segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

HISTÓRIAS DE CORRETOR: A PERMUTA

Desde o princípio tudo se desenvolveu de uma forma no mínimo curiosa e inusitada, eu havia passado para um corretor a ficha de um cliente que estava querendo trocar uma casa com um terreno de dez por cinquenta em Moema, por um sítio na região de Vinhedo ou Valinhos. Estávamos quase no meio do ano de mil novecentos e oitenta e cinco, e é necessário salientar que o mercado de imóveis de terceiros estava completamente estagnado, então a solução era procurar alternativas que possibilitassem algum faturamento e assim encontrar uma saída para a crise.

O dinheiro estava faltando, não havia financiamento, mas quem procurava imóvel de lazer como chácaras, sítios, casas de praia e campo, geralmente estava numa situação financeira privilegiada que permitia realizar bons negócios, pois os proprietários deste tipo de mercadoria estavam desesperados para fazer dinheiro. O corretor que havia recebido a ficha, dois dias depois jogou-a no lixo revoltado.
- Só aparece gente querendo milagre!

Como a situação do mercado estava realmente péssima, eu não podia sobreviver simplesmente dependendo das poucas vendas da equipe, assim, eu havia feito um acordo com os donos da empresa que me possibilitava atender os meus clientes, bem como os eventuais clientes das fichas descartadas pelos corretores.

Consultei o corretor, que me autorizou a fazer com a ficha o que bem entendesse pois ele não a queria mesmo, assim resolvi ligar para o cliente.
- Alô, seu Orlando, como vai o senhor, aqui é o Antonio Carlos corretor de imóveis, o senhor nos ligou a respeito de um sítio certo?
A voz do outro lado da linha era calma, gentil, e ele repetiu o que já havia dito para o meu corretor; Tinha uma casa em um terreno grande em Moema, local bom para incorporação, e a sua intenção era trocar por um sítio, perguntei se ele tinha interesse em vender a casa e, depois comprar um sítio, a resposta foi pronta e objetiva:

- Vender eu não vendo, só troco e não tenho dinheiro nem para pagar a comissão!

Eu já havia realizado várias transações em que haviam entrado imóveis de menor valor como parte de pagamento, mas permuta total sem que se colocasse sequer um centavo eu ainda tinha que ver para crer, e este desafio estimulou minha vontade de conseguir aquele feito.Conversei com o cliente até conseguir visualizar com detalhes o tipo de sítio que ele desejava e prometi retornar quando encontrasse algo que se enquadrasse naquelas condições.

Durante dias, relembrando meus tempos de promotor/angariador de imóveis , vasculhei os jornais procurando alguma luz no fim do túnel, até que encontrei um anúncio no Estadão; “ SÍTIO VINHEDO”, no final, logo após a breve descrição do imóvel, antes do nome e do telefone do proprietário encontrei a palavra mágica, “aceito permuta”. Recortei o anúncio e liguei entusiasmado para o proprietário:

- Alô, Dr. Roberto, aqui é o Antonio Carlos corretor de imóveis, é a respeito do seu anúncio de um sítio em Vinhedo. Eu tenho um cliente procurando algo naquela região mas precisa ser permuta total por uma casa em São Paulo, Moema em excelente localização, se lhe interessar é realmente um bom negócio!

O senhor sabe o mercado está difícil mas a tendência é melhorar e voltar ao normal, quando isto ocorrer será bem mais fácil fazer dinheiro com um terreno bem localizado em Moema do que com um imóvel de lazer por melhor que ele seja. - Olha Antonio Carlos, dependendo de ver o terreno dele pode até me interessar.
- Existe apenas um pequeno grande problema Dr. Roberto, precisa ser permuta total ele não tem um tostão!
Fiquei surpreso quando ele me disse:
Não tem problema, eu posso até estudar permuta total, depende sempre de ver o imóvel, se me interessar pode dar certo!
Mais surpreso, e devo confessar mais de pé atrás eu fiquei quando perguntei sobre a comissão e ele me disse;

- A comissão eu pago com o maior prazer!

Ora , todo corretor sabe muito bem o quanto é difícil defender a nossa sagrada comissão pois uma grande parte de clientes não dá a mínima para o nosso trabalho, uma crise danada, as vacas pra lá de magras, e vem um cliente que não vai receber um centavo disposto a pagar uma comissão de dez por cento, e acima de tudo com prazer, era coisa absurdamente fantástica! Peguei as coordenadas para chegar ao local e liguei de imediato para o comprador.
- Senhor Orlando, é o Antonio Carlos, tudo bem, pode preparar a família para ir conhecer o seu sítio!

Ele quis marcar a visita para o dia seguinte e eu precisava aproveitar todo aquele entusiasmo, assim, não tive tempo de fazer uma coisa indispensável e que eu recomendo a todo corretor; conhecer o imóvel antes de levar o cliente! No dia seguinte logo pela manhã, me encontrei com o senhor Orlando e toda a família no começo da Rodovia Anhanguera. Após os cumprimentos de praxe, antes de entrar no carro ele tirou do bolso um recorte de jornal e me mostrou dizendo;

- Eu peguei no jornal ontem, é um sítio lá em Vinhedo também!

Fiz o impossível para não demonstrar nenhuma reação comprometedora pois meus olhos caíram direto sobre o telefone e o nome do proprietário, e, fatalidade ou coincidência, tratava-se do mesmo sítio que eu iria mostrar a eles, fui pelo caminho inteiro procurando esquecer aquele inconveniente e as suas possíveis consequências. O sítio era exatamente o que eles procuravam, a alegria foi contagiante, as crianças correram por todos os cantos, e os olhos do Vovô Orlando brilhavam antevendo os momentos felizes que aquela harmoniosa família certamente haveria de desfrutar, voltamos para São Paulo envoltos ainda por aquela aura de felicidade.

No dia seguinte liguei para o senhor Orlando e fui obrigado a fingir surpresa quando ele me disse:

- Senhor Antonio Carlos, lembra do recorte de jornal que lhe mostrei ontem? Pois é, chegando em casa eu resolvi ligar e acabei descobrindo que o sítio é o mesmo, lembra que na porta da casa de ferramentas tem um nome entalhado, é o nome do pai do Dr. Roberto, e ele quer que eu converse direto com ele.

- Realmente é muita coincidência seu Orlando, mas pode deixar que eu vou resolver o problema!

O caldo estava começando a entornar e seria preciso muito jogo de cintura para não perder a parada pois o Dr. Roberto era um advogado muito esperto e escorregadio. Liguei inúmeras vezes para ele até conseguir marcar um horário para mostrar o imóvel do senhor Orlando, após várias tentativas consegui enfim marcar a visita para uma terça-feira.

No dia combinado sai de casa com mais de uma hora de antecedência pois sempre tive por costume, chegar sempre antes do horário marcado, o que especialmente neste dia foi de suma importância pois meu carro quebrou em Pinheiros a caminho do escritório do vendedor, na Rua Ministro Rocha Azevedo, nos Jardins. Estar adiantado no horário me permitiu localizar uma oficina, pegar um táxi e chegar ao local dentro da hora combinada.

Mostrei o imóvel como se não soubesse absolutamente nada a respeito do telefonema do senhor Orlando para o Dr. Roberto, realmente a localização era muito boa e o advogado ficou de pensar na possibilidade de concretizar a transação e depois me ligaria.No dia seguinte liguei inúmeras vezes para o Dr. Roberto sem conseguir lhe falar, quando eu dizia para a secretária quem era, ela me falava sempre a mesma coisa; - Ele não está!
Era evidente que ele estava me evitando, na sexta feira pela manhã recebi um telefonema do senhor Orlando.

- Olha Antonio Carlos, nós realmente gostamos do sítio e queremos fazer negócio, tem uma coisa, nós vamos lá no sítio amanhã de manhã para fechar e o Dr. Roberto quer que a gente feche direto. Veja bem, eu não tenho nada com esta situação pois eu lhe avisei desde o começo que não tinha dinheiro para pagar a comissão, para arrumar o dinheiro da escritura já vai ser difícil! Eu não quero que você tenha prejuízo, veja como você consegue solucionar este problema!

O que eu desconfiava acabava de virar certeza, eu não podia perder aquela venda de maneira alguma, foi então que comecei a imaginar uma forma de reverter a situação e me lembrei de algo que está a nossa disposição mas dificilmente utilizamos e que a partir daquele dia passou a ser um grande aliado, o telegrama fonado.
Redigi o texto que segue e enviei de imediato:

“ Caro Dr. Roberto vimos notificá-lo de que estaremos amanhã pela manhã, juntamente com nosso cliente Sr. Orlando, para fechar a negociação da permuta do seu sítio em Vinhedo com a propriedade do mesmo em São Paulo, nas condições já combinadas.”

Me ocorreu que a cópia do telegrama juntamente com o comprovante de entrega, era uma forma ágil e perfeitamente legal de notificação extra judicial, com a vantagem de que num telegrama só se conhece o conteúdo após assinar o recebimento, ninguém abre um telegrama antes de assinar!.

Devo confessar que naquela época eu ainda não conseguia manter o controle total das minhas emoções antes de um fechamento e nem é preciso dizer que praticamente não dormi. No sábado, máquina de escrever na mão, carbono, papel timbrado, adrenalina a mil, antes das nove da manhã eu já estava no sítio. O Dr. Roberto me atendeu meio constrangido, o rubor lhe enfeitava a face!

- Bom dia Dr. como vai? Recebeu meu telegrama? O senhor Orlando está chegando dentro de instantes!

Eu tinha certeza de que ele não teria a cara de pau de me mandar embora, afinal ele não poderia negar que eu havia levado o cliente para ver o seu sítio, da mesma forma que o havia levado para ver a propriedade do senhor Orlando, senti que naquele momento era a casa dele que estava caindo

Antes das dez horas o senhor Orlando e família já estavam no local, mostrei o sítio novamente, a criançada era só alegria, corriam pelo pomar, pela beira da piscina, nora e sogra faziam planos para os almoços, pai e filho inspecionavam a churrasqueira, meu coração quase saia pela boca!

Sentamos todos na grande mesa de madeira maciça da sala ampla e arejada e comecei a examinar as escrituras, tudo estava correto, o filho do senhor Orlando pediu para ver o documento e só então fiquei sabendo que ele era promotor de justiça e que havíamos nos formado na mesma faculdade.

Comecei então a datilografar o contrato que o filho do senhor Orlando ditava, pois já havia trazido uma minuta elaborada, sem contudo esquecer o meu maior problema, como garantir o recebimento da comissão. Já no final do instrumento, antes de colocar o conhecido " e por estarem assim dispostos a se fazer cumprir o que se estipulou..., coloquei a última cláusula:

As partes acordam em que não haverá ônus de comissão para o permutante Orlando..., cabendo no entanto ao permutante Roberto..., o pagamento da comissão no valor de ...., a qual será paga no ato da lavratura das escrituras, valor do qual o mesmo se confessa e se declara devedor nos termos da lei.”

Não houve necessidade de ler o contrato em voz alta, até porque ele me havia sido ditado e os contratantes tinham perfeito conhecimento do seu inteiro teor. Passei primeiro para o senhor Orlando e esposa assinarem, assinei como testemunha juntamente com o promotor, e o entreguei ao Dr. Roberto e esposa. Fingi não perceber o sangue lhe subindo à face, mas ele não perdeu a pose e fez exatamente o que eu precisava e esperava que fizesse, assinou.

Por ocasião da escritura, antes de me passar o cheque ele deu um sorriso dizendo;
- É , você conseguiu tomar o meu dinheiro!

Desta transação pude tirar algumas lições que me são úteis até hoje, mas vale lembrar que neste caso especificamente, a minha sorte foi não contar com tempo hábil para conhecer o imóvel antes de levar o cliente, certamente neste caso, face as características inusitadas da negociação, a pressa do comprador e o detalhe da coincidência, eu teria perdido a venda. Coisas desta nossa complicada e majestosa profissão.

Fonte: AC de Paula
Publicado no Recanto das Letras em 01/03/2007
Código do texto: T397747

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