O ingresso do contrato de locação no
serviço registral imobiliário, mais especificamente na matrícula do
imóvel locado, tem se mostrado um assunto espinhoso para proprietários,
inquilinos, corretores e advogados que atuam no ramo imobiliário. Para
que dúvidas e perplexidades sobre o tema sejam sanadas, é preciso uma
pequena incursão sobre a sistemática registral brasileira e sua
finalidade.
Em apertada síntese, pode-se dizer que o registro imobiliário serve
para constituir direitos sobre imóveis, principalmente os chamados
direitos reais (propriedade, superfície, servidão, usufruto, direito de
promitente comprador, hipoteca, propriedade fiduciária, etc.),
dando-lhes publicidade para que possam gerar todos os efeitos jurídicos
que lhes são inerentes, mormente aqueles efeitos que atingem terceiros,
isto é, que extrapolam a órbita dos direitos e deveres do transmitente e
do adquirente do direito real.
A regra geral do art. 1.227 do Código Civil diz que os direitos reais
sobre bens imóveis só nascem com o registro da aquisição no cartório de
registro de imóveis competente. Essa regra é bastante conhecida no meio
jurídico-imobiliário pelo seguinte ditado: “Quem não registra não é
dono”. E esse ditado pode ser corretamente ampliado para “quem não
registra não tem direito real sobre imóvel”, pois não só a propriedade
como todos os outros direitos reais só se constituem com o registro.
Entretanto, existem ainda direitos que não são reais, mas mesmo assim
a lei determina o seu registro ou averbação na matrícula do imóvel. Na
verdade, tudo que de alguma forma tenha relevância jurídica para o
imóvel e todos que com ele se relacionem, merece ingresso no registro
imobiliário.
Nesse contexto, o legislador acertadamente identificou no contrato de
locação dois direitos que merecem ser levados a registro. O primeiro é o
direito do locatário à vigência da locação em caso de alienação do
imóvel a terceiros; o segundo é a preferência do locatário à aquisição
do imóvel, caso o proprietário deseje aliená-lo. Note-se que são dois
direitos distintos; o primeiro está previsto no art. 8º da Lei de
Locações de Imóveis Urbanos (Lei nº 8.245/91), e o seu registro está
determinado no art. 167, inciso I, item 3 da Lei de Registros Públicos
(Lei nº 6.015/73); o segundo encontra-se disciplinado nos arts. 27 a 34
da Lei nº 8.245/91, e a sua averbação está positivada no art. 167, inciso II, item 16 da Lei nº 6.015/73.
Mas por que se praticar dois atos registrais se o contrato de locação
é o mesmo? É que o sistema registral imobiliário brasileiro é de
registro de direitos, e não de registro de títulos. Em outras palavras, o
que se registra ou averba na matrícula do imóvel não é o contrato ou
documento celebrado entre as partes (título), mas o direito ou direitos
nele contidos. É por isso que ao ser levada ao Registro de Imóveis uma
escritura de compra e venda com hipoteca, esta origina dois atos
registrais na matrícula; um registro relativo à compra e venda
(transmissão do direito de propriedade ao comprador); e outro referente à
hipoteca (constituição do direito de hipoteca em favor do credor). Da
mesma forma, um contrato de locação tem a possibilidade de originar dois
atos distintos na matrícula do imóvel, relativos a dois direitos que
não são reais, mas que produzem efeitos jurídicos diretamente sobre o
imóvel e seu proprietário.
A cláusula do contrato de locação que impõe ao adquirente do imóvel
locado o dever de honrar a locação até seu termo final é uma disposição
que extrapola os limites dos direitos e obrigações das partes
contratantes (locador e locatário), vinculando um terceiro estranho a
essa relação contratual. É justamente por isso que a lei exige que o
direito de vigência seja publicizado na matrícula do imóvel, a fim de
que o pretenso comprador saiba, de antemão, que terá de respeitar a
locação até o fim do prazo contratual.
Porém, conforme dispõe o art. 8º da Lei nº 8.245/91 – e aqui está o
âmago da questão –, são necessários dois requisitos para que o direito
de vigência seja constituído em favor do locatário. O primeiro é que no
contrato haja cláusula expressa constituindo o direito de vigência (este
direito não se presume, tem que ser instituído pela vontade das
partes); e o segundo é que este direito esteja registrado[1]
no cartório de registro de imóveis competente, na matrícula do imóvel
locado. Sem esses dois requisitos o locatário não terá reconhecido o
direito de permanecer no imóvel, caso este seja alienado. Por isso, o
corretor, gestor imobiliário e/ou consultor jurídico deve orientar seu
cliente (principalmente se este for o locatário) sobre as vantagens de
se fazer o registro do direito de vigência, e, a contrário senso, sobre
os riscos do não registro.
A título de exemplo, imaginemos uma locação comercial, cujo locatário
investe em benfeitorias e publicidade, fixa seu ponto no imóvel,
esperando ali permanecer por anos a fio, entretanto se esquece de
incluir no contrato a cláusula de vigência em caso de alienação, ou
pior, apesar de ter feito constar tal cláusula no contrato, deixou de
registrá-lo. Vem o locador e vende o imóvel a um terceiro que não
pretende manter a locação, e esse comprador denuncia a locação dentro do
prazo de noventa dias contados da data do registro da aquisição. Nesse
caso, não restará alternativa ao locatário, senão desocupar o imóvel no
prazo de noventa dias a partir da denúncia. É o que diz a lei (art. 8º
da Lei nº 8.245/91), corroborada por farta jurisprudência dos tribunais
pátrios.
O direito de preferência à aquisição do imóvel (também chamado de
preempção), diferentemente do de vigência, é conferido ao locatário
independentemente de cláusula expressa no contrato, sendo inclusive
inafastável por disposição contratual, porém é imprescindível a sua
averbação na matrícula do imóvel para que possa ter eficácia.
Esse direito confere ao inquilino a preferência para adquirir o
imóvel em igualdade de condições com terceiros, devendo o proprietário
dar-lhe conhecimento de sua intenção de venda e condições do negócio, a
fim de que ele possa exercer ou não seu direito.
Caso a preferência seja desrespeitada, o inquilino poderá reclamar
perdas e danos ou haver para si o imóvel, se o requerer no prazo de seis
meses, a contar do registro da venda na serventia imobiliária. Note-se
aqui a repercussão na esfera jurídica de terceiro alheio ao contrato de
locação, já que o comprador poderá perder o imóvel em favor do
locatário, restando àquele apenas o direito de receber de volta o que
pagou pelo imóvel. E isto é motivo mais que suficiente para justificar a
determinação legal de averbação do direito de preferência na matrícula
(art. 167, II, 16, da Lei nº 6.015/73). Vale lembrar, ainda, que se a
escritura de compra e venda for lavrada por valor abaixo do realmente
acertado pelas partes, configurando sonegação fiscal dos contratantes, o
locatário só precisará depositar o valor indicado na escritura para
haver para si o imóvel.
Enfim, o registro do direito de vigência da locação em caso de
alienação, quando estipulado pelas partes, e a averbação do direito de
preferência são medidas obrigatórias, nos termos do art. 169 da Lei de
Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), e imprescindíveis para dar
efetividade a tais direitos e, assim, conferir segurança não só a seus
titulares como a terceiros que porventura tenham interesse no imóvel.
Autor: João Pedro R. S. de Arruda Camara
João Pedro R. S. de Arruda Camara
Registrador de Imóveis substituto em Brasília/DF
Especialista em Direito Registral Imobiliário
Coordenador da ENNORJoão Pedro R. S. de Arruda Camara
Registrador de Imóveis substituto em Brasília/DF
Especialista em Direito Registral Imobiliário
Coordenador da ENNOR
[1]
A Lei nº 8.245/91 fala em averbação do direito de vigência, contudo o
art. 167, I, 3, da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Púbicos), c/c art.
576 do Código Civil de 2002, deixam claro que o ato a ser praticado é
de registro.
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