A questão apresentada envolve conhecimento específico da legislação
sobre terrenos da União, neles incluídos os de marinha, que são objeto
de aforamento, o que demandou maior cuidado sobre o tema, bem como maior
pesquisa na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Sabe-se
que o domínio do terreno de marinha é da União, e que esta concede o
aforamento, mediante condições específicas ao foreiro, o qual fica
obrigado a pagar o foro anual e o laudêmio em caso de venda do domínio
útil.
O terreno de marinha, conforme se verá, é de propriedade da
União por força da Constituição Federal de 1988 e de Leis
infraconstitucionais.
O que pode ser objeto de discussão de
propriedade é o domínio útil do mesmo terreno, sendo este o objeto comum
de contendas sobre a transferência do aforamento.
Contudo,
deve-se ressaltar que a questão do aforamento possui legislação própria,
não se aplicando a regra simples do Direito Civil de apenas transferir a
propriedade no Cartório de Registro de Imóveis.
Mesmo em caso de
desapropriação, esta deve ser referente ao domínio útil do terreno,
pois, conforme dito antes, apenas este pode ser passado de uma pessoa
para outra, pois a propriedade é da União.
Aliás, na
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é possível ação
possessória, usucapião, e, até mesmo, desapropriação, em relação ao
domínio útil de terreno objeto de aforamento.
O que se verifica, contudo, é que, na prática, os enfiteutas — possuidores do domínio útil — não cumprem a legislação referente ao aforamento, estando, por isso, sujeitos a penalidades previstas na lei específica.
Outrossim, há irregularidades práticas, no que diz respeito à transferência do domínio útil — aforamento —,
seja quanto à necessidade pagar foros e laudêmio à União, como em
relação a equívocos na própria transferência em Cartório e nos registros
da Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
Destarte, ninguém pode deixar de aplicar a lei alegando que não a conhece.
Legislação a ser obedecida
Assim dispõe o art. 3º, §2º, do Decreto-Lei nº 2.398/87:
Assim dispõe o art. 3º, §2º, do Decreto-Lei nº 2.398/87:
“Art.
3° Dependerá do prévio recolhimento do laudêmio, em quantia
correspondente a 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio
pleno e das benfeitorias, a transferência onerosa, entre vivos, do
domínio útil de terreno da União ou de direitos sobre benfeitorias neles
construídas, bem assim a cessão de direito a eles relativos.
(Regulamento).
1° As transferências parciais de aforamento ficarão sujeitas a novo foro para a parte desmembrada.
Parágrafo
2° Os Cartórios de Notas e Registro de Imóveis, sob pena de
responsabilidade dos seus respectivos titulares, não lavrarão nem
registrarão escrituras relativas a bens imóveis de propriedade da União,
ou que contenham, ainda que parcialmente, área de seu domínio: (Redação
dada pela Lei nº 9.636, de 1998)
I - sem certidão da Secretaria do Patrimônio da União - SPU que declare: (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)
a)
ter o interessado recolhido o laudêmio devido, nas transferências
onerosas entre vivos; (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)
b)
estar o transmitente em dia com as demais obrigações junto ao
Patrimônio da União; e (Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998)
c)
estar autorizada a transferência do imóvel, em virtude de não se
encontrar em área de interesse do serviço público; (Redação dada pela
Lei nº 9.636, de 1998)
II - sem a observância das normas estabelecidas em regulamento. (Incluído pela Lei nº 9.636, de 1998)."
Observe-se
que para se transmitir o domínio útil de terreno da União, os Cartórios
de Notas e Registro de imóveis devem ter certidão da SPU que declare
ter o interessado recolhido o laudêmio devido, nas transferências
onerosas entre vivos, e estar o transmitente em dia com as demais
obrigações junto ao patrimônio da União.
É de se observar que, não
raro, os cartórios desconhecem esta norma, fazendo crer ao comprador do
domínio útil do bem da União, que a transferência no Cartório por si só
basta como formalidade jurídica para a transmissão da propriedade,
inclusive, sem exigir certidão que comprove quitação de débitos perante a
SPU.
Relembre-se a obrigação do foreiro de pagar o foro anual,
bem como o laudêmio no caso de venda. É evidente que a regra de pagar o
laudêmio permanece válida, também, no caso de desapropriação do domínio
útil.
Observe-se que não há como se justificar a ausência de
pagamentos de valores devidos por lei à União, real proprietária do bem
objeto do aforamento.
Assim sendo, se houver erro por parte do
cartório, esse é um problema que não diz respeito à União, até porque é o
cartório delegatário do Estado, ente diverso da Federação, devendo
eventual ação de indenização ser direcionada a quem houver dado causa
aos danos sofridos, em razão de se perder algum direito quanto ao bem
que não foi regularizado perante a SPU, segundo a legislação específica,
conforme se verá.
O fato é que as dívidas não prescritas
(observando-se que existem casos de suspensão e interrupção da
prescrição) devem ser cobradas pela União para a transferência do
aforamento, salvo em eventual parte que esteja sendo discutida
judicialmente, que, em caso de vitória, será recebida depois, mediante
os trâmites devidos.
Nesse sentido, é imperioso que a SPU informe
eventual interessado, sobre a possibilidade de caducidade do aforamento,
bem como os valores devidos e as obrigações correlatas, para que este,
em razão de negócio jurídico envolvendo o domínio útil, realize a
transferência na SPU, e pague as dívidas, desde que atenda os requisitos
legais para tanto, para constar no cadastro de forma regular.
Importante
informar que quem consta no cadastro da SPU é quem é cobrado por esta.
Logo, a transmissão no Cartório, apenas, não elide a responsabilidade
perante a União.
Quanto a quem realiza negócio jurídico envolvendo
domínio útil de imóvel da União, assiste interesse em pagar a dívida
existente, uma vez que o não pagamento do valor total devido poderá
ensejar a caducidade do aforamento, conforme se verá.
Assim sendo,
é sempre recomendável informar os interessados sobre as consequências
da não regularização perante a SPU, para permitir-lhes o direito ao
contraditório constitucionalmente assegurado, para que eventual
caducidade depois não seja contestada sob esse fundamento (de falta de
contraditório).
É, ademais, dever legal que a SPU cobre, também,
para que pague os valores devidos, quem consta nos seus cadastros, mesmo
que este tenha transferido o título no Cartório, uma vez que tal fato
não é oponível à SPU, em razão de legislação própria.
Destarte, a
recomendação acima de informar o interessado, é apenas para que este não
sofra as consequências da caducidade do aforamento, entre outras. Mas a
cobrança vai para quem está cadastrado na SPU, independentemente de
acordo entre as partes.
Legislação sobre a transferência do aforamento
Sobre a transferência do aforamento, assim dispõe o art. 116 do Decreto-Lei 9760/46, in fine:
Sobre a transferência do aforamento, assim dispõe o art. 116 do Decreto-Lei 9760/46, in fine:
"Artigo
116 - Efetuada a transação e transcrito o título no Registro de
Imóveis, o adquirente, exibindo os documentos comprobatórios, deverá
requerer, no prazo de 60 (sessenta) dias que para o seu nome se
transfiram as obrigações enfitêuticas.
Parágrafo
1º - A transferência das obrigações será feita mediante averbação, no
órgão local do SPU, do título de aquisição devidamente transcrito no
Registro de Imóveis, ou, em caso de transmissão parcial, do terreno
mediante termo.
Parágrafo 2º - O
adquirente ficará sujeito à multa de 0,05% (cinco centésimos por cento),
por mês ou fração, sobre o valor do terreno e benfeitorias nele
existentes, se não requerer a transferência dentro do prazo estipulado
no presente artigo."
Da análise supra, caso o “adquirente” do domínio útil não tome as providências acima, ficará sujeito às sanções cabíveis.
O tema “transferência” se encontra na seção III do Capítulo IV, que versa sobre o aforamento - Decreto-Lei nº 9760/46.
Assim dispõe o artigo 101 da lei em espeque sobre a caducidade do aforamento:
"Artigo
101 - Os terrenos aforados pela União ficam sujeitos ao foro de 0,6%
(seis décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno, que será
anualmente atualizado. (Redação dada pela Lei nº 7.450, de 1985)
Parágrafo
único. O não-pagamento do foro durante três anos consecutivos, ou
quatro anos intercalados, importará a caducidade do aforamento. (Redação
dada pela Lei nº 9.636, de 1998)"
A seção IV do suprareferido capítulo da Lei em espeque traz a seguinte previsão sobre a caducidade do aforamento:
"Artigo
118. Caduco o aforamento na forma do parágrafo único do art. 101, o
órgão local da SPU notificará o foreiro, por edital, ou quando possível
por carta registrada, marcando-lhe o prazo de noventa dias para
apresentar qualquer reclamação ou solicitar a revigoração do
aforamento.(Redação dada pela Lei nº 9.636, de 1998).
Parágrafo
único. Em caso de apresentação de reclamação, o prazo para o pedido de
revigoração será contado da data da notificação ao foreiro da decisão
final proferida.
Artigo 119.
Reconhecido o direito do requerente e pagos os foros em atraso, o chefe
do órgão local da Secretaria do Patrimônio da União concederá a
revigoração do aforamento. (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007)
Parágrafo
único. A Secretaria do Patrimônio da União disciplinará os
procedimentos operacionais destinados à revigoração de que trata o caput
deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
Artigo
120. A revigoração do aforamento poderá ser negada se a União
necessitar do terreno para serviço público, ou, quanto às terras de que
trata o artigo 65, quando não estiverem as mesmas sendo utilizadas
apropriadamente, obrigando-se, nesses casos, à indenização das
benfeitorias porventura existentes.
Artigo
121. Decorrido o prazo de que trata o art. 118, sem que haja sido
solicitada a revigoração do aforamento, o Chefe do órgão local do S.P.U.
providenciará no sentido de ser cancelado o aforamento no Registro de
Imóveis e procederá na forma do disposto no art. 110.
Parágrafo
único. Nos casos de cancelamento do registro de aforamento,
considera-se a certidão da Secretaria do Patrimônio da União de
cancelamento de aforamento documento hábil para o cancelamento de
registro nos termos do inciso III do caput do art. 250 da Lei no 6.015,
de 31 de dezembro de 1973. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)."
Como
se pode observar há consequências graves, em caso de caducidade do
aforamento, e do descumprimento dos prazos legais, motivo pelo qual deve
ser informado tanto a quem conste no cadastro da SPU, como a eventual
interessado, sobre as consequências previstas na Legislação sobre a
necessidade de regularização de procedimentos e dívidas em domínio útil
de terreno de marinha, que pertence à União, oportunizando o
contraditório e ampla defesa, para depois adotar as medidas previstas na
legislação, em caso de descumprimento das determinações legais.
Trago à colação Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema:
"EMENTA
- ADMINISTRATIVO. TERRENO DE MARINHA. TRANSMISSÃO DE DOMÍNIO ÚTIL. FATO
GERADOR DA OBRIGAÇÃO DE PAGAR O LAUDÊMIO. REGISTRO DO IMÓVEL EM
CARTÓRIO. BENFEITORIAS REALIZADAS APÓS A CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE
COMPRA E VENDA DO TERRENO E ANTERIORES AO FATO GERADOR. EXCLUSÃO NA BASE
DE CÁLCULO DO LAUDÊMIO. IMPOSSIBILIDADE.
1.
Cuida-se, na origem, de mandado de segurança impetrado pelos ora
recorrentes contra ato do Gerente do Serviço do Patrimônio da União em
Fortaleza, cuja ordem, que objetivava afastar do cálculo do laudêmio as
benfeitorias realizadas em terreno de marinha após a celebração do
contrato de compra e venda deste, foi denegada.
2.
Em verdade, laudêmio é a compensação assegurada ao senhorio direto por
este não exigir a volta do domínio útil do terreno de marinha às suas
mãos ou de direitos sobre benfeitorias nele construídas. Tal vantagem
tem por fato gerador a alienação desse domínio ou desses direitos e uma
base de cálculo previamente fixada pelo art. 3º do Decreto n. 2.398/87.
3.
A propósito, o art. 3º do Decreto n. 95.760/88, ao fixar como será
efetuado o cálculo do valor do laudêmio, não deixa dúvidas.
4.
Como se depreende da redação dos dispositivos acima, a base de cálculo
do laudêmio consiste não meramente no valor atualizado do domínio pleno,
mas também das benfeitorias.
5. Por
sua vez, esta Corte já firmou que o fato gerador da debatida exação não
ocorre quando da celebração do contrato de compra e venda nem da sua
quitação, mas, sim, da data do registro do imóvel em Cartório de
Registro de Imóveis, momento da transferência do domínio útil do aludido
direito real, razão pela qual deveriam incidir 5%, não meramente sobre o
valor do imóvel ao tempo do ajuste, mas sobre o valor atualizado do
bem.
6. Nesse sentido, diante do
princípio da legalidade e da indisponibilidade dos bens ou faculdades
inerentes à titularidade do domínio público, muito embora as
benfeitorias tenham sido comprovadamente construídas após a celebração
do acordo de compra e venda, estas não podem ser excluídas da base de
cálculo do laudêmio, sobretudo se ainda não ocorreu o registro do imóvel
em Cartório de Registro de Imóveis.
7.
Recurso especial conhecido e não provido. (Processo REsp 1257565/CE –
RECURSO ESPECIAL 2011/0124988-1 – Relator(a) Ministro MAURO CAMPBELL
MARQUES (1141) – Órgão julgador T2 – SEGUNDA TURMA – Data do julgamento
23/08/2011 – Data da Publicação/Fonte Dje 30/08/2011)."
"EMENTA
- ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL.
IMÓVEIS DA UNIÃO. TERRENO DE MARINHA. TAXA ANUAL DE OCUPAÇÃO. .EXCEÇÃO
DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. TRANSFERÊNCIA DA OCUPAÇÃO DO IMÓVEL A TERCEIRO.
CESSÃO DE POSSE. NÃO OPONÍVEL EM FACE DA UNIÃO. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO.
PAGAMENTO. RESPONSABILIDADE DE QUEM FIGURA COMO OCUPANTE NO CADASTRO DA
SECRETARIA DE PATRIMÔNIO DA UNIÃO - SPU.
(...)
8. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido
de que o título de propriedade do particular não é oponível à União
nesses casos, pois os terrenos de marinha são da titularidade originária
deste ente federado, na esteira do que dispõem a Constituição da
República e o Decreto-lei n. 9.760/46.
9.
Recurso especial não provido. (Processo REsp 1201256/RJ – RECURSO
ESPECIAL 2010/0123786-0 – Relator(a) Ministro BENEDITO GONÇALVES (1142) –
órgão Julgador T1 – PRIMEIRA TURMA – Data do Julgamento 07/12/2010 –
Data da Publicação/Fonte Dje 22/02/2011)."
Disposição para o aforamento
A União possui a propriedade do terreno de marinha; todavia, pode dispor de seu domínio útil. Com o aforamento, há esta disposição, que deve ocorrer de acordo com legislação específica; atenua-se, aqui, o paradigma de que a transcrição do título no Cartório de Registro de Imóveis é suficiente para a transmissão da propriedade, pois, em relação ao terreno de marinha, há a obrigação de transferência no cadastro da SPU, sob pena de caducidade do aforamento, após os trâmites legais.
A União possui a propriedade do terreno de marinha; todavia, pode dispor de seu domínio útil. Com o aforamento, há esta disposição, que deve ocorrer de acordo com legislação específica; atenua-se, aqui, o paradigma de que a transcrição do título no Cartório de Registro de Imóveis é suficiente para a transmissão da propriedade, pois, em relação ao terreno de marinha, há a obrigação de transferência no cadastro da SPU, sob pena de caducidade do aforamento, após os trâmites legais.
O
negócio realizado entre as partes não é oponível à SPU, uma vez que
esta deve cumprir a Lei, sendo indisponível o bem público; “contratos de
gaveta” muito menos são oponíveis à União.
Nota-se
desconhecimento da Legislação específica, inclusive, por parte dos
titulares de cartórios, os quais deveriam transferir o domínio útil de
terreno de marinha apenas após a comprovação de que não há dívidas
perante a SPU.
O domínio útil de imóvel objeto de aforamento pode
ser objeto de disputa entre particulares, sendo, contudo, a propriedade
do imóvel da União; desse modo, pode haver ação possessória, usucapião,
ou, até mesmo, desapropriação envolvendo o domínio útil.
Contudo, o que
importa é obedecer os trâmites legais, pagando-se os valores à União,
através da SPU, pela utilização do domínio útil desse bem.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Admi-nistrativo. 25ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Atlas S.A., 2002.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRAN-CO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de Direito Constitucional. 1ª edição. São Paulo: Saraiva,
2007.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
Autor: Rodrigo Passos Pinheiro é advogado da União.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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