Os cartórios, quase sempre incompreendidos e muitas
vezes sujeitos a paradigmas negativos, são uma necessidade social.
Previnem litígios e servem de memória
autorizada dos fatos sócio-jurídicos mais importantes. Desempenham
funções essenciais aos objetivos fundamentais do Estado.
É por meio da publicidade oponível a todos os
terceiros, que os registros públicos podem afirmar a boa-fé dos que
praticam atos jurídicos, amparados na presunção de certeza irradiada a
partir de tais registros. Publicidade é elemento essencial dos registros
públicos, diante de certos atos ou fatos da vida civil jurídica.
O outro lado da mesma moeda, implicando a inação
do credor, gera a inoponibilidade de sua pretensão, dado que a presunção
de boa-fé será deslocada em prol do terceiro, forrando sua aquisição,
suportando assim o exeqüente o ônus de sua negligência traduzido no
dever de provar a má-fé do terceiro adquirente do imóvel. Neste sentido,
a regra é clara: Os fatos sujeitos a registro e não registrados são
inoponíveis a terceiros, atribuindo-lhes lei a presunção de boa-fé,
princípio curial do direito.
Além disso, proporcionar segurança às relações
jurídicas é um dos objetivos dos registros públicos, a partir do
aprimoramento de seus sistemas de controle, especialmente com a
obrigatoriedade das remissões recíprocas, criando uma rede fina,
atualizada e completa de dados e informações.
De forma que existe uma burocracia saneadora do
mercado imobiliário e ela atende pelos nomes de Registro de Imóveis e
Tabelionatos de Notas.
Neste contexto, tem-se verificado com freqüência
cada vez maior, notadamente em época de vigoroso incremento das
negociações imobiliárias, nova modalidade de negociação jurídica
denominada de promessa de permuta de imóveis.
No exemplo citado, o proprietário do terreno
vende parte ideal de seu imóvel para a construtora e reserva-se de uma
fração ideal, surgindo assim, um condomínio civil. Sob o escopo de
pagamento do terreno, a construtora se compromete em construir algumas
unidades autônomas, convencionadas previamente e consignadas na
escritura pública que materializa tal negócio jurídico. Efetuada a
construção, considera-se cumprida a obrigação assumida pela construtora e
o vendedor (proprietário do terreno), passa a ser titular das unidades
autônomas construídas por acessão, sem nenhuma formalidade, já que a
legislação civil admite esta modalidade de aquisição imobiliária.
Trata-se de tema muito importante para o avanço
do mercado imobiliário, que vem procurando, nos últimos anos, em
especial pela busca do uso racional do espaço, cada vez mais exíguo nos
grandes centros urbanos, uma nova modalidade de negócio jurídico, qual
seja a alienação do imóvel pelo proprietário a terceiro, para receber
deste, em contrapartida, área construída no próprio local, e não
dinheiro. Encontrou-se a solução, com reflexo nas áreas notarial e de
registros, no instrumento adequado para formalizar o negócio jurídico –
promessa de permuta -, definindo-se qual o contrato apropriado para a
espécie, e que melhor reflita a realidade da relação pactuada pelas
partes.
Ocorre que alguns registradores (ainda) entendem
que o fato dos negociantes identificarem as unidades autônomas no
momento da negociação do terreno, configura a necessidade de prévio
registro da incorporação imobiliária.
Não obstante, em que pese respeitáveis
entendimentos em contrário, entendo a recusa de registro deste tipo de
negócio jurídico como considerável entrave econômico ao pleno
desenvolvimento do mercado imobiliário e ofensa a um dos maiores pilares
do desenvolvimento econômico do país, o Princípio da Propriedade
Privada, princípio este reconhecido como verdadeiro direito que, além de
fundamental, é tido por natural.
A questão reside na circunstância de a Lei dos
Registros Públicos (6.015) ter sido elaborada em 1973, época na qual não
era comum – para dizer o menos -, no Brasil, a sistemática da permuta
com torna de lote de terreno por imóvel a ser erguido nele. Ao passo que
a incorporação imobiliária é regida por outra Lei - 4.591 – de 1964.
Inicialmente, em relação ao contrato - seja de
promessa, seja definitivo -, de permuta, nada há no sistema jurídico
nacional que impeça sua confecção. Entre nós, vigora o princípio da
liberdade de contratar (art. 421 CC 2002), cláusula geral aberta cujo
norte é a utilidade, a dimensão social do contrato, vale dizer, sua
função social.
Atendendo o contrato a uma finalidade útil e
necessária à realização dos fins sociais, implementa-se a possibilidade
jurídica de sua formação. Em complemento, a mesma lei civil (art. 1.228
CC 2002) assegura ao proprietário ‘a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa (caput), ‘em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais’ (§ 1º), sendo, no entanto, ‘defesos
os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou
utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem’ (§ 2º).
Notadamente em relação à promessa de permuta,
tem-se por necessário enquadrá-la na categoria de contratos atípicos,
consoante visualiza o art. 425 também do Código Civil de 2002, para cuja
formação exige-se apenas obediência às normas gerais do direito,
aplicáveis aos contratos em geral para sua existência, validade e
eficácia.
Além disso, a compra e venda e a troca, por se
cuidarem de institutos semelhantes, submetem-se ao mesmo regime legal
(art. 553 CC 02 = art.1.164 CC 16), com exceção de algumas regras
específicas e que não autorizam a regulamentação da permuta em capítulo
próprio (Orlando Gomes, ‘Contratos’, p. 325). Dentre essas
regras específicas não se incluem qualquer vedação a que se formule
promessa de permuta, aplicando-se, dessa forma, a regra geral dos
contratos preliminares e, em particular, das promessas de venda e
compra.
Aliás, nesse sentido já decidiu o STF confirmando
premissa constante de acórdão de Tribunal do Rio de Janeiro no sentido
de que ‘os mesmos princípios que regem a execução das promessas de
compra e venda de imóveis aplicam-se ao negócio jurídico caracterizado
como promessa de permuta’. Apenas ressalvou que ‘a inscrição no
Registro de Imóveis é condição essencial à adjudicação compulsória de
imóvel prometido à permuta por instrumento particular’ (RE n. 89.501-9,
citado na ‘Revista de Direito Imobiliário’, vol. 6, p.134-135), em face da aplicabilidade do Decreto-lei 58, 1937 e não do artigo 639 do Código de Processo Civil.
Vale dizer, determinando a lei o acesso da
promessa de venda e compra ao Registro de Imóveis, automaticamente
permitiu também o da promessa de permuta. Com segurança, pode-se afirmar
que inexiste motivo para, distinguindo-se um contrato do outro, deixar a
promessa de permuta fora do registro imobiliário. Neste norte, conclui
José Osório de Azevedo Júnior, não encontrar obstáculo ao registro da
promessa de permuta (Compromisso de Compra e Venda, São Paulo: Saraiva, 2ª. ed., 1983, pág. 251).
De fato, o Código Civil de 2002 prevê que ‘a compra e venda pode ter objeto coisa atual ou futura’ (art. 483), acrescentando que ‘aplica-se à troca as disposições referentes à compra e venda’ (art. 533 = art. 1.164 CC 16).
Infere-se que a permuta de imóvel por unidade
autônoma futura não fere o conceito segundo o qual por permuta
entende-se a troca de coisa por coisa, ou, mais propriamente, de bem por
bem. Como diz Caio Mário da Silva Pereira, ‘é fora de dúvida a
viabilidade do contrato incidente em ‘coisa futura’, o qual fica
perfeitamente definido como condicional – ‘emptio rei speratae’, que se
resolve se a coisa não vier a ter existência, mas que se reputa perfeito
desde a data da celebração, como implemento da ‘conditio’ (...) Lembra ainda o festejado jurista que ‘ademais, permuta imobiliária não precisa ser de imóvel por imóvel – pode ser de imóvel por direito, por ação’ (...). Prosseguindo, acentua que ‘em virtude de sua extensão econômica é da maior amplitude.
Tematicamente,
todas as coisas ‘in commercio’, isto é, que não sofrem
indisponibilidade natural, legal ou voluntária, podem ser permutadas:
imóvel por imóvel, imóvel por móvel, bem corpóreo por bem corpóreo, bem
corpóreo por bem incorpóreo’ (grifos do original).
A propósito, o Código de Comércio de 1850, não por acaso, já previa que tudo o que pode ser vendido pode ser trocado (art. 221).
Lado outro, no plano do registro imobiliário, prevê o art. 167 da Lei dos Registros Públicos que ‘ No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I – o registro; [...] 30) da permuta’.
É certo que a lei instrumental não refere à
promessa de permuta, todavia a lacuna legislativa não constitui, por si
só, empecilho jurídico à recepção de tal título no fólio real.
Ora, considerando-se que ‘aplica-se à troca as disposições referentes à compra e venda’
(art. 533 CC 02) e a existência de expressa previsão do ingresso da
promessa de compra e venda (art. 167, I, 18 LRP), mostra-se desarrazoado
entendimento inverso.
Além disso, a redação do referido art. 167 da LRP
não é taxativa, pois não esgota todas as hipóteses possíveis. Várias
outras situações, quando praticadas, são admitidas a registro em
sentindo amplo (abarcando a matrícula, o registro propriamente dito ou
inscrição, e a averbação), inclusive encontradas dentro da própria Lei
6.015 (vide, por exemplo, as situações elencadas no seu art. 246 e
parágrafos). Fora dela, sem esforço podem ser mencionadas as hipóteses
de renúncia (art. 1.275,II e seu § único CC 2002 = art. 589, § único CC
16), a perpetuidade de florestas (art. 21 Lei 9.985, 2000), novas
averbações de cancelamento (art. 23 do Estatuto da Cidade – Lei 10.257,
2001), a averbação da reserva legal (art. 16, §2º do Código Florestal –
Lei 4.771, de 1965, com a redação da Lei 7.803, de 1989), etc.
Em verdade, a permuta ou troca é ato em que
predomina o interesse obrigacional. Todavia, a circunstância de não se
tratar de direito real também não é óbice ao registro da promessa de
permuta, pois a lei textualmente admite o ingresso de atos e títulos
considerados atípicos, na medida em que representam direitos de natureza
diversa, que não a real - a que a lei confere atributo de ‘realidade’ em circunstâncias especiais. Neste sentido, no elenco do art. 167 encontram-se atos de natureza tipicamente processual (arresto, seqüestro, penhora, citações, etc.); outros em que predominam o interesse obrigacional (alienação de coisa locada, dação em pagamento, doação entre vivos, etc.); registros de atos relacionados a realização do casamento (bens de família, convenções antenupciais, dote), etc.
O que é evidente, no sentido do ingresso do
título, é que atenda às regras de forma estabelecidas e que digam
respeito a imóvel matriculado (art. 222 LRP),sempre que praticado o ato
ou negócio jurídico previsto na legislação civil, que por sua
repercussão e interesse deva ser dado a conhecimento de terceiros
interessados (art. 167, c.c. art. 169 LRP).
Ainda assim, inexiste óbice a que se admita
ingresso do título como espelhando promessa de permuta, afastando praxe
de se rotular o negócio como ‘compra e venda com promessa de dação
em pagamento ou compra e venda com preço convertido em obrigação de
fazer, ou como dupla compra e venda com compensação de preço’ (Marcelo Terra, Temas Jurídicos nos Negócios Imobiliários, pág. 178).
Por sua vez, a regra do artigo 39 da Lei n.4.591,
de 1964 cuida apenas de entrega de área construída no próprio terreno
negociado, não se referindo, à promessa de troca de terreno em que o
permutante recebe algumas unidades autônomas futuras a se construírem em
terreno distinto e de propriedade do co-permutante.
Forçoso concluir, nestes termos, pela
inexistência de qualquer óbice, seja à confecção do contrato de promessa
de permuta de imóveis, seja a que ingresse no álbum imobiliário,
providência que visa, a constituir eficácia do negócio jurídico,
irradiar publicidade a terceiros e, sobretudo, a resguardar a segurança
jurídica.
Autor: Marcelo Guimarães Rodrigues
Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Fonte: SERJUS-ANOREG/MG