sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Resolução de promessas de venda no contexto da incorporação imobiliária – Evolução legislativa e precedentes

 

A promessa de venda de imóveis tipificada pela lei 4.591/1964O contrato de promessa de compra e venda foi tipificado no direito positivo brasileiro pelo decreto-lei 58/1937 para comercialização de lotes de terreno resultantes de parcelamento do solo urbano,1 vindo a lei 4.591/1964 a instituir tipificação especial para a promessa de venda de imóveis integrantes de incorporação imobiliária.

A instituição de regimes jurídicos diferenciados para esse contrato preliminar é justificada pela necessidade de adequá-lo à racionalidade econômica desses sistemas produtivos e à relevância do interesse social relacionado à urbanização e construção de conjuntos imobiliários para moradia.

Em relação aos imóveis objeto de incorporação imobiliária, a lei 4.591/1964 (arts. 28 e seguintes) qualifica a promessa de venda como negócio jurídico pelo qual o incorporador se obriga a transmitir a propriedade de unidades imobiliárias que integrarão conjunto imobiliário e, ainda, a promover sua construção, por si ou por terceiro, responsabilizando-se pela entrega dos imóveis no prazo programado (arts. 29 e 43,3 dentre outros). Em contraprestação, os promitentes compradores se obrigam a pagar o preço das unidades que se comprometeram a adquirir, em geral em parcelas.

A celebração desses contratos tem como pré-requisito o arquivamento e o registro, no Registro de Imóveis da situação do empreendimento, de um Memorial de Incorporação composto pelos documentos enumerados no art. 32, entre eles a discriminação das frações ideais em que é dividido o terreno, que passarão a constituir os direitos de propriedade a serem comercializados, o projeto de construção aprovado pelas autoridades, a descrição e caracterização do futuro conjunto imobiliário e das unidades que se vincularão a essas frações ideais, o orçamento da construção, além de outros documentos.

Por força do art. 35-A, todo contrato de alienação desses imóveis, enquanto em construção, deve ser iniciado por um quadro-resumo que destaca determinados elementos do seu conteúdo necessário, entre eles: (i) a identificação do financiamento da construção, se houver, e da garantia incidente sobre o imóvel; (ii) a identificação do regime da construção, se contratadas destacadamente a venda da fração ideal e a prestação dos serviços de construção; (iii) as condições de execução da obra, prazo de conclusão e suas eventuais prorrogações, penalidades por inadimplemento das obrigações do incorporador; (iv) as condições de pagamento do preço e encargos, índices e critérios de reajustamento e da taxa de juros, se houver; (v) a indicação das obras e serviços não incluídos no preço, que deverão ser pagos separadamente pelo adquirente, tais como as ligações dos serviços públicos, a decoração da portaria etc; (vi) as cláusulas penais, moratórias e compensatórias; (vii) a indicação das hipóteses de resolução do contrato, explicitando os procedimentos de realização de leilão extrajudicial, se for o caso.

Na fase de execução do contrato a lei atribui ao incorporador determinados deveres relacionados à prevenção e mitigação de riscos e ao desenvolvimento do programa contratual, tais como a captação de recursos e sua aplicação na construção, o controle orçamentário da incorporação e a entrega de relatórios periódicos sobre o andamento da obra, dentre outros deveres inerentes à gestão da incorporação imobiliária.

Traço marcante dessa espécie de promessa de compra e venda, que a distingue do regime geral definido pelo Código Civil, é a dupla função que a qualifica como (i) contrato preliminar de transmissão da propriedade e, simultaneamente, (ii) instrumento de captação de recursos, já que é por esse meio que o incorporador levanta os recursos necessários à realização do objeto da incorporação imobiliária – execução da obra, entrega das unidades, liquidação do passivo e retorno do investimento do incorporador.

A existência de fluxo de caixa proveniente das vendas em volume suficiente para execução do projeto é indispensável para obtenção de financiamento destinado à execução do empreendimento, pois os créditos derivados dessas promessas em regra são cedidos fiduciariamente ao banco financiador e seu produto é destinado prioritariamente à execução da construção e à amortização desse financiamento.

Essa estrutura econômico-financeira aproxima a conformação da incorporação imobiliária da estrutura das operações de Project finance, cujo objeto também é a realização de determinado empreendimento sustentado exclusivamente por “uma rede de contratos coligados que, buscando uma adequada alocação de riscos, viabilize o desenvolvimento de um empreendimento com base nos recursos por este gerados e nas garantias dele exclusivamente derivadas”.

Do mesmo modo que um Project finance, a incorporação imobiliária também se realiza com o produto da exploração do seu próprio ativo e no limite da sua capacidade de geração e preservação das receitas auferidas com essa exploração.

Em ambos os casos, a realização do objeto do negócio só se viabiliza se for possível demonstrar a liquidez do empreendimento, como condição para seu financiamento, até porque a principal garantia do financiador é a vinculação das receitas das vendas à liquidação do seu passivo.

Dada essa limitada capacidade de autossustentação, a lei impõe ao incorporador deveres inerentes à gestão dos recursos orçamentários mediante “boa administração” e “preservação do patrimônio de afetação” (art. 31-D, I), visando a preservação do fluxo financeiro proveniente das vendas e seu direcionamento prioritário à execução da obra. O conceito de “boa administração” é explicitado pelo inciso III desse mesmo art. 31-D, que remete a todas as demais disposições da lei 4.591/1964 a ele correspondentes, ao exigir a aplicação das receitas das vendas “na forma prevista nesta Lei, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da obra.”

É igualmente em razão da necessidade de rigoroso controle orçamentário, justificado pela limitada capacidade de geração de receitas, que a lei contempla outros mecanismos de proteção patrimonial, dentre os quais ressaltam (i) blindagem dos direitos e obrigações de cada empreendimento em um patrimônio de afetação (lei 4.591/1964, arts. 31-A e seguintes), (ii) irretratabilidade das promessas de venda (lei 4.591/1964, § 2º do art. 32), (iii) preservação das receitas mediante impenhorabilidade dos créditos oriundos das vendas (novo CPC, art. 833, XII), (iv) recomposição do fluxo financeiro da incorporação, em caso de inadimplemento do adquirente, mediante procedimento extrajudicial de resolução, seguido de leilão (lei 4.591/1964, art. 63) e (v) destituição do incorporador em caso de injustificado retardamento ou paralisação da obra por mais de 30 dias (lei 4.591/1964, art. 43, VI).

Os elementos da racionalidade econômica dessa espécie de contrato, assim identificada na lei, evidenciam que a existência de um interesse comum subjacente a cada promessa de venda condiciona sua interpretação à funcionalidade econômica da incorporação imobiliária, na medida em que a satisfação das legítimas expectativas de cada contratante está subordinada à consumação do empreendimento e à entrega das unidades construídas a todos os adquirentes.

É essencialmente a partir desses pressupostos que, ao tipificar a promessa de venda de imóveis a construir por esse regime, a lei 4.591/1964 institui procedimento extrajudicial de resolução do contrato que prioriza a recomposição do fluxo de caixa do empreendimento, tendo em vista que, como observa Caio Mário da Silva Pereira, “a mora dos adquirentes desequilibra a caixa e, consequentemente, altera o plano financeiro da obra”, situação que repercute sobre “todo o conjunto dos candidatos às demais unidades autônomas.”

A prioridade assim conferida pela lei à recomposição do fluxo financeiro da incorporação imobiliária é justificada pela limitação do lastro para formação de capital ao próprio ativo do empreendimento.

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Fonte: Migalhas

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