Leitura geral sobre a instituição e particularidades da Lei 8.009/90 e artigos 1.711 e seguintes do Código Civil.
O bem de família é um
instituto de proteção de parte do patrimônio considerado indispensável a
uma vida digna do ser humano. O homem, desde os primórdios, acumula
patrimônio, bens materiais para sua sobrevivência. Desta forma era com
os materiais de caça dos nossos ancestrais, cavernas povoadas por
determinados grupos, e assim por diante. Atualmente não é diferente,
resguardada as proporções.
Um pouquinho de história...
Intimamente ligado ao direito à moradia e ao princípio do mínimo
existencial, corolário do princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, o bem de família tem como fonte histórica o Homestead Act, do Texas-EUA, datado de 1839.
O atual estado americano, logo após conquistar sua independência do
México, porém antes de se incorporar aos Estados Unidos, era pouco
habitado e com vasta extensão de terras produtivas e férteis. Dada as
características geográficas, milhares de americanos e europeus migraram
para o então denominado Big Country.
Com a economia aquecida pela agricultura e pecuária e a constante
necessidade de investimentos, grandes bancos europeus, principalmente
ingleses, viram na República do Texas oportunidade de bons e lucrativos
negócios.
Foi então que em 1837 um grande banco nova-iorquino quebrou, fazendo
com que os preços dos produtos agrícolas despencassem. Sem
possibilidades de pagamento das dívidas, os agricultores e pecuaristas
começaram a ser executados pelas instituições financeiras, perdendo
tudo, inclusive, suas terras e casas.
Em conseqüência das execuções e perdas se suas moradias, grande parte
da população texana começou a voltar para suas terras natais em busca
de novas oportunidades. O governo, então, publicou o Homestead Act,
o qual não permitia aos credores, principalmente bancos, penhorarem ou
leiloarem as residências dos devedores, tudo como forma de incentivo
para que lá ficassem e reconstruíssem suas vidas.
Clóvis Bevilaqua enxergou a grandeza da função social do instituto
americano e logo tratou de implantá-lo no ordenamento jurídico
brasileiro, previsto nos artigos 70 a 73 do Código Civil de 1916.
Pautado em alterações substanciais, o atual Código Civil trouxe à baila a
regulamentação do bem de família voluntário, disposto nos artigos 1.711
a 1.722 e a Lei 8.009/90 instituiu o bem de família legal.
Instituição e procedimentos
O bem de família voluntário é aquele instituído por ato de vontade do
casal, da entidade familiar ou até mesmo de terceiro, mediante registro
no cartório de imóveis. Está previsto no artigo 1.711 do Código Civil
e, com o fito de evitar fraudes, o legislador estabeleceu valor máximo
para fixação, ou seja, o bem de família voluntário não poderá
ultrapassar o limite de 1/3 do patrimônio líquido dos seus
instituidores. Esta regra não existia no Código de 1916.
Sua instituição se dá por escritura pública ou testamento, devendo
ser registrado no cartório de registro de imóveis da circunscrição do
imóvel. O registro deverá ser feito no Livro 2 (na matrícula do imóvel) e
no Livro 3, conforme determinam os artigos 167, I, 1, combinado com
artigo 263, ambos da Lei 6.015/73. Caso seja instituído por testamento, o
bem de família será registrado com a apresentação do formal de
partilha.
Vale lembrar que as regras contidas na Lei 6.015/73 coexistem com as
determinações do Código Civil de 2002, logo, as publicações de que trata
o artigo 261 da LRP deverão ser procedidas assim como determina o
dispositivo mencionado. Desta forma, não havendo qualquer exigência ou
sendo ela sanada, ou eventual dúvida julgada improcedente, o oficial
elaborará o edital a ser publicado, observadas as exigência do artigo
262 da LRP. Publicado o edital e havendo prejudicados, estes deverão se
manifestar no prazo de trinta dias.
A instituição do bem de família voluntário acarreta dois efeitos
fundamentais: a impenhorabilidade (artigo 1.715) e a inalienabilidade
(artigo 1.717). Impende destacar que, tanto uma quanto outro, não são
absolutos.
Para fins de proteção deste instituto, deve-se considerar todas as formas de família, dentre elas a unipessoal
[1], monoparental e, segundo melhor doutrina, após julgamento da ADI 4277 pelo STF, a família homoafetiva.
Já o bem de família legal tem previsão na Lei 8.009/90, que em
respeito ao direito constitucional à moradia e a própria noção de
patrimônio mínimo, determina uma impenhorabilidade legal e involuntária
do imóvel residencial, independentemente de inscrição em cartório.
A própria Lei traz o conceito do instituto em seu artigo 1°: “O
imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é
impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil,
comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos
cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele
residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.
No corpo da lei (art. 3º) são estabelecidas exceções de
impenhorabilidade dos bens de família. Dentre estas hipóteses,
reputam-se de maior importância aquelas em que a dívida executada seja
proveniente de garantias feitas sobre os próprios imóveis, como a
hipoteca e, principalmente, os débitos condominiais, impostos, como IPTU
e ITR e créditos de trabalhadores da própria residência (excluídos os
trabalhadores eventuais, como pintor, eletricista e etc (STJ -RESP
644733/SC)).
Hipoteca e o bem de família
É pacífico o entendimento de que o bem de família poderá ser levado a
registro mesmo que o imóvel já tenha em sua matrícula um registro de
hipoteca. Os dois institutos podem coexistir, observado a máxima “prior tempore, potior jure” (primeiro
no tempo, melhor no direito), ligado ao princípio da prioridade, o que
significa dizer que, hipotecado o imóvel antes da instituição do bem de
família, ele poderá, posteriormente, ser executado pela dívida
hipotecária.
Em sentido inverso, a jurisprudência também já entendeu que é
possível o registro da hipoteca em imóvel já instituído como bem de
família: “a lei a é clara, permitindo ser alienado e, portanto,
hipotecado o bem de família, com o assentimento dos interessados e de
seus representantes legais (...)” (RT 82/276).
Alienação
O bem de família poderá ser alienado por ambos os cônjuges, conforme o
caso, e com consentimento de todos os interessados, sempre após a
oitiva do Ministério Público, que funciona como fiscal da lei, como
parte da proteção constitucional da família, prevista no artigo 226 da
Carta Política.
Cancelamento ou extinção
Ao contrário do que ocorre com a alienação, o cancelamento do bem de
família dependerá sempre de ordem judicial. Também podem, por pedido
feito por todos os herdeiros, ser cancelado o bem de família instituído
por testamento, tal questão poderá ser, inclusive, decidida pelo juiz
dentro do inventário.
Por fim, extingue-se o bem de família com a morte de ambos os
cônjuges ou companheiros e com a maioridade dos filhos, desde que não
sujeitos à curatela. Vale lembrar que a dissolução da sociedade conjugal
não extingue o bem de família, ainda que o casal não tenha filhos.
Outros regramentos e entendimentos
Para melhor utilização das garantias do instituto não basta a simples
leitura da legislação. Em diversos precedentes, o STJ e alguns
tribunais estaduais decidiram sobre minúcias da aplicabilidade da lei.
Enumeramos a seguir alguns entendimentos, inclusive sumulados, vejamos:
- STJ - Súm. 205 - a lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência.
- STJ – Súm. 49 - A vaga de garagem que possui uma matrícula própria
no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de
penhora.
- Se houver dois imóveis residenciais e que a família alternadamente
viva, nos termos doa artigo 5º da Lei 8.009, a proteção legal recai no
de menor valor, salvo se o imóvel mais valioso houver sido inscrito como
bem de família voluntário.
- O STJ, em mais de uma oportunidade, admitiu o desmembramento de um
imóvel (bem de família legal) para efeito de penhora (RESP 968907/RS).
- Em recente decisão, o TRT mineiro determinou a penhora de bem
família considerado suntuoso para pagamento de dívida trabalhista, sob o
argumento de que “[...]a Lei 8.009/90 não poderia ser utilizada como
escudo para o devedor se eximir de sua obrigação de pagar crédito do
trabalhador, de natureza alimentar, pois, conforme apurado pelo oficial
de justiça, o imóvel penhorado é suntuoso, está localizado em área nobre
de Contagem, contém diversas benfeitorias e está avaliado em R$
650.000,00 [...]”. (Processo 0054900-21.2006.5.03.0031 AIRR).
- O artigo 2º da Lei 8.009 exclui da sua proteção veículo de
transporte, obras de arte e adornos suntuosos. A jurisprudência já
decidiu, quanto aos bens móveis protegidos: computador, a televisão, o
ar condicionado e até mesmo um teclado musical (RESP 218882/SP).
- O STJ já firmou entendimento, em mais de uma oportunidade, que a
renda proveniente do imóvel residencial locado é protegido pelas normas
do bem de família (AGRG RESP. 975858/SP).
Quadro sinóptico[2]
- Instituição: Escritura pública ou testamento
- Pode ser instituído por terceiro, mediante doação ou testamento
- Registro nos livros 2 e 3 do Serviço de Registro de Imóveis
- Objeto: prédio residencial e valores mobiliários
BEM DE FAMÍLIA
- Limite: não pode ultrapassar 1/3 do patrimônio líquido
- Pode ser alienado com anuência de todos e autorização do MP
- Para extinção do bem de família é necessária ordem judicial
- Não isenção de tributos referentes ao imóvel e taxa condominial
- Título: Escritura pública de instituição, de doação ou formal de partilha
- É possível o registro ainda que haja registro anterior de hipoteca
REGISTRO
- Procedimento: prenotação, qualificação, publicação do edital e registro
- Havendo impugnação, é cancelada a prenotação
- Cancelamento do registro: ordem judicial
Bibliografia:
CENEVIVA, Walter. Lei do registros públicos comentada – 19. ed. – São Paulo : Saraiva, 2009.
GLAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,Rodolfo. Novo curso de direito civil – direito de família. Saraiva : 2011
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2011.
[1]
STJ - Súm. 364: “O conceito de impenhorabilidade e bem de família
abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e
viúvas”.
[2] Fonte: Luiz Guilherme Loureiro – Registros Públicos : Teoria e Prática – 2011. p. 307.
Autor: Bruno Bittencourt Bittencourt
Fonte: meuadvogado.com.br
Nota do Editor:
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