Se
o contrato confere à construtora o direito de atrasar o cumprimento de
sua obrigação (entregar a unidade imobiliária), o mesmo direito deve ser conferido ao adquirente, de modo a ter um “prazo de carência” para o cumprimento de suas obrigações – realização dos pagamentos.
Graças às políticas de facilitação do crédito,
especialmente as voltadas para a aquisição da casa própria, milhões de
brasileiros, nos últimos anos, têm firmado contratos de promessas de compra e
venda com construtoras por todo o Brasil. Boa parte desses ajustes dizem
respeito à aquisição de imóveis "na planta", onde o consumidor
adquire uma expectativa de direitos, qual seja a de vir a ser dono de uma ou
mais unidades imobiliárias a serem construídas naquele empreendimento.
Esses contratos, que são de adesão, prevêem um plano de
pagamento do imóvel, pelo consumidor, com datas certas e pré-determinadas, sob
pena de sanções contratuais, como multa, juros e até a rescisão do contrato
com perda de parte do que tenha sido pago. Do outro lado, prevê a obrigação
da incorporadora/construtora construir o imóvel e entregá-lo em prazo
igualmente pré-determinado. Não obstante essa pré-determinação, porém, as
construtoras colocam nos contratos as chamadas cláusulas de tolerância, que
inicialmente eram de 90 dias, passaram para 120 e hoje a maioria já trabalha
com 180 dias. Cabe a pergunta, é legal esta cláusula, à luz do direito do
consumidor?
A resposta é não! O direito do consumidor tem entre os seus
princípios o do equilíbrio das relações de consumo, da equidade, a se
refletir na bilateralidade dos contratos de consumo. Ou seja, isso quer dizer
que a relação de consumo tem que ser equilibrada, na sua balança de
prestações e contra-prestações, não podendo pender com a desigualdade de
benefícios para uma das partes. Neste sentido o art. 51, IV do CDC:
Art. 51 -São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou implique em renúncia ou disposição de direitos. (...);
III – transfiram a responsabilidade a terceiros;
IV – estabeleçam prestações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
Vale também a lição de Felipe Peixoto Braga Netto:
"Serão inválidas as disposições que ponham em desequilíbrio a equivalência entre as partes. Se o contrato situa o consumidor em situação inferior, com nítidas desvantagens, tal contrato poderá ter a sua validade judicialmente questionada, ou, em sendo possível, ter apenas a cláusula que fere o equilíbrio afastada". (Felipe Peixoto Braga Netto, in Manual de Direito do Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm, 2009)
Por outro lado o Superior Tribunal de Justiça recentemente
reconheceu a:
"imposição de um novo paradigma de boa-fé objetiva, equidade contratual e proibição da vantagem excessiva nos contratos de consumo (art. 51, IV)" (STJ, REsp.437.607, rel. Min. Hélio Quáglia Barbosa, 4ª T., j. 15/05/07, DJ 04/06/07).
Qualquer cláusula em contrato de consumo igualmente não
pode ofender os princípios constitucionais da razoabilidade e
proporcionalidade:
"NÃO PODE A ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL OFENDER O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE, E SE O FAZ, COMETE A ABUSIVIDADE VEDADA PELO ART. 51, IV, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ANOTE-SE QUE A REGRA PROTETIVA, EXPRESSAMENTE, REFERE-SE A UMA DESVANTAGEM EXAGERADA DO CONSUMIDOR, E AINDA, COM OBRIGAÇÕES INCOMPATÍVEIS COM A BOA-FÉ E A EQUIDADE" (STJ, RESP 158,728, REL. MIN. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, 3ª T., J. 16/03/99, P.DJ 17/05/99)
Assim, a maioria das entidades de proteção dos consumidores
entende que na medida em que o contrato confere à construtora o direito de
atrasar o cumprimento de sua obrigação (entregar a unidade imobiliária), o
mesmo direito deve ser conferido ao adquirente, de modo a ter um "prazo de
carência" para o cumprimento de suas obrigações – realização dos
pagamentos. Assim, se o contrato concede esse direito à construtora, e não o
defere ao adquirente, pode-se concluir que houve desrespeito à exigência do
CDC no que se refere ao equilíbrio contratual.
A jurisprudência já vem re conhecendo essa realidade:
"PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – ATRASO NA ENTREGA DA OBRA – INDENIZAÇÃO POR LUCROS CESSANTES – TEORIA DA IMPREVISÃO – INAPLICABILIDADE PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE TOLERÂNCIA – CLÁUSULA ABUSIVA – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.(...)
3. A cláusula que faculta à construtora o adiamento da entrega da obra por doze meses após o prazo previsto, sem qualquer justificativa para tanto, é abusiva e nula de pleno direito, por configurar nítido desequilíbrio contratual, rechaçado pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor.4. Recurso do autor provido parcialmente. Recurso da ré improvido. Decisão unânime."
(TJ/DF – 5ª T. Cív., Ap.Cív. nº48245/1998, Rel. Des.
Adelith de Carvalho Lopes, julg.08.03.1999)
"EMENTA – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL A PRESTAÇÃO PRAZO DE ENTREGA DO IMÓVEL COMPROMISSADO. INADIMPLÊNCIA DA COMPROMISSÁRIA VENDEDORA. PRAZO DE TOLERÊNCIA PRVISTO NO CONTRATO.Considera-se inadimplente a construtora e compromissária vendedora quando não faz entrega do bem compromissado no prazo previsto no contrato, autorizando o acolhimento do pedido de rescisão feito pelo compromissário comprador, com devolução de todas as parcelas pagas, devidamente corrigidas, mais juros de mora e outras penalidades previstas em contrato.O prazo de tolerância previsto em contrato somente é justificativa para a prorrogação do prazo contratual de entrega do imóvel compromissado quando ocorrer caso fortuito ou força maior devidamente comprovado nos autos."(TJ/MJ – 7ª C. Cív., Ap. Cív. Nº361743-8, Rel. Des. José Afonso da Costa Côrtes, julg. 06.06.2002).
A exceção que admitiria a utilização da cláusula de
tolerância, mesmo assim em patamar mais razoável (90 dias), seria na
ocorrência de um caso fortuito ou de força maior. A doutrina e a
jurisprudência convergem no entendimento de que o fortuito e a força maior
são apenas as situações imprevisíveis e inevitáveis. Vejamos se
é possível encaixar esses conceitos nos principais argumentos das construtoras
para justificar os atrasos: a) problemas com o terreno da construção, b)
chuvas, c) greve dos trabalhadores da construção civil e d) falta de materiais
de construção e de mão-de-obra.
Quanto a ocorrência de problemas com o terreno da
construção, é evidente que se trata de uma falha da construtora no estudo e
avaliação prévia do terreno pelos seus engenheiros. É um caso evidente de
vício (erro, falha) na prestação do serviço. Não se pode transferir a
responsabilidade por um erro seu aos consumidores que confiaram na qualidade e
responsabilidade da empresa. Como já mostrado acima, o CDC possui normas que
proíbem tais práticas (art. 51, I, II, e III).
Aliás, o STJ já tem jurisprudência refutando esse
argumento
REsp331496/MGRECURSOESPECIAL2001/0086594-7:
RESPONSABILIDADE CIVIL, CONSTRUTORA, DESCUMPRIMENTO, PRAZO, ENTREGA, IMOVEL, INDEPENDENCIA, ALEGAÇÃO, ATRASO, MOTIVO, CORREÇÃO, DEFEITO, TERRENO, COMPROVAÇÃO, PROVA PERICIAL, EXISTENCIA, PRESUNÇÃO, EMPRESA, CONHECIMENTO, FATO, MOMENTO, CELEBRAÇÃO, CONTRATO, NÃO CARACTERIZAÇÃO, CASO FORTUITO, FORÇA MAIOR.TERMO FINAL, UTILIZAÇÃO, VALOR, ALUGUEL, BASE DE CALCULO, INDENIZAÇÃO, DATA, ENTREGA DAS CHAVES, JUIZO, CARACTERIZAÇÃO, DATA, DISPONIBILIDADE, POSSE, IMOVEL, AUTOR.
O risco da atividade econômica é do empresário, assim como
o lucro, com base no princípio capitalista insculpido na Constituição Federal
de 1988. Pela Teoria do Risco, "aquele que lucra com uma situação deve
responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes" (ubi
emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda). O que desejam as
construtoras em tais casos é gozar do bônus e transferir o ônus,
numa postura violadora da boa-fé objetiva e em nítido descompasso com as
noções modernas de empresarialidade responsável ou cidadã, que exige que
todas as suas ações sejam pautadas pela ética, sem exceção.
Quanto à alegação de chuvas como força maior, também só
pode ser aceita em casos excepcionais. Usemos como exemplo a capital baiana. É
sabido que todo ano Salvador passa por um forte período de chuvas de outono.
Logo, evidentemente, não se pode classificar como algo imprevisível, a
justificar a utilização da cláusula de tolerância, salvo se o índice
pluviométrico registrado for muito fora de padrão para o período, algo não
registrado "há décadas", por exemplo.
Em relação a ocorrência de greves dos trabalhadores da
construção civil, devido à regularidade da sua ocorrência (todo ano tem)
também não se enquadraria como imprevisível. Menos ainda inevitável,
já que o seu advento depende de negociações com sindicatos que podem ser
antecipadas, melhor negociadas, gerenciadas, etc.
Sobre a falta de materiais de construção e de mão de obra
no mercado, a alegação chega a ser desrespeitosa para com os consumidores.
Ora, como se pode alegar falta de mão-de-obra e materiais de construção para
concluir no prazo um empreendimento em curso, se a mesma empresa continua a
lançar no mercado novos e novos empreendimentos??? É abusar da inteligência
do consumidor, argumento pífio!
A conta é simples, se determinada obra levaria 4 anos para
ser concluída com 100 trabalhadores, com 200 esse prazo cairia pela metade. É
exatamente o que as construtoras não querem fazer, desembolsar para cumprir os
prazos dos contratos elaborados por elas próprias, deixando ao sabor de todo
tipo de transtornos e prejuízos os consumidores brasileiros, diante do olhar
complacente e inoperante das autoridades e legisladores do nosso país.
O que realmente está por trás dos epidêmicos atrasos nas
construções particulares de todo o Brasil são o acintoso desrespeito e
despreocupação das construtoras com as famílias que adquirem imóveis e se
planejam em cima do cronograma contratualmente firmado para a entrega do
empreendimento. É quando o sonho da casa própria vira pesadelo!
Só para registro, foi publicado o lucro trimestral de
uma das construtoras que atuam nacionalmente, a PDG, que alcançou,
no início de 2011, a cifra de 239 milhões de reais! Crescimento
de 33% em relação ao primeiro trimestre de 2010. O
dado é emblemático e reflete a realidade desse mercado e a perversidade que
vem se praticando, impunemente, contra os consumidores nacionais. De um lado
polpudos lucros nunca antes alcançados pelo setor da construção civil, do
outro, um rastro de desrespeito e prejuízos amargados pelos clientes.
A boa notícia é o crescimento do número de ações contra
as construtoras em razão dos atrasos, que só em São Paulo aumentou cerca de
60% nos últimos três anos, o que indica que o consumidor está tomando
consciência dos seus direitos e está mais disposto a exercitá-los.
Vale lembrar que o consumidor com obra atrasada tem uma
série de direitos a pleitear em seu favor, portanto fique esperto, consumidor
consciente é consumidor bem informado!
BIBLIOGRAFIA / LEITURA RECOMENDADA
ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do
Consumidor. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
BENJAMIN. Antônio Herman.V. / MARQUES, Cláudia Lima / BESSA,
Leonardo Roscoe.Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos
tribunais, 2009.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor: Forense Universitária, 2004.
MARQUES, Claudia Lima em seu livro, Contratos no
Código de Defesa do Consumidor. 5ª Edição, Editora: Revista dos
Tribunais, 2005.
NETTO, Felipe Peixoto Braga. Manual de Direito do
Consumidor, Salvador: Edições Juspodivm, 2009
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código
de Defesa do Consumidor: direito material. São Paulo: Saraiva, 2000.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor.
São Paulo: Saraiva, 2008.
Autor: Henrique Borges Guimaraes NetoFonte: Revista Jus Navigandi
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