O
problema
Os
cartórios de Registro de Imóveis começam a receber pedidos de cancelamento de
registro da alienação fiduciária pelo implemento da condição (pagamento da
dívida).
Ocorre
que, em muitos casos, os direitos foram cedidos pelo titular (proprietário
fiduciário) por meio de CCI´s – cédulas de crédito imobiliário, emitidas para
fins de obtenção de novos recursos.
Nestas
circunstâncias, novos titulares de direitos surgem, em substituição aos
credores originários. Findo o contrato, remanesce a necessidade de se fazer o
cancelamento do registro de alienação fiduciária, nos termos do Art. 25, § 2º
da Lei 9.514, de 1997, já que o pagamento da dívida (e seus encargos), resolve
de pleno direito a propriedade fiduciária. Diz a Lei:
§
1º No prazo de trinta dias, a contar da data de liquidação da dívida, o
fiduciário fornecerá o respectivo termo de quitação ao fiduciante, sob pena de
multa em favor deste, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, sobre o
valor do contrato.
§
2º À vista do termo de quitação de que trata o parágrafo anterior, o oficial do
competente Registro de Imóveis efetuará o cancelamento do registro da
propriedade fiduciária.
Porém,
o subscritor de tais requerimentos (intitulado “credor fiduciário”) é outro que
não aquele que figurou no registro como titular da propriedade fiduciária.
Constatada
a quebra da continuidade, o Cartório acaba devolvendo o título para que se
reate o trato sucessivo. É nessa ocasião que são apresentadas declarações
passadas por entidades integrantes de sistemas centralizados de custódia e
liquidação financeira de títulos privados atestando que ocorrera a cessão do
crédito e que o atual titular seria terceiro e não o fiduciário originário.
O
problema, então, surge, com toda a complexidade.
Fundamento
da resistência
O singelo fundamento da
denegação da averbação e devolução do título é o art. 195 e 237 da Lei 6.015,
de 1973, que rezam:
Art.
195 – Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante,
o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer
que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.
Art.
237 – Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa
da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do
registro.
Os
interessados, via de regra bancos comerciais, arrostam a devolução sustentando
que os §§ 1º e 2º do art. 22 da Lei 11.931, de 2004, autorizariam o
cancelamento perseguido já que a cessão de crédito estaria “dispensada de
averbação no Registro de Imóveis“.
Citam, em arrimo da tese, o art. 22 da Lei
9.514, de 1997. Aqui vai o conjunto normativo:
Art.
22. A cessão do crédito representado por CCI poderá ser feita por meio de
sistemas de registro e de liquidação financeira de títulos privados autorizados
pelo Banco Central do Brasil.
§
1º A cessão do crédito representado por CCI implica automática transmissão das
respectivas garantias ao cessionário, sub-rogando-o em todos os direitos
representados pela cédula, ficando o cessionário, no caso de contrato de
alienação fiduciária, investido na propriedade fiduciária.
§
2º A cessão de crédito garantido por direito real, quando representado por CCI emitida
sob a forma escritural, está dispensada de averbação no Registro de Imóveis,
aplicando-se, no que esta Lei não contrarie, o disposto nos arts. 286 e
seguintes da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil Brasileiro.
A
questão estaria aparentemente superada. A simples declaração passada por
entidades integrantes de sistemas centralizados de custódia e liquidação
financeira de títulos privados (art. 7º, § 1º da Lei 9.514/1997) poderia suprir
a necessidade de título legitimo registrado para configurar a situação jurídica
do proprietário fiduciário, cessionário do crédito.
Mas
a questão fulcral que não foi enfrentada é seguinte: pode a transmissão da
propriedade resolúvel dar-se sem o respectivo registro? É disso que se trata. A
cessão do crédito (principal) implicaria a sucessão singular na propriedade
fiduciária (elemento acessório). Como fazê-lo sem que se cumpra o art. 1.245 do
CC?
A
propriedade é um direito real (CC. art. 1.225, I) que se transfere “mediante o registro
do título translativo no Registro de Imóveis” (CC, art. 1.245).
As
potentes presunções que decorrem do registro são confirmadas pelo código civil
no dito art. 1.245, § 1º:
Enquanto
não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como
dono do imóvel.
A
regra de direito material percute na Lei 6.015, de 1973 – art. 252 da LRP:
Art.
252 – O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda
que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto
ou rescindido.
Calha
dizer que o art. 1.227 do CC também obriga a transmissão dos direitos reais à
formalidade essencial do registro:
Art.
1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos
entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis
dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste
Código.
Tirante
a babel nominalista que cega o legislador – que o faz confundir, adrede,
averbação com registro, o fato é que estamos diante de uma mutação
jurídico-real, ainda que consubstanciada no Ofício Imobiliário por averbação da
cessão.
Como
superar as exigências de caráter formal representadas por este conjunto
normativo?
Uma
nova perspectiva gostaria de propor aos especialistas e instaurar uma
discussão: a cessão do crédito garantido pelo direito real está dispensada do
registro quando e somente quando não implicar a transmissão da propriedade ou
da titularidade de um direito real.
Uma
coisa é o crédito garantido por um direito real, outra a propriedade. Aquele
poderia ser cedido nas condições previstas na Lei, não a propriedade ou o
direito direito real. Isso seria possível, por exemplo, na cessão caucionária
do crédito (art. 17, III, c.c. § 1º da Lei 9.514/1997). Ou na cessão de
direitos que servem de lastro para o crédito imobiliário mas que não dependem
do registro para sua constituição (eficácia) e publicidade (para usar as
expressões que se insinuaram no art. 63-A da Lei 10.931, de 2004).
O
art. 289 do CC, expressamente referido na Lei 9.514/1997 (§ 2º do art. 22),
faculta a cessão mas o apoio que se fez neste dispositivo somente confirma a
tese aqui desenvolvida. Isto porque:
(a)
o artigo 286 do CC alude relações obrigacionais (“instrumento da obrigação”);
(b)
o art. 289 do mesmo código prevê o direito do cessionário de averbar a cessão
no caso de cessão do crédito hipotecário – não a transferência da propriedade.
Art.
289. O cessionário de crédito hipotecário tem o direito de fazer averbar a
cessão no registro do imóvel.
Poder-se-ia,
então, sustentar, em conclusão, que a cessão do crédito garantido por direito
real estaria dispensada da averbação quando não implicasse a mutação
jurídico-real na titularidade do direito, representando, o § 2º da Lei 10.931,
de 2004, uma hipótese exceptiva no contexto das cessões possíveis no âmbito das
CCI´s.
Porta
aberta à fraude
A
dispensa do registro da propriedade é a porta aberta para a fraude e a
desestruturação do sistema de registro imobiliário no Brasil.
Sem
o registro dessas mutações jurídicas, como se poderia saber quem é o
proprietário?
Seria
necessário diligenciar as centrais de custódia autorizados pelo Bacen e CVM
para se saber? Quantas são? Onde estão? Estão interconectadas? A emissão
fracionária é controlada por todas elas?
Uma
vez cedido o crédito sem o registro, uma outra cessão sempre será possível,
pois o registro promove a publicidade da situação jurídica do imóvel – eixo
fundamental da garantia real. Essa segunda cessão poderia, inclusive, ser
averbada, com o completo desconhecimento da primeira.
Numa
disputa judicial, instaurado o concurso preferencial, quem teria a preferência
do direito real numa eventual excussão (art. 768 do CPC)? Isso sem falar na
emissão fracionária da cédula (art. 18 e seus parágrafos da Lei 10.931/2004)…
Vê-se que é praticamente impossível aferir os títulos de preferência que os
direitos reais conferem sem o Registro Imobiliário.
Os
titulares de direitos reais, que deverão ser obrigatoriamente cientificados da
alienação forçada (art. 698 do CPC), dificilmente serão identificados na
dispersão executiva decorrente da especialização judiciária se não figurarem na
certidão expedida para os fins e efeitos do art. 659, parágrafos 4 e 5 do CPC.
Outras
questões relevantes podem ser agitadas. Por exemplo, a constituição do devedor
em mora e consolidação da propriedade em nome do fiduciário. Quem terá a
iniciativa de tomar as providências previstas no art. 26 da Lei 9.514, de 1997.
Em nome de quem se consolidará a propriedade se o cessionário não se legitimou
pelos mecanismos do Registro?
Essa
é a razão pela qual entendemos que a cessão de crédito, instrumentalizada pelas
CCI´s, quando envolver a transmissão da propriedade (fiduciária) deve transitar
pelo Registro de Imóveis competente – ainda que a transmissão da propriedade se
opere, nestes casos, por mera averbação.
Fonte:
Imprensa ARISP
Nota do Editor:
A
CCI é o documento representativo do crédito originado pela existência de
direitos de crédito imobiliário com pagamento parcelado. A cédula é emitida
pelo credor, com o objetivo de facilitar e simplificar a cessão do crédito.
Desse modo a cédula atende o mercado da securitização, agilizando a negociação
de créditos uma vez que a cessão pode ser feita mediante o endosso no próprio
título, sem necessidade de uma formalização com um contrato de cessão.
A
principal virtude das CCIs de um modo geral é que sua negociação se faz
independentemente de autorização do devedor, uma característica indispensável
para adequar o crédito imobiliário às condições de negociação no mercado
financeiro e de capitais.
Além
da tradicional forma cartular (em papel), a lei admite a emissão de CCI
escritural, compatível com a evolução tecnológica de uso de meios eletrônicos
para realização de negócios. Trata-se de título emitido por escritura pública
ou particular, que permanece custodiada em instituição financeira, sendo
registrada por meio de sistemas de registro e liquidação financeira de títulos
privados, autorizados pelo Banco Central do Brasil. A movimentação das CCIs
escriturais é feita por sistemas eletrônicos de negociação. (Excerto do texto
de Acrux Capital Management)
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