O usucapião (ou a usucapião, tanto faz), é aquisição originária, consumando-se por meio do exercício continuado da posse. Existem atualmente sete modalidades de usucapião, a saber: 1) usucapião extraordinário (artigo 1.238 do NCC); 2) usucapião ordinário (artigo 1.242 do NCC); 3) usucapião constitucional urbano (artigo 1.240 do NCC e 183 da CRFB); 4) usucapião constitucional rural (artigo 1.239 do NCC e 183 da CRFB) também conhecido como pro labore; 5) usucapião especial coletivo (artigo 10 do Estatuto da Cidade); 6) usucapião extraordinário com prazo reduzido (parágrafo único do artigo 1.238 do NCC) e 7) usucapião ordinário com prazo reduzido (parágrafo único do artigo 1.242 do NCC), que será objeto de nossa análise.
A redução de prazo foi uma constante em matéria de prescrição, cuja
ratio consiste em valorizar a segurança e estabilidade das relações
jurídicas. A função social da propriedade e da posse também fomentou
inovações, seguindo diretriz constitucional, fruto da mescla da teoria
da utilidade social com a teoria do ato de soberania, dando azo ao
surgimento da teoria da utilidade social mitigada, que se baseia na
preponderância da noção de utilidade social, delimitadora do poder do
proprietário, também controlado pelo poder de império do Estado emanado
da soberania.
O parágrafo único do artigo 1.242 do Código Civil estabelece que: “Será
de 5 anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido
adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo
cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele
tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de
interesse social e econômico”.
Trata-se de modalidade inédita de prescrição aquisitiva, cujos
requisitos são aquisição a título oneroso, com base no registro,
posteriormente cancelado, somado à moradia ou investimentos de interesse
social e econômico, o que nada mais é do que a função social da
propriedade.
Sem dúvida, este dispositivo tem alcance profundo, mexendo com dogmas e princípios jurídicos de grande importância, principalmente na esfera registral.
De forma perfunctória, pode-se dizer que temos em questão o princípio
da presunção de veracidade do registro e da fé pública registral, a
aquisição a non domino, a sanatória da inscrição, além de outros
postulados.
O novo instituto, sem dúvida, protege aquele que adquire onerosamente e com boa-fé, de quem não é dono. O Código Civil abraçou a teoria da aparência no artigo 1.817, legitimando a aquisição onerosa e de boa-fé, de imóvel pertencente a herdeiro aparente, valendo dizer que ficam de fora as aquisições gratuitas. Nosso ordenamento não agasalhou o princípio da presunção absoluta (fé pública registral), tal qual ocorre na Alemanha e como corolário dessa assertiva, pode-se dizer que a presunção de veracidade do registro é relativa, podendo ser destruída em determinadas hipóteses. Mas a questão não é tão simples assim, existindo corrente de vanguarda defendendo que a presunção é absoluta, tendo em vista a complexidade do fólio real, onde são feitos os lançamentos relativos á propriedade imóvel, bem como a precisão da publicidade passiva que deve prestigiar o adquirente probo e cauteloso e que tomou todos os cuidados necessários antes de realizar um negócio jurídico; caso contrário de nada valeria o sistema registral, totalmente desprovido de eficiência.
Nosso sistema registral é substantivo, ou seja, se baseia num título
causal e por isso se houver invalidade no título aquisitivo, a inscrição
será afetada indiretamente. O vício pode ser inerente ao título causal
ou ao registro, neste último caso a ação anulatória ou de retificação
limitada à pré-inscrição, pode ser postulada em face do registrador, que
deverá sanar o defeito. O sistema alemão, onde impera a presunção de fé
pública, é abstrato, as partes comparecem perante o registrador para
formalizar a transmissão da propriedade. Portanto, a veracidade do
registro pode vacilar quando houver nulidade ou anulabilidade do título
causal, defeito da inscrição e fraude à execução (artigo 216 da LRP),
onde prepondera o interesse público, sendo o ato fraudatório ineficaz
para o processo. A aquisição a non domino, para muitos, importaria em
presunção absoluta de veracidade do registro, quando realizada a título
oneroso e com boa-fé.
A nova espécie de usucapião ordinário visa, exatamente, à proteção da aquisição a non domino e isso é verificado quando exige como requisito legal o cancelamento da inscrição, palavra oculta no texto legal, que na realidade é espécie do gênero registro. Quer dizer que se não houver cancelamento, a prescrição não se consumará? Acho precipitada essa ilação, pois em determinados casos a usucapião poderá ser alegada em defesa, mesmo que não haja sentença anulatória de registro, sendo medida de economia processual. Nesse passo, podemos entender que o princípio da presunção absoluta ficou fortalecido com a eficácia sanatória da inscrição nestes casos, mas não há negar que o mesmo Código admite, no artigo 457, que o adquirente de boa-fé pode demandar pela evicção.
O saneamento ocorrido com a inscrição do usucapião é fato, mas não tem a
mesma extensão do usucapião tabular ou de livro, previsto no parágrafo
900 do Código Civil Alemão (BGB), senão vejamos: “Quem, como
proprietário de um prédio, estiver inscrito no Livro de Imóveis, sem que
tenha ele obtido a propriedade, adquirirá a propriedade quando a
inscrição durar trinta anos e, durante esse tempo, tiver tido ele a
posse do prédio a título de propriedade”.
Não tenho dúvida em afirmar que vejo muitas afinidades entre o
usucapião tabular e o previsto no parágrafo único do artigo 1.242, porém
existem diferenças básicas, já que o prazo do primeiro é bem mais
extenso (30 anos), além disso, não se exige boa-fé e a eficácia
sanatória é profunda. No usucapião ordinário tabular previsto na norma
supramencionada, o prazo é efêmero (5 anos) e por se tratar de
modalidade ordinária de aquisição originária, a noção de justo título
deve estar presente, até mesmo pela ocorrência da aquisição a non
domino, e portanto não se deve admitir invalidade absoluta do título
causal, cada caso deve ser analisado detidamente e com ponderação de
interesses, seja a incapacidade relativa ou absoluta do agente, a falta
de outorga uxória, a declaração falsa do estado civil, a fraude a
credores; sendo a sanatória moderada.
A verificação do melhor interesse é viável quando houver sobreposição de vícios na matrícula do imóvel; imaginem que alguém adquira um imóvel a non domino, agindo de boa-fé, sendo depois surpreendido com alegações de nulidade do título causal por ser o vendedor absolutamente incapaz. De repente aparece alguém se dizendo herdeiro preterido, bem como um credor alegando fraude à execução e fraude a credores. Ora, o Registro Imobiliário, sem dúvida, difere do Registro Civil de Pessoas Naturais, onde a presunção do registro é essencialmente relativa, mas é entendimento predominante que a veracidade do Registro Predial é relativa, sendo a evicção, a anulação e a nulidade da inscrição uma realidade prevista no Código Civil e na Lei de Registros Públicos, portanto em muitos casos concretos a solução do litígio deverá ser pautada na razoabilidade.
O usucapião é elemento de ligação entre a posse e a folha registral,
exercendo grande interferência na sistemática de registro, acarretando
transformações na matrícula do imóvel, rompendo em certos casos com
princípios estruturais, porém o registrador deverá se acautelar quando,
por exemplo, receber mandado judicial para registrar a prescrição
aquisitiva e verificar que o proprietário constante da matrícula não
consta da relação jurídica processual, representando tal fato
contrariedade à continuidade subjetiva e ao princípio constitucional da
ampla defesa. Direito é bom senso, portanto essa invalidade processual
deverá ser questionada.
A ação de retificação de registro, prevista no artigo 213 da LRP, também conhecida como usucapião de sobra, para Tupinambá Miguel Castro do Nascimento (in Usucapião, Editora Aide, página 20) trata-se de nova forma de aquisição imobiliária, já que a diferença entre o título causal e a inscrição será adquirida pelo registro. Mas existe entendimento no sentido de que a aquisição da propriedade, nestes casos, não pode ocorrer via retificação de registro e sim por usucapião. A retificação de registro e de área, mesmo sobre um enfoque intramuros, deve ter como alvo a potencialidade de danos em relação a terceiros, sendo tolerados acréscimos de 5% desde que os confrontantes estejam de acordo. A parte final do parágrafo segundo do citado artigo 213, também faz alusão a uma espécie de usucapião tabular senão vejamos: “Se da retificação resultar alteração da descrição das divisas ou da área do imóvel, serão citados, para se manifestar sobre o requerimento em 10 dias, todos os confrontantes e o alienante ou seus sucessores, dispensada a citação destes últimos se a data da transcrição ou da matrícula remontar a mais de vinte anos”. Porém neste caso não há efetividade, pois a aplicabilidade está voltada exclusivamente para fins de citação dos sucessores, não conferindo aquisição originária.
É proveitoso sob a ótica dos aspectos dinâmicos da publicidade
registral, que registro e aquisição originária estejam cada vez mais
próximos, evitando interferências drásticas no direito de propriedade,
aproximando a publicidade registral, dos institutos da função social da
posse e da propriedade, em que pese haver entendimento no sentido de que
na transmissão da propriedade pela saisine ou pelo falecimento, bem
como no usucapião e na desapropriação, não seria necessário registro, já
que o artigo 1.245 do Código Civil só aventa a transmissão entre vivos e
nas aquisições originárias a sentença e o pagamento da indenização na
desapropriação seriam o momento e a prova da transmissão.
Não comungo deste posicionamento, pois se isso fosse verdade a
publicidade do registro seria desprezível e inócua. A sentença
declaratória de usucapião produz efeitos por si só, sendo a publicidade
registral formal, obrigatória, passiva e declaratória. Adquire-se por
usucapião, a servidão, a enfiteuse, o direito real de uso, habitação,
usufruto, imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade e
fideicomisso, imóvel registrado pelo Sistema Torrens, imóvel objeto de
herança jacente, bem como usucapião da liberdade, expressão usada por
Caio Mário da Silva Pereira (in Instituições de Direito Civil, volume
VI, Editora Forense, página 286), inerente a bem hipotecado, desde que
passados 20 anos sem cobrança.
O usucapião de usufruto tem um aspecto interessante, por se tratar de
direito personalíssimo, sua constituição será desvinculada do direito
anterior. Quanto ao gravame de incomunicabilidade há duas correntes, uma
defendendo a sua viabilidade e outra, dizendo que o bem estaria fora do
comércio e que tal situação daria azo a conluio entre o proprietário
impedido de alienar e o possuidor. A prescrição da hipoteca pode ocorrer
por via indireta, quando houver aquisiçãoa non domino e o gravame não
estiver inscrito, transcorrido o lapso temporal do usucapião ordinário a
dívida não poderá mais ser cobrada, bem como quando alguém adquire
imóvel de terceiro sem gravame, decorrido prazo do usucapião ordinário,
prescreve o direito do credor hipotecário. Transcorrido o prazo de
validade da hipoteca registrada (20 anos) sem que haja cobrança,
acontece o que se denomina usucapião da liberdade.
O usucapião de bem do fiduciário tem validade enquanto durar o
fideicomisso, ou seja, até a transmissão do bem ao fideicomissário,
trata-se de propriedade resolúvel, o mesmo ocorrendo com o usucapião de
bom doado com cláusula de reversão, morrendo o donatário, o bem retorna
ao doador, não subsistindo a aquisição originária. Tem-se admitido
usucapião de bem constante de herança jacente, desde que a consumação
ocorra antes da sentença de vacância. É possível usucapir imóvel
inscrito no Registro Torrens, desde que a posse se inicie após a
inclusão do bem no sistema, ou até mesmo, quando haja acessio
possessionis do período anterior com o posterior, pois antes do
complicado processamento de inclusão só existia expectativa de direito.
Somente a servidão aparente pode ser usucapida e em se tratando de
enfiteuse, o domínio útil pode ser alvo da prescrição aquisitiva, mesmo
sendo bem público, já o domínio direto não e, finalmente, o condômino
pode usucapir área comum, a questão é controvertida, assim como o
usucapião da passagem forçada, não admitido por José Carlos de Moraes
Salles (Usucapião de Bens Imóveis e móveis, Editora Revista dos
Tribunais, página 103).
Esse despretensioso artigo, não tem a veleidade de traçar rumos, mas
sim, chamar atenção para o novo instituto, ligado a assuntos instigantes
e tormentosos do Direito Registral.
Autor: Júlio Soares Neto / Tabelião do 1º Ofício de Justiça de Valença-RJ.
Autor: Júlio Soares Neto / Tabelião do 1º Ofício de Justiça de Valença-RJ.
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