Documentos não saem em menos de 90 dias e tampouco a promessa de liberação antecipada do número da matrícula do empreendimento virou realidade.
Por Eduardo Zanneti
Com pouco mais de um ano de existência, o PMCMV (Programa Minha Casa, Minha Vida) ainda mantém disfunções na relação entre construtores e registradores. A principal queixa dos empresários é a demora na emissão de documentos críticos para a obtenção de recursos junto à Caixa Econômica Federal e comercialização de empreendimentos imobiliários. A relação com os clientes e a gestão das obras são as principais áreas afetadas pela lentidão desses procedimentos. Os problemas com prazos têm ocorrido em diferentes etapas do processo de registro dos empreendimentos – e, na verdade, somam-se à demora na obtenção de licenças junto a órgãos de fiscalização e à aprovação dos projetos pela Caixa Econômica Federal. “O tempo para fazer um projeto e para aprová-lo na CEF é o mesmo que levamos para concluir a obra”, compara Erlon Rotta Ribeiro, diretor comercial da construtora Andrade Ribeiro, sediada em Curitiba.
Incorporação
O PMCMV prevê que, após 15 dias de análise pelo cartório, o incorporador pode solicitar uma certidão contendo o número do registro que constará na matrícula do empreendimento. A certidão já o torna apto a lançar o produto – sem ter de aguardar o prazo total de 30 dias para registro da incorporação determinada pela legislação. Embora salutar, a medida, que poderia atribuir celeridade ao processo burocrático envolvido na comercialização de imóveis, acabou não tendo efeitos práticos. “O cumprimento dessa medida Brasil afora, nos 85 municípios em que atuamos, foi ignorado. São muito poucos os cartórios que a cumprem”, afirma Hudson Gonçalves Andrade, da construtora MRV. De acordo com construtores ouvidos pela reportagem, tornou-se praticamente impossível, com o aumento do número de obras observado desde o advento do PMCMV, conseguir esse tipo de registro antes de expirar o prazo. “Antes do programa habitacional, em alguns cartórios, até era possível conseguir documentos com antecedência. Agora é impossível”, lamenta Ribeiro. “A porcentagem de construtores que se queixam da lentidão para liberação do número do registro de matrícula chega muito perto de 100%”, avalia José Carlos Martins, vice-presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção.
O cartório que faz o registro no prazo de 30 dias, entretanto, não comete nenhuma irregularidade. “O prazo fatal para o registro da incorporação é de 30 dias. É preciso ressaltar que se trata de um processo complexo”, lembra João Pedro Lamana Paiva, registrador da comarca de Sapucaia do Sul, no Rio Grande do Sul. Para Luiz Gustavo Leão Ribeiro, registrador no Distrito Federal e vice-presidente de registro de imóveis da Anoreg-BR (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), a questão se deve também ao desconhecimento tanto de registradores quanto de construtores. “Talvez por uma falha do mercado como um todo, as pessoas ainda não tenham se apercebido da possibilidade de lançar mão desse mecanismo da certidão antecipada para fazer o lançamento, esperando que saia o registro de incorporação para isso.”
Registro de imóveis
Bem mais grave do que o problema envolvendo a incorporação é o registro de imóveis. Dele depende a liberação dos recursos que financiam o empreendimento pela Caixa Econômica Federal – logo, atrasos no processo podem comprometer gravemente o andamento das obras. “Para registrar imóveis há exigências maiores do que as costumeiras e os prazos também estão mais longos do que os de antes do PMCMV”, conta o diretor geral de uma construtora baseada em São Paulo que preferiu não se identificar. Segundo ele, essa etapa tem levado, em média, de 60 a 90 dias. A maneira como os prazos acabam se alongando muitas vezes é velada, como afirma José Carlos Martins, da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção). “Muitas vezes o registrador protela o processo, utilizando-se de recursos como pedir uma fotocópia de uma certidão qualquer para ganhar tempo”, conta. “Há cartórios que exigem certidões bem desnecessárias, amparando-se na lei. Nós temos que cumprir o rito”, afirma Andrade, da MRV.
Segundo ele, a empresa enfrenta um cenário parecido nos 14 Estados em que atua. “Trabalhamos com praticamente 200 cartórios, o que nos possibilita ver que a situação da lentidão na liberação do registro de imóveis é geral no Brasil.” A MRV, segundo Andrade, também tem levado entre 60 e 90 dias para registrar seus imóveis. “Isso não deveria passar de uma semana. Trata-se de um desvio na curva de modernidade da indústria da construção”, conclui.
Implicações
Todos sofrem com a demora na obtenção dos registros. “Quando vendemos as unidades de um empreendimento, os clientes ficam esperando o registro para dar entrada no financiamento. A incorporadora já criou uma obrigação com o comprador e ele não tem nada a ver com a morosidade no registro. Quer saber apenas por que ainda não tem o contrato registrado para liberar seu financiamento”, conta o diretor da construtora paulistana. Ele explica que, nesses casos, acaba se criando um desgaste na relação com o cliente. “Como o cartório faz mais exigências de documentos, temos que voltar ao cliente fazendo novas demandas”, acrescenta. As obrigações contratuais, além disso, exigem que o cronograma da obra seja cumprido. “Então, o que acontece é que preciso tocar a obra sem ter conseguido acesso ao financiamento, o que gera desequilíbrios no fluxo de caixa da empresa”, diz. Empresas que não têm uma estrutura financeira reforçada ou que não se prepararam para esse tipo de eventualidade acabam com problemas sérios, nesses casos.
Andrade, da MRV, aponta que a construtora é obrigada a alocar mais recursos e funcionários para dar conta dessas questões burocráticas. “Demoramos mais para cumprir o ciclo de negócios da empresa por causa dessa demora”, afirma. O atraso acarreta um prazo maior de entrega do imóvel ao adquirente e força a companhia a adotar novas táticas, como antecipar futuros ciclos, adquirindo terrenos antes do momento em que o fariam e, assim, não prejudicar sua estratégia de crescimento. Rotta Ribeiro, da paranaense Andrade Ribeiro, lançou dois empreendimentos pelo PMCMV em 2009, outros dois em 2010 e agora está desenvolvendo mais dois, para o ano que vem. “A demora na obtenção do registro provoca mudanças nos planos da empresa. Você tem a expectativa de começar a obra com um determinado prazo e acaba não conseguindo. Aí, tem que segurar a equipe que seria mobilizada para aquele empreendimento. Isso aconteceu em dois projetos nossos. Poderia ter empregado a mão de obra de maneira mais racional, teria sido possível otimizar mais – o que é bem importante em um empreendimento do PMCMV, uma vez que as margens já são estreitas”, relata. Por outro lado, a morosidade pode levar a demissões. “Se a empresa é pequena e contratou uma equipe para um projeto específico, mas o registro demora muito e a obra não sai, pode ser obrigada a dispensar os funcionários”, analisa Betinha Nascimento, vice-presidente da CBIC e diretora de marketing e comunicação do Sinduscon-PE (Sindicato da Indústria da Construção Civil de Pernambuco).
Demanda expandida
Muitos construtores veem na tabela de descontos e isenções para registro de imóveis estabelecida pelo PMCMV a causa da morosidade atual. “Não sabemos se a demora se dá em função dos descontos, aos quais os cartórios tiveram que se adaptar de maneira forçada, ou se o motivo é o aumento do número de processos que eles passaram a receber”, pondera o diretor da construtora paulistana. Mas para Leão Ribeiro, da Anoreg-BR, a motivação fundamental dos atrasos é o volume expandido de empreendimentos a registrar pelo PMCMV. “Há cidades inteiras em que o cartório passou, repentinamente, a ter uma quantidade de trabalho que nunca teve – muitas regiões não tinham um mercado imobiliário fortalecido, apenas autoconstrução”, explica.
“Então, o que há, efetivamente, é falta de condições. O registrador contava com uma estrutura para atender uma demanda pequena e, de repente, o mercado foi monstruosamente aumentado”, completa. A tabela de descontos do PMCMV, além disso, pode acabar acarretando desequilíbrios geográficos. “Cada cartório tem competência sobre uma região específica. Pode acontecer, por exemplo, de um cartório em uma região nobre não receber nenhum processo ligado ao PMCMV, enquanto outro, na periferia, com uma estrutura menor, ficar atolado, subitamente, de projetos do programa – sobre os quais há isenção”, exemplifica Leão Ribeiro. Nesse caso, a sobrecarga de trabalho não se traduz em um aumento proporcional dos ganhos, e o registrador acaba sem condições de investir em melhorias estruturais e contratação de funcionários, no curto prazo. No cartório de Lamana Paiva, no Rio Grande do Sul, por exemplo, o movimento de trabalho duplicou com o PMCMV. “É certo que fiz pelo menos 1.500 registros desde novembro do ano passado. São caixas e caixas de contratos”, conta. O registrador foi obrigado a ampliar a força de trabalho do cartório, apesar de muitos registros serem com desconto ou gratuitos. “No meu caso, entretanto, não posso me queixar, já que a demanda tem sido equilibrada por registros fora do âmbito do PMCMV”, analisa. “Mas pode acontecer, realmente, de um colega que não esteja bem preparado não conseguir entregar os registros no prazo, já que houve um boom muito grande no mercado e aumentou muito o interesse por parte das pessoas menos favorecidas, crescendo a procura nos cartórios”, diz.
A maior demanda teria ressaltado pequenos problemas, de acordo com Leão Ribeiro. “E os problemas podem acontecer dos dois lados, com o registrador ou com o construtor”, afirma. Segundo o registrador, é possível que alguns cartórios estejam exagerando na interpretação da lei e fazendo mais exigências do que o necessário. Entretanto, é possível também que os construtores falhem na apresentação dos documentos requeridos. “O cartório apenas cumpre a lei. Às vezes, a demora se deve à falta de certidões necessárias, que impossibilita o registrador de concluir o processo. Como foi o cartório que apontou a divergência, o problema parece ter surgido ali, quando na verdade não foi”, explica. As empresas podem falhar tanto na entrega de seus próprios documentos, quanto na cobrança dos documentos dos compradores. “Por ser um público de baixa renda, muitas vezes há problemas com documentos pessoais e o processo fica mais complicado”, explica Leão Ribeiro.
Soluções
A indústria da construção tem procurado o governo para que alguma solução seja alcançada. “A CBIC mandou sugestões ao governo. Nosso esforço é para que se mantenha a qualidade do serviço e para que se tome cuidado com a agilidade de todos os processos”, afirma Martins. “Temos pleiteado a entrada do governo nessas discussões, para que os prazos, em todas as etapas, sejam cumpridos”, completa Betinha Nascimento, também da CBIC. Para Hudson Gonçalves Andrade, da MRV, é uma questão de tempo para que progressos sejam feitos. “Acreditamos que, gradualmente, os cartórios irão se modernizar, assim como nosso próprio setor tem buscado adequação à nova realidade.”Os incentivos previstos pelo PMCMV às construtoras devem ser expandidos para os registradores de alguma maneira compensatória, aponta Leão Ribeiro. “O Governo Federal subsidia as construtoras em impostos e materiais de construção, além do comprador, via CEF. O cartório foi o único que deixou de receber incentivos”, compara. O setor aceitou as medidas, quando do lançamento do programa, por se tratar, a princípio, de algo pontual. “Entretanto, com o sucesso e o amadurecimento do PMCMV, após mais de um ano, já podemos refletir sobre alguns pontos e pensar em soluções”, diz.
Segundo ele, os registradores vêm se reunindo com representantes do governo para fazer propostas, como incluir no financiamento imobiliário as custas com registros. “Isso já é feito com as taxas da CEF para elaboração de contrato, para o ITBI [Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis], e não inviabiliza os negócios. Então, os emolumentos também não deveriam inviabilizar”, pondera. Outra sugestão do setor é fazer um registro único das cláusulas-padrão do contrato, deixando para registrar individualmente, em cada contrato unitário, apenas as cláusulas referentes a questões particulares, como a qualificação do comprador, do vendedor, a identificação do imóvel, o preço e o financiamento. “Um contrato chega a ter 20, 30 páginas, sendo que apenas duas são específicas daquele imóvel. Com esse tipo de registro, ganharíamos em agilidade”, defende Leão Ribeiro.
Os investimentos em informatização dos cartórios, previstos pelo PMCMV, completariam o quadro. “Esse tipo de estrutura acelera muito o sistema de registros. Mas não se trata de algo barato, é preciso de recursos”, afirma Lamana Paiva. Em seu cartório, que é informatizado, uma das possibilidades é a matrícula online. “O cliente ganha um login e uma senha e pode acessar as matrículas a qualquer hora. Muitas incorporadoras não vão ao cartório, fazem pedidos pela internet”, conta. A princípio, o investimento em materiais de computação não era dedutível do imposto de renda, o que dificultava a adoção por parte de alguns registradores. Agora, os investimentos podem ser deduzidos. “Além disso, temos procurado o governo e a CEF em busca de convênios, que facilitem o acesso dos pequenos registradores a equipamentos de informática”, conta Leão Ribeiro.
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