quinta-feira, 15 de agosto de 2013

CLÁUSULA DE RESÍDUO EM CONTRATOS DE HABITAÇÃO É NULA


Rotineiramente, a Defensoria Pública da União recebe demandas com a seguinte pretensão: o assistido[1] contratou financiamento habitacional perante a Caixa Econômica Federal, quitou todas as prestações previstas contratualmente e, após o termo final das obrigações, remanesce débito residual do contrato, muitas vezes em valor superior à avaliação do próprio imóvel.

Em outras palavras, o mutuário pagou vinte, ou até trinta anos de prestações mensais e sucessivas e, ao final do contrato, quando se pensava que o débito referente ao imóvel tinha sido quitado, e o sonho da casa própria alcançado, o agente financeiro alega a existência de saldo devedor, não raro, superior ao valor do bem financiado.

Trata-se da política habitacional cujos contratos de financiamento habitacional firmados sob a égide do “Plano de Equivalência Salarial”, instituído pela Resolução 36, de 11 de novembro de 1969, pelo extinto Banco Nacional de Habitação, visavam conter o valor da prestação da casa própria, limitando-a a percentual do salário do mutuário, inclusive os reajustes. Por esta razão, na maioria dos casos, a prestação fixada não era suficiente para quitação integral do contrato, mesmo depois de adimplidas todas as parcelas pactuadas. Tais contratos poderiam prever ou não a cobertura do Fundo de Compensação de Variações Salariais — FCVS.

Para aqueles contratos firmados com a cobertura do FCVS, criado para garantir o limite de prazo para amortização das dívidas provenientes do Sistema Financeiro de Habitação, o débito residual seria quitado pelo Fundo, adimplindo-se, assim, o contrato habitacional.
Todavia, para aqueles contratos firmados sem a cobertura do FCVS, na maioria dos casos, malgrado adimplidas todas as prestações contratuais, remanescem ao mutuário saldo devedor que, segundo entendimento da Caixa Econômica Federal, deve ser integralmente quitado, sob pena de execução do imóvel.

Entretanto, esse entendimento não nos parece o mais adequado, tendo em vista que o contrato firmado, mesmo sem a previsão de cobertura do FCVS, imputa ao consumidor todos os riscos do contrato, razão pela qual, aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor — CDC, a cláusula que destina ao mutuário a obrigação pela adimplência do resíduo contratual é nula de pleno direito.

A respeito, deve-se ter em conta que, quanto à aplicabilidade do CDC aos contratos de financiamento habitacional, o Superior Tribunal de Justiça já pacificou seu entendimento, segundo o qual “há relação de consumo entre o agente financeiro do Sistema Financeiro da Habitação que concede empréstimo para aquisição de casa própria e o mutuário, razão pela qual se aplica o Código de Defesa do Consumidor em casos como o presente” (AgRg no REsp 1140849/RS).

Assim, segundo o Código de Defesa do Consumidor, “são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” (artigo 51, IV). Tal cláusula visa, sobretudo, preservar a comutatividade dos contratos, conservando a equivalência entre as obrigações assumidas pelo consumidor e fornecedor.

Observa-se que nos contratos habitacionais firmados sob a égide do Plano de Equivalência Salarial sem FCVS, a Caixa Econômica Federal inclui cláusula imputando ao mutuário a obrigação total e irrestrita pela futura ocorrência de saldo devedor residual, em manifesta contrariedade à norma consumeirista.

É cediço que a existência ou não de saldo devedor residual irá depender da estabilidade da economia nacional, podendo gerar efeitos na variação salarial do contratante, bem como no saldo devedor do contrato, estando tais fenômenos fora do controle do mutuário.

Constata-se que todos os riscos inerentes a eventos futuros e incertos da economia são imputados ao mutuário, em total desacerto, repise-se, com as normas consumeiristas. Nesse mesmo sentido, é bastante elucidativo o seguinte julgado proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5º Região:
“Considerando que o mutuário tem sua capacidade de pagar definida pelo valor do salário que percebe, salário que não progride mensalmente segundo índices financeiros, não há como se exigir do mutuário capacidade de solver um montante que, seguindo as cadernetas de poupança, se expande em maior velocidade e proporção que os salários. A cláusula de resíduo não evita a exacerbação das prestações, mas apenas transfere a exacerbação — não autorizada pela regra da equivalência salarial — ao saldo devedor, sem que a mutuária tenha compreensão desse deslocamento.
A cláusula de resíduo, da forma como atualmente evolui o saldo devedor, transforma mesmo o contrato de mútuo/compra e venda em contrato de aluguel perpétuo, haja vista que, não tendo o mutuário como saldar o débito residual, perderá o imóvel que acreditava estar adquirindo a cada prestação adimplida. Considerando a finalidade do contrato de mútuo, que consiste na transferência da propriedade do bem imóvel o mutuário, restaria, o referido tipo contratual, descaracterizado diante da insolvabilidade crescente imputada ao prestamista, insolvência que implicará na não transferência da propriedade da coisa fungível” (AC 549380/PE).
Exposto tudo, a conclusão a que se chega é sobre a necessidade de declaração da nulidade, em face da onerosidade excessiva, da cláusula contratual de financiamento imobiliário pelo SFH sem cobertura pelo FCVS que exige, após o pagamento das prestações devidas no período normal de amortização, o pagamento do saldo devedor residual, como condicionante para obter o termo de quitação do financiamento e levantamento da hipoteca incidente sobre o imóvel.

[1] Os critérios para aferição da hipossuficiência econômica e o consequente deferimento da assistência jurídica integral e gratuita estão previstos na Resolução nº 13, de 25 de outubro 2006, do Conselho Superior da Defensoria Pública da União, que fixa parâmetros objetivos e procedimentos para a presunção e para a comprovação da necessidade.

Paloma Nascimento Cotrim - Defensora pública federal em Salvador (BA).
Fonte: Revista Consultor Jurídico

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