A enfiteuse, instituto jurídico que versa sobre uso e gozo de bens imóveis, apresenta controvérsia em sua origem, se grega ou romana. Serpa Lopes afirma que no século V a. C. “foram descobertos vestígios da existência já de normas legais, em tudo análogas as da enfiteuse, tal qual ela nos aparece em sua fisionomia atual, como seja, o caráter de perpetuidade e a obrigação de efetuar melhoramentos”.[1] Já Maria Helena Diniz afirma que a enfiteuse tem como nascedouro a era helênica, é “oriunda da Grécia, por volta do século V a. C., de onde se trasladou para o direito romano”.[2] A fusão entre o jus emphyteuticon grego e o ager vectigalis romano se deu na era justiniana, com a finalidade de prender o lavrador à terra que este cultivava, mas que não lhe pertencia e o proprietário, por ser pessoa indefinida (colégio, cidade ou corporação e só mais tarde pessoas particulares), não explorava ou cultivava a terra.[3] De qualquer modo, afirma Lopes, “foi o Direito romano a fonte de onde emanaram os princípios básicos sobre os quais o instituto é modernamente apresentado”.[4] Entretanto, “nos aforamentos helênicos não havia pactos sôbre [sic] o direito de opção e sôbre [sic] o laudêmio, nem se previa nêles [sic] o comisso por falta de pagamento das pensões”.[5]
Foi na era justiniana que o instituto adquiriu caráter perpétuo, só
então sendo classificado como direito real, vez que os arrendatários não
mais eram obrigados a deixar a terra, desde que pagassem a renda
convencionada.[6]
Já nesta época a enfiteuse era considerada o “direito de cultivar o
campo alheio, mediante uma pensão anual e de aproveitá-lo tão amplamente
como o faz o proprietário, sem todavia destruir-lhe a substância”.[7]
Na Idade Média, há registros documentais que constatam que a
enfiteuse conservou suas características a este tempo. Ainda, foi
apurada a existência de dois outros institutos semelhantes à enfiteuse: o
livello e o precário.[8] A enfiteuse e o livello
eram institutos bastante semelhantes, que exerciam influência
recíproca, até que em certo ponto da História, se fundiram em um só
instituto. Antes da fusão, a enfiteuse era perpétua, enquanto o livello tinha duração máxima de vinte e nove anos. A enfiteuse possuía natureza substantiva, enquanto o livello e também o precário eram contratos formais. O enfiteuta pagava ao senhorio foro anual, enquanto no contrato de livello era devido pagamento pelas vantagens aferidas na exploração da terra, podendo o valor ser negociado pelas partes e reduzido.
Na legislação justiniana, os direitos e obrigações do senhorio e do
enfiteuta encontram um quase equilíbrio, baseado isto no fato de que o
proprietário tinha grande interesse econômico em suas terras, ainda que
não as explorasse diretamente. Neste sentido, leciona Serpa Lopes:
“O dominus, não colhendo de suas terras as necessárias
compensações, achou a solução desejada socorrendo-se do foro [sic], como
uma fórmula compensatória. A condição de melhoramento das terras só
interessava ao enfiteuta, sob a necessidade de dela extrair o máximo de
utilidade econômica.”[9]
Na Idade Média, a organização feudal do Estado não tolerava “a existência de terra sem senhor e seus vassalos”,[10] fato que provocou grande mudança do instituto, como bem leciona Edgar Carlos de Amorim:
“Desaparece o caráter unitário da propriedade romana, desdobrando
esta em domínios superpostos, superiores e inferiores. O domínio passou a
ser direto ou o domínio do senhorio, e útil o domínio do enfiteuta, que
podia de igual modo estabelecer subenfiteuses, desfrutando, assim, a
dupla posição de foreiro ante o senhorio e de sub-senhorio ante o
subenfiteuta.”[11]
Nesta fase Medieval da História, a enfiteuse se dividia em laica e
eclesiástica. Apesar da divisão, não havia caracteres marcantes de
distinção, mas “a enfiteuse eclesiástica se destacava das laicas por
dispensar um maior favor à população e à própria terra”.[12]
A Igreja, cujo patrimônio era abastado e muitos lotes de terra foram
acumulados, encontrava na enfiteuse “um seguro e estável meio de
aplicação de seu patrimônio. Além disso, a propriedade eclesiástica era
considerada complementar da propriedade pública. Tinha facilidades
fiscais e gozava de um juízo estável, cheio de garantias”.[13]
Os povos germânicos acolheram a divisão do domínio direto e do
domínio útil já enraizado no instituto desde os tempos feudais. “A
teoria dos dois domínios originou-se, no período feudal, da existência
de uma actio utilis concedida ao enfiteuta”.[14]
Prevalece, desde então, a concepção da “perda do domínio por parte do
concedente da enfiteuse para, em seu lugar, surgir um sub-rogado numa
renda perpétua”,[15] cujos únicos direitos reconhecidos eram o direito ao foro, ao laudêmio e à preferência.
A Revolução Francesa trouxe um movimento de reação e desconfiança que
os ideias da época alimentavam contra tudo que fosse resquício do
passado.[16]
Entretanto, afirmou-se na época que a enfiteuse estava desnuda de
caracteres feudais, argumento que não garantiu a previsão do instituto
no Código Napoleônico. Só em 1824 a lei belga regulou a enfiteuse,
conferindo-lhe, entrementes, duração entre setenta e sete e noventa e
nove anos.
Antes mesmo do reinado de D. João I, ou seja, antes da influência
romana no direito português, já havia registros de cessão de terra que
os Mosteiros e ricos particulares do reino cediam a povoadores de terras
para cultivo, contrato no qual havia reserva de cota de frutos e parte
dos preços das vendas ao cedente.[17] Nesta época, havia diferença entre o emprazamento e o aforamento, tal qual apregoa Serpa Lopes:
“No emprazamento, o dono do terreno dava uma parte dêle [sic] a quem
se obrigasse a cultivá-lo, recebendo certo prêmio ou renda anual
mediante a transferência do domínio direto desta porção ao cultivador,
que assim a tornava inteiramente sua. O fôro [sic] representava
primeiramente liberdade e depois uma remuneração ou prêmio pela
liberdade e depois remuneração ou prêmio pela liberdade de cultivar as
terras. Iniciou-se com o prazo de um ano, para depois estender-se [sic]
pela vida do colono, e, finalmente, por três vidas. No Direito anterior,
segundo as Ordenações, a enfiteuse decompunha a propriedade plena em
duas partes: a primeira, denominada de domínio direto, consistente no
cânon, laudêmio, consolidação e outras prerrogativas; a segunda,
pertinente ao enfiteuta e que consistia principalmente na faculdade de
cultivar a propriedade e dela tirar tôda [sic] a utilidade. No primeiro
caso, tinha-se o domínio direto; no segundo, o domínio útil. Assim,
diferenciava-se da locação, porque nesta não passava para o colono parte
alguma da propriedade senão apenas o uso. Quanto à sua duração, ela
podia ser perpétua e fateusim [grifo do autor], quando o contrato não fixava tempo; ou de vidas
[grifo do autor], quando domínio útil era concedido a certo número de
pessoas ou vidas, estas ordinàriamente [sic] a três, findas as quais
tudo era devolvido ao senhorio.”[18]
Na época em que o Brasil foi descoberto por Portugal, “o direito de
conquista ou do descobridor reconhecia ser o solo domínio do vencedor ou
descobridor”.[19]
Por conta de tal legislação, as terras brasileiras passaram a ser
consideradas propriedade da Coroa de Portugal. Entretanto, através das
sesmarias, as Coroa Portuguesa doou terras brasileiras a particulares,
“com a finalidade exclusiva de cultivarem-nas e nelas edificarem as suas
moradias. Caso não atingissem a finalidade prevista, voltavam ao
domínio da Coroa, quando eram consideradas devolutas”.[20]
Tanto as terras objeto de doação das sesmarias quanto as terras devolutas, foram objeto de contrato de enfiteuse.[21]
A história do Direito brasileiro está ligada à história do Direito
português, tendo em vista que, pode-se dizer, a base da legislação
pátria é constituída pelas Ordenações Filipinas. Grande marco do Direito
Civil brasileiro foi o Código Civil de 1916, que constitui o alicerce
genuinamente brasileiro das normas civilistas no país, muito embora haja
influência estrangeira em suas letras.
No entanto, afirma Caio Mário da
Silva Pereira, quando da elaboração do Código Civil de 1916, a
enfiteuse “recebeu tratamento que eliminou todas as interferências
estranhas, escoimando a instituição do que não fosse estritamente
técnico”.[22]
Foi, então, a enfiteuse particular inteiramente retratada em tal
diploma normativo. Pode ser verificado o reflexo do Direito Romano, no
que tange à dualidade do domínio, na perpetuidade do contrato, e no
pagamento de foro e laudêmio. De acordo com os ensinamentos de Caio
Mário, a enfiteuse “no Brasil vigorou sem as inconveniências e os abusos
que a deformaram em Portugal, produzindo no século passado bons frutos e
prestando bons serviços”.[23]
Em 1950, cogitou-se a total supressão do instituto em análise, não
sendo o projeto de lei recepcionado devidamente pela população, por
estudiosos do direito ou mesmo pelo próprio Congresso Nacional.[24]
Novamente, já em 1965, a enfiteuse foi objeto de discussão no Projeto
de Código Civil apresentado no referido ano. O Projeto, acerca do
laudêmio, vedava a cobrança sobre o valor das construções e plantações,
não tendo como objetivo a supressão total da cobrança. Após manifestação
liderada pela Sociedade de Defesa da Família, o Projeto foi retirado do
Congresso.[25] Em 1969, após Reforma Constitucional, foi elaborado pelo Ministério da Justiça Projeto que visava a extinção da enfiteuse.[26]
Finalmente, o Código Civil vigente passou a vedar expressamente a
constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, respeitando as já
constituídas, estas devendo ser sempre analisadas sob a égide do Código
Civil de 1916.
Referências bibliográficas
AMORIM, Edgar Carlos de. A enfiteuse à luz do novo código civil. 2 ed. atual. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito
das coisas. 19 ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei
n. 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo:
Saraiva, 2004. 4 v.
LOPES, M. M. de Serpa. A enfiteuse: sua natureza jurídica e seu futuro. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S. A., 1956.
OLIVEIRA, J. E. Abreu de. Aforamento e cessão dos terrenos de marinha. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1966.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20 ed. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.
Notas:
[1] LOPES, M. M. de Serpa. A enfiteuse: sua natureza jurídica e seu futuro. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S. A., 1956. p. 8.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito
das coisas. 19 ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei
n. 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo:
Saraiva, 2004. 4 v. p. 348.
[3] Ibidem.
[4] LOPES, M. M. de Serpa. Loc. cit.
[5] FERREIRA, Vieira apud OLIVEIRA, J. E. Abreu de. Aforamento e cessão dos terrenos de marinha. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1966. p. 28.
[6] LOPES, M. M. de Serpa. Loc. cit.
[7] LAFAYETTE apud ibidem. p. 349.
[8] LOPES, M. M. de Serpa. Op. cit. p. 11.
[9] Ibidem. pp. 13 – 14.
[10] AMORIM, Edgar Carlos de. A enfiteuse à luz do novo código civil. 2 ed. atual. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2002. p. 21.
[11] Ibidem. p. 22.
[12] LOPES, M. M. de Serpa. Op. cit. p. 14.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem. p. 15.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem. p. 16.
[17] Ibidem. pp. 16 – 17.
[18] Ibidem. p. 17.
[19] AMORIM, Edgar Carlos de. Op. cit. p. 22.
[20] Ibidem.
[21] Ibidem.
[22] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20 ed. de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 217.
[23] Ibidem.
[24] Ibidem. pp. 217 – 218.
[25] Ibidem. p. 218.
[26] Ibidem.
Autora: Bruna Fernandes Coêlho
Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2007);
Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco; Especialista em
Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (RJ);
pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Gama
Filho (RJ); pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Militar
pela Universidade Cândido Mendes (RJ); graduanda em Medicina Veterinária
pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7399915688574739
Fonte: Revista Àmbito Jurídico
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