de outra que complemente um texto
constitucional, a ponto de a primeira, revogando ou diminuindo a
incidência da segunda, estar indiretamente tirando a efetividade total
ou parcial de uma norma constitucional. E esta é a realidade. A
efetividade da norma constitucional se assenta na existência de lei
ordinária complementadora. Enquanto ela vige, tem vida e aplicação plena
a norma constitucional. Desaparecendo a norma complementar do mundo
jurídico, a norma constitucional adormece, perde sua operância,
afigura-se como simples regra programática. (...)
A doutrina especializada em legislação de consumo apóia este
entendimento. ARRUDA ALVIM e outros (Código do Consumidor Comentado, p.
74, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1995) assim argumentam:
"Doutra parte, a lei federal posterior ao advento deste Código, que em
função de encontrar-se em um mesmo nível hierárquico, poderia revogar as
disposições desta lei, somente terá validade se constitucional, ou
seja, se respeitar os mandamentos constitucionais de defesa do
consumidor, visto consagrar a Constituição a defesa do consumidor entre
os direitos e deveres individuais e coletivos..."
A questão constitucional permite outro enfoque. Enfatiza-se a
afirmação de VICENTE RÁO, já referida supra, de que as leis que
complementam a Constituição, embora ordinárias, aderem a ela e nela se
integram. Em outras palavras, a complementariedade, por trazer sua
eficácia de norma constitucional e dar a esta a efetividade pretendida
pela Constituição, passa a ter a mesma natureza jurídica que a norma
constitucional tem. Materialmente, existem a norma constitucional e a
lei que, a complementando, lhe dá eficácia. Substancialmente, a garantia
constitucional é única. Preenchida pela complementação, é a norma
constitucional que está em vigor.
O artigo 5º, XXXII, da CF, raiz do Código de Defesa do Consumidor,
está localizado na área das garantias constitucionais, como direito e
garantia individual. Isto permite sua categorização como cláusula
pétrea. Compreende-se-a como aquele tema constitucional que, tendo
configuração de estabilidade e perenidade, não pode ser derrogado pelo
ordenamento jurídico vigente. Assim, nem emenda constitucional pode
aboli-la, ou iniciar processo de abolição. É a regra do artigo 60, § 4º,
da CF: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir: IV - os direitos e garantias individuais". A vedação é por
demais evidente. (...)
A esta altura da exposição, o confronto das soluções se
demonstra com toda clareza e objetivamente. Situando-se, exclusivamente,
na área infraconstitucional, há razoável sustentação da tese de que o
CDC não alcança as relações jurídicas ex locato. Há, sem dúvida, uma
aparência de exatidão na conclusão exposta. Lei ordinária em confronto
com outra da mesma natureza, há prevalência da lei mais moderna.
Alargando, porém, a interpretação e se ingressando, tecnicamente, na
área constitucional, a solução é bem outra. A Lei de Locação invadiu
competência alheia e dispôs substancialmente com ofensa a texto
constitucional. Entre as duas soluções, não se pode priorizar a
infraconstitucional, relegando a segundo plano a constitucional. Pelo
menos, no tradicional ordenamento jurídico brasileiro”.
Conforme o exposto, deixando de lado a Teoria do Diálogo das Fontes,
se entender-se o CDC como norma ordinária e infraconstitucional,
portanto, apenas, seria viável o entendimento de aplicação da Lei do
Inquilinato, mais moderna que o CDC. Entretanto, se entendermos o CDC
como norma complementadora da Constituição Federal, o mesmo a ela
aderirá, passando a ter a mesma natureza jurídica que tem a norma
constitucional, estando, portanto, hierarquicamente superior à Lei do
Inquilinato.
4 CONCLUSÃO
De todo o exposto sobre o controverso tema de aplicação ou não do
Código de Defesa do Consumidor aos contratos de locação residencial
urbano e com o devido respeito ao entendimento esposado nos julgados do
E. Superior Tribunal de Justiça, ousamos do mesmo discordar e afirmar,
sem sombra de dúvida, que a aplicação do CDC é plenamente viável por
vários motivos, dos quais salientamos dois.
Primeiro, pelo fato de que para dirimir conflitos ou antinomias
entre diplomas legais, existe a Teoria do Diálogo das Fontes, importada
do Direito Alemão, a qual permite que o aplicador do direito sopese as
leis aplicáveis à espécie, as quais não se excluem, mas se complementam,
e, mediante uma análise contextual, verificar-se qual norma jurídica
melhor atende ao conteúdo, que concretiza e materializa a finalidade do
desse bem jurídico a ser tutelado.
Assim, os diplomas legais não se revogariam ou se excluiriam, mas,
sim, complementar-se-iam, de modo a facilitar a melhor aplicação do
direito, permitindo-se a aplicação do CDC aos contratos imobiliários de
locação residenciais urbanos.
Segundo, pelo fato de que se tomarmos como norte o entendimento
de que o Código de Defesa do Consumidor é norma que complementa a
Constituição Federal (inciso XXXII do artigo 5º), concluir-se-á que o
CDC, embora lei ordinária, adere a ela e nela se integra.
Conclusão lógica que se chega é que se o CDC adquiriu status
constitucional, não estará no mesmo grau hierárquico de uma lei
ordinária, no caso, a Lei do Inquilinato, razão pela qual, de modo
nenhum pode esta última revogar ou diminuir a incidência da primeira
(CDC), sob pena de estar indiretamente tirando a efetividade total ou
parcial de uma norma constitucional.
Pontofinalizando, pelo fato de o artigo 5º, XXXII, da Constituição
Federal ser o princípio do Código de Defesa do Consumidor, e estar
situado entre as garantias constitucionais, como direito e garantia
individual, pode ser considerado como cláusula pétrea, não podendo ser
derrogado pelo ordenamento jurídico vigente.
Tal inocorre com a Lei de Locação, que é, formal e substancialmente,
ordinária, pois considerando-se o CDC como complemento da Constituição, a
conclusão a que se chega utilizando-se dos esclarecimentos da doutrina
acima esposada é que a Lei de Locação invadiu competência alheia e
dispôs substancialmente com ofensa a texto constitucional e entre os
dois diplomas legais, não se pode priorizar o infraconstitucional,
relegando a segundo plano o constitucional.
Referências bibliográficas
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Notas:
[1] TJSP - Apelação Cível nº 0008126-74.2008.8.26.0417, 27ª Câmara de Direito Privado, v.u., Rel. Cláudio Hamilton, DJ 18.09.2012.
[2] Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma, REsp 1259210 / RJ (2011/0061964-0), RELATOR : MINISTRO MASSAMI UYEDA, DJ 26.06.2012.
[3] JUSEFOVICZ, Eliseu. Proteção contra cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais:Dissertação
submetida à Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do
título de Mestre em Direito. Disponível em:
. Acesso em: 18 nov. 2012.
[4]
TJSP - Apelação Cível com Revisão nº 9169553-77.2009.8.26.0000, 33ª
Câmara de Direito Privado, v.u., Rel. Luiz Eurico, DJ 5.03.2012.
[5] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. ver. atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2002, PP. 361/362.
[6] TAVARES, Zilda. Aplicação do código de defesa do consumidor nas relações locatícias residenciais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, X, n. 45, set 2007. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2228>. Acesso em nov. 2012.
[7] BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. São Paulo: Forense Universitária, 1991, p. 251.
[8] AgRg no Ag nº 402.029/MG, Relator o Ministro GILSON DIPP, DJU de 4/2/2002.
[9] RESP 266625/GO, DJ de 16/10/2000, Rel. Ministro Edson Vidigal.
[10] RESP 262620/RS, DJ de 02/10/2000, Rel. Min. Félix Fischer.
[11] AgRg no Ag 363679/MG, DJ 03/11/2005, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa.
[12] TARTUCE, Flávio. O prazo para reparação de danos por inscrição indevida do consumidor em cadastro de inadimplentes. Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigos>. Acesso em dez. 2012.
Informações Sobre o Autor: Rodrigo César Faquim - Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil - Seção de São Paulo, sob o n. 182.960 – Subseção de Tupã/SP. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Instituto LFG e IBDP.
Fonte: Âmbito Jurídico
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