quinta-feira, 26 de maio de 2016

O PROCEDIMENTO DO ART. 216-A DA LEI 6.015/73 NÃO CONFIGURA UMA USUCAPIÃO


A prescrição aquisitiva ou usucapião como é cediço é uma instituição jurídica que possui antecedentes remotos e se originou no Direito Romano, na Lei das XII Tábuas, segundo Gayo: “[…] A usucapião das coisas móveis ocorre em um ano, dos imóveis e casas por dois anos, assim dispõe a Lei das XII Tábuas. Isto parece haver sido admitido para que o domínio das coisas não permanecesse demasiado tempo na incerteza. Como bastaria ao dono para recuperar sua coisa, um ou dois anos, este tempo foi cedido ao possuir para usucapir”.[1]

O fundamento para a usucapião continua o mesmo, ou seja, a necessidade de estabilização das relações jurídicas envolvendo imóveis. A função social da propriedade, no entanto, e – em especial – das cidades, atribuiu nova roupagem ao instituto que passou a ser utilizado como importante instrumento de regularização fundiária. 

O conteúdo essencial da figura da usucapião é a posse. A usucapião é nada mais do que uma consequência necessária da proteção dispensada para a posse qualificada[2]. A usucapião é comumente chamada de prescrição aquisitiva e nada mais é que a consequência de uma posse prolongada, a qual atendeu aos requisitos constantes na legislação. Diz-se aquisitiva em comparação com a prescrição ordinária extintiva, prevista nos art.s 205 e 206 do Código Civil. O elemento principal é o tempo que extingue e cria direitos.

É a posse o elemento mais importante para a compreensão correta da usucapião no âmbito do Registro de Imóveis, cuja discussão, principalmente num primeiro momento de discussão acadêmica, foi olvidada. A posse, como leciona Moreira Alves, “não é a situação de exercício de fato, mas, ao contrário, a possibilidade, reconhecida juridicamente, de poder exercer o correspondente direito em qualquer esfera”[3]. O exercício aparente dos atributos do direito de propriedade não pode ser confundido com o próprio direito de propriedade.

Pontes de Miranda é de uma clareza única ao afirmar que “não se adquire, pela usucapião, de „alguém‟. Na usucapião, o fato principal é a posse, suficiente para originariamente se adquirir; não, para se adquirir de alguém”[4]. 

A posse, sublinhada por requisito como o tempo, constitui o que na técnica jurídica se chama posse ad usucapionem, que produz o importantíssimo efeito de gerar o direito de propriedade[5]. Entre os requisitos da usucapião, facilmente observado dos arts. 1.238 e seguintes, do Código Civil, considerando, ainda as diversas modalidades de usucapião, chegamos à conclusão de que não é necessária uma relação direta com o direito de propriedade, ou seja, a posse, não tem vínculo direto com o direito registrado na respectiva matrícula do Registro de Imóveis. A relação entre posse e direito de propriedade, é assim, de independência ou autonomia. 

Não é nossa intenção entrar na discussão acadêmica do conceito de posse, ainda pelo fato do Código Civil de 2002 ter se inclinado a Ihering e sua teoria objetiva, de forma que posse é a conduta de dono. Assim, existindo elementos no exercício da posse, idênticos ao direito de propriedade, estamos diante de uma posse que pode se qualificar[6].

Na usucapião, não existe sucessão, nenhuma relação, existe entre “o perdente do direito de propriedade e o usucapiente”[7]. Benedito Silvério ressalta, ainda, que o “registro nunca é objetivo à ação de usucapião, porque se usucape por se ter posse, e não por se ter direito, nem sequer direito à posse[8]. Flagrante, assim, a incompatibilidade da concordância expressa dos titulares de direitos com o instituto de usucapião.

O inciso II, do art. 216-A, da LRP, exige que assinem a planta e o memorial descritivo que serão apresentados ao oficial do registro de imóveis os titulares de direitos (notoriamente os reais) inscritos na matrícula do imóvel usucapiendo e na dos confinantes. Assim, se o titular de direito inscrito na matrícula do imóvel usucapiendo ou nas dos confinantes não responder à notificação de que trata o § 2º, do art. 216-A, da Lei nº 6.015/73, o procedimento será encerrado pelo registrador diante da discordância “tácita”. É preciso, pois, anuência expressa[9].

Felipe Pires Pereira em excelente artigo publicado ainda antes da vigência da usucapião, já atentava para a incompatibilidade do consentimento expresso, para o autor, “a necessidade de concordância dos titulares de direito real sobre o imóvel atenta contra o próprio instituto da usucapião. […] é incompreensível a exigência de concordância expressa do titular que, mesmo notificado, não apresenta impugnação, interpretando-se seu silêncio como discordância”[10].

Dessa forma, ao vincular o direito de propriedade constante do Registro de Imóveis como condição, sino qua non, para o êxito da usucapião administrativa, não há outra conclusão de que o procedimento não se trata de usucapião, mas sim de outro instituto, atípico, muito mais próximo de um negócio jurídico. 

O argumento de que existem no procedimento etapas do procedimento ordinário de usucapião não é suficiente para que o novo instituto seja considerado usucapião. Não se nega que a ata notarial de justificação de posse e ciência dos entes políticos sejam típicos de um processo de usucapião, no entanto, a vinculação com o direito de propriedade é fator de muito maior relevância e, em essência, desnatura totalmente a usucapião.

Referências:

[1] LEVITÁN, José. Prescripción Adquisitiva de Dominio. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1990,p.2. 

[2] MORENO-TORRES HERRERA, María Luisa. La usucapión. Marcial Pons: Madrid, 2012, p. 74. 

[3] MOREIRA ALVES, José Carlos. Posse. 2ª edição. Volume II. Tomo I. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 10. 

[4] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. XI. § 1.192, 1, p. 117. 

[5] BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de direito civil. 3º volume. 34ª edição. Saraiva: São Paulo, p. 30. 

[6] Ihering, como lembra Barros Monteiro, “não contesta a necessidade do elemento intencional, não sustenta que vontade deva ser banida; apenas entende que esse elemento implícito se acha no poder de fato exercido sobre a coisa (Curso de direito civil.3º volume. 34ª edição. Saraiva: São Paulo, p. 18). 

[7] MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. XI. § 1.192, 1, p. 117 

[8] SILVÉRIO RIBEIRO, Benedito. Tratado de usucapião. Volume I. 8ª edição. Saraiva: São Paulo, 2012, p. 240. 

[9] PROCESSO Nº 2012/24480 – SÃO PAULO – CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO – DJe de 15/1/2015. 

[10] PEREIRA, Felipe Pires. A interpretação do silêncio na usucapião extrajudicial do novo CPC, Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2016, disponível emhttp://www.conjur.com.br/2016-jan-09/interpretacao-silencio-usucapiaoextrajudicial-cpc, acesso em 12/08/2016.

Marcelo Augusto Santana de Melo - Registrador imobiliário em Araçatuba, São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha e Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS. Membro da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI.
Fonte: Blog do Autor

NOTA DO EDITOR:
Para um melhor entendimento do artigo supra, veja abaixo o teor do Art. 216-A da Lei 6015/73:

LRP - Lei nº 6.015 de 31 de Dezembro de 1973

Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências.

Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
- ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes; (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 1º O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 3º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 4º O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 5º Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 6º Transcorrido o prazo de que trata o § 4o deste artigo, sem pendência de diligências na forma do § 5o deste artigo e achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o caso. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 7º Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 8º Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 9º A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
§ 10º. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)

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