terça-feira, 1 de novembro de 2016

PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL: QUANDO É POSSÍVEL DESISTIR?


Quem nunca se arrependeu em realizar determinado negócio ao longo da vida? Difícil encontrar alguém que somente tenha histórico de sucessos comerciais sem qualquer arrependimento.

Não há dúvidas de que quem assina um contrato deve honrar a obrigação até o fim, nos exatos termos do pactuado, até mesmo por força do princípio secular chamado pacta sunt servanda, que, traduzindo do latim, significa que os contratos/acordos são feitos para serem cumpridos.

Quando o assunto envolve a compra de imóvel, seja ela ainda uma promessa ou um contrato definitivo de venda e compra, na quase totalidade dos negócios, faz-se presente cláusula que preveja a irretratabilidade e irrevogabilidade, cujo intuito não é outro senão o de evitar que uma das partes desista do negócio, por qualquer motivo que seja. Vale dizer, é a famosa cláusula contra o arrependimento existente em contratos particulares (de gaveta) ou por instrumento público de compra e venda de imóveis.

Podemos ser enfáticos ao afirmar que essa cláusula está mais para o comprador do que para o lado do vendedor, por um motivo simples: quem disponibiliza algo de que é proprietário dificilmente desiste da venda, com exceção de alguns alienantes inescrupulosos, é claro. Já quem compra pode ter uma propensão maior a repensar a aquisição no decorrer da relação comercial.

Embora não seja assunto do presente artigo, sentimo-nos coagidos a lembrar que o contrato de promessa de venda e compra de imóvel em que se pactuou cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade, desde que o contrato esteja registrado no cartório de registro de imóveis competente, transmite ao compromissáiro-comprador o direito real à aquisição do bem, a teor do quanto previsto no artigo 1.417 do Código Civil, daí a importância do registro do contrato para o comprador.

Por outro lado, não é verdadeira a afirmação de que o adquirente jamais poderá se arrepender da aquisição uma vez assinado o contrato. Vale lembrar que no atual cenário jurídico brasileiro as pessoas não são obrigadas a se manterem contratadas em algo que não mais lhes interesse, especialmente se a matéria tocar o direito do consumidor, quando o arrependimento não só é válido como também é razoavelmente diminuído o prejuízo para o comprador.

O entendimento existente sobre a relatividade na aplicação da cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade prevalecente em nossos Tribunais é no sentido de que essa cláusula objetiva apenas impedir eventual arrependimento quanto ao conteúdo do negócio celebrado, não impedindo, em absoluto, que a parte invoque a cláusula resolutiva tácita, inerente a todos os contratos bilaterais (a exemplo da apelação nº 70024084683, 20ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator Desembargador José Aquino Flores de Camargo, julgado em 18 de junho de 2008).

A cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade presente nos contratos diz respeito à impossibilidade do exercício do direito de arrependimento, não sendo capaz de proibir a rescisão do contrato em caso de inadimplemento, por exemplo (vide o que foi decidido nos autos do Recurso de Apelação nº 40.765-4, julgado pela 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de Sáo Paulo, Relator Desembargador Paulo Menezes, em 30 de junho de 1998).

O tão propalado e centenário princípio da força obrigatória dos contratos significa, em sua antiga acepção, a irreversibilidade da palavra empenhada.

A ordem jurídica contemporânea, por sua vez, oferece a cada um a possibilidade de contratar e a liberdade de escolher os termos do negócio segundo suas preferências, de modo que uma vez contraída a obrigação, não resta alternativa senão cumpri-la, sob pena de responder pelas consequências do inadimplemento.

A cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade incorpora ao contrato uma proteção contra arrependimento motivado ou não, seja por parte do vendedor ou do comprador, revelando também um caráter de negócio definitivo, ressalvada, evidentemente, a hipótese de o contrato sofrer aditamento por liberalidade das partes contratantes.

Todavia, esse arrependimento posterior à assinatura do contrato não será sem consequências. O que se precisa é compreender quais são e os diferentes graus de perda para o arrependimento posterior aos contratantes.

Em uma relação entre partes iguais e se tratando de imóveis usados ou novos (mas já construídos) a consequência para aquele que se arrepende do negócio depois de assinado o contrato são duas: i) se quem pretende desistir é o comprador (mais comum!), perderá o que pagou ao vendedor a título de sinal ou arras, nos termos dos artigos 417 a 420 do Código Civil;ii) se o desistente é o vendedor, deverá restituir ao comprador integralmente o que tiver recebido, acrescido de correção monetária pelo índice estipulado em contrato, sem prejuízo de outras penalidades existentes no negócio para compor as perdas e danos, valendo isso para ambas as partes.

Quando a aquisição de imóvel ocorre na planta (quase sempre em estande de vendas), através de contrato de adesão, em relação típica de consumo, a cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade adquire relevância muito maior (e pior!) para o comprador.

Vale destacar que nossos Tribunais há tempos têm declarado a abusividade da cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade quando se trata de contratos de adesão. Na prática, o Poder Judiciário acaba ignorando a presença desse tipo de cláusula ao julgar caso que envolva a compra e venda de imóveis em matéria protegida pelo Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, quem acredita que, em uma aquisição de imóvel na planta, caso o comprador desista do negócio, seja no começo ou no meio da relação com a vendedora, perderá apenas a parcela referente ao sinal do preço, engana-se.

Na promessa de venda e compra de imóvel na planta, quando o contrato prevê cláusula de eventual inadimplência do comprador a restituição ocorre de forma escalonada e sempre a critério exclusivo da vendedora. Por exemplo:

a) se o comprador pagou entre 10% a 30% das parcelas, devolve-se 0%;

b) se o comprador pagou entre 31% a 50% das parcelas, devolve-se 10%;

c) se o comprador pagou entre 51% a 75% das parcelas, devolve-se 20%; e

d) se o comprador pagou entre 76% a 100% das parcelas, devolve-se 40%.

Nesse aspecto, revela-se abusiva, leonina e até mesmo nula de pleno direito a cláusula de contrato que preveja a perda total dos valores pagos ou a restituição de importância muito baixa ao comprador.

Mas, como caracterizar o que seria essa “restituição muito baixa ao comprador”? Nossa legislação não informa e quem vai responder a essa pergunta é o Poder Judiciário.

O que a lei proíbe expressamente é a perda total das parcelas pagas, a rigor do quanto previsto no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. Porém, com relação à eventual restituição escalonada tão presente nos contratos a lei é omissa. Ou quase.

Para não se afirmar que a lei é totalmente omissa, destaca-se que o item 5 da Portaria nº 4, de 13 de março de 1998, promulgada pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, prevê claramente como sendo nulas de pleno direito as cláusulas que: “estabeleçam a perda total ou desproporcionada das prestações pagas pelo consumidor, em benefício do credor, que, em razão de desistência ou inadimplemento, pleitear a resilição ou resolução do contrato, ressalvada a cobrança judicial de perdas e danos comprovadamente sofridos”.

O problema enfrentado na prática pelos operadores do direito que militam na área do consumidor é que muito poucos conhecem a existência dessa importante Portaria, a qual compõe parte das normas do Código de Defesa do Consumidor. Ela existe e está em pleno vigor, embora necessite de maior aplicação na sociedade.

Por sua vez, o Poder Judiciário vem pacificando entendimento no sentido de que em relação de consumo na compra e venda de imóvel (na planta ou não), admite-se ao vendedor reter em média o correspondente a 10% (dez por cento) dos valores pagos pelo comprador, obrigando-o na devolução dos outros 90% (noventa por cento).

Caso o comprador venha a obter a posse do imóvel e posteriormente deixe de pagar as parcelas ao vendedor, os Tribunais admitem que a retenção seja realizada no correspondente a 30% (trinta por cento) dos valores pagos, sem prejuízo da cobrança de 0,5% (meio por cento) a 1% (um por cento) ao mês a título de taxa de ocupação até a efetiva restituição do imóvel ao vendedor, restituindo-se ao comprador inadimplente o percentual residual.

Sobre o assunto da relatividade da cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade destacamos alguns precedentes selecionados:

- TJSP, Apelação nº 0010818-76.2008.8.26.0019, acórdão nº 2014.0000825837, 7ª Câm. de Direito Privado, Des. Relator: Rômolo Russo, data do julgamento: 17 de dezembro de 2014

- TJRJ, Apelação nº 0082127-41.2010.8.19.0001, 1ª Câm. Cível, Des. Relator: Lucia Helena do Passo, data do julgamento: 13 de novembro de 2012

- TJSP, Apelação nº 0162227-11.2012.8.26.0100, acórdão nº 2014.0000710307, 1ª Câm. de Direito Privado, Des. Relator: Maia da Cunha, data do julgamento: 4 de novembro de 2014

- TJPR, Apelação nº 254694-7, 3ª Câm. Cível, Des. Relator: Hayton Lee Swain Filho, data do julgamento: 10 de agosto de 2010

Concluindo o presente artigo, sem desejar esgotar a discussão sobre o assunto e muito menos querer incutir na mente do leitor que a desistência do negócio não trará consequências financeiras aos envolvidos, entende-se que a cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade tem a função de prevenir (mas não de forma impositiva) o arrependimento dos contratantes após a assinatura do contrato de compra e venda de imóvel, seja usado ou novo.

Tratando-se o contrato de compra e venda de imóvel tipicamente de adesão, essa cláusula é quase sempre ignorada por nossos Tribunais, não revelando grande ameaça ao comprador, caso opte pela desistência do negócio (a qualquer tempo), uma vez que suas perdas serão mínimas nos termos dos incontáveis precedentes sobre o assunto.

Ivan Mercadante Boscardin - Especialista em Direito Imobiliário e Consumidor
Fonte: Artigos Jus Navigandi

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