1. INTRODUÇÃO.
A finalidade precípua do instituto da passagem forçada é assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Na atualidade, é sob esta ótica que deve ser analisado este instituto, considerado pela doutrina como uma das mais severas restrições de direito de vizinhança.
Tem previsão no art. 1.285 do Código Civil: O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário. Conforme se constata da previsão legal, o direito à passagem forçada visa a atender o anseio social para que a propriedade possa ser economicamente explorada. Não é de interesse do Estado que o imóvel com aptidão ao uso produtivo seja relegado ao abandono pela ausência de saída para a via pública.
Conforme previsão do Código Civil: § 1º Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem.
A doutrina, com absoluta razão, aponta como um dos requisitos para a concessão da passagem forçada, a necessidade de que o encravamento seja natural. Nesse sentido é a lição de Carlos Roberto Gonçalves: "Não pode ser provocado pelo proprietário. Não pode este vender parte do terreno que lhe dava acesso à via pública e, depois, pretender que outro vizinho lhe dê passagem. Nesse caso, e porque nenhum imóvel deve permanecer encravado, poderá voltar-se somente contra o adquirente do terreno em que existia passagem"[1]
2. DO IMÓVEL PARCIALMENTE ENCRAVADO.
A doutrina clássica afirma ser necessário que o encravamento seja, também, absoluto. Assim, a passagem forçada como direito excepcionalíssimo não pode se estender àquele titular cujo prédio possua saída, ainda que precária, penosa ou perigosa. Trata-se como já afirmado, de posição tradicional na doutrina e jurisprudência nacionais, pensamento que,data máxima vênia, não se pode concordar.
Conforme já exposto, a premissa do instituto da passagem forçada é a atenção ao princípio da função social da propriedade. É sob essa ótica que a doutrina mais moderna examina esse instituto. Isto porque, ao imóvel apenas parcialmente encravado podem incidir graves prejuízos, impossibilitando, ou quando menos, dificultando sua exploração. Negar a essas situações, de forma apriorística, a aplicação do instituto da passagem forçada é esquivar-se ante a evolução valorativa pela qual passa o Direito Civil. Vale lembrar que o novel diploma assenta-se sobre os princípios da socialidade, operabilidade e eticidade.
O que ora defende-se não é garantia de passagem forçada a qualquer imóvel, ainda que o encravamento seja mínimo. Trata-se, bem distante disso, de afirmar que tal direito deve ser examinado diante da situação concreta posta em juízo, sopesando-se as condições de encravamento do imóvel e a restrição a ser imposta àquele que deve suportar a passagem; estando, nessa análise, sempre atento ao interesse social afeto à propriedade. O que não se pode afirmar, de modo peremptório, é a total vedação do instituto analisado a todos os imóveis que não se encontrem em situação de absoluto encravamento.
Nesse sentido é o Enunciado 88, aprovado na I Jornada de Direito Civil (realização do Conselho da Justiça Federal - CJF e do Centro de Estudos Jurídicos do CJF): O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica.
Seguindo esse entendimento, também o Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela desnecessidade de que o imóvel esteja em situação de encravamento absoluto para que se reconheça o direito à passagem forçada:
"Civil. Direitos de vizinhança. Passagem forçada (CC, Art. 559). Imóvel encravado. Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, especial conhecido e provido em parte" (STJ, REsp 316.336/MS,Rel. Min. Ari Pargendler, 3ª. Turma, j. 18.08.2005, DJ 19.09.2005, p. 316).[2]
No mesmo sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
"Passagem forçada. Constatação de se tratar de imóvel encravado. É dispensável que o prédio seja absolutamente encravado, sendo suficiente, para o deferimento da proteção pleiteada, que o caminho indicado seja o mais adequado a atender às necessidades da postulante. Inteligência do Art. 1.285, do CC. Desfazimento da construção sobre essa erigida que se mostra impositiva"(TJRS, Processo 70016115818, Data: 16.08.2006, Órgão julgador: Vigésima Câmara Cível, juiz Relator José Aquino Flores de Camargo, Origem: Comarca de Caxias do Sul).[3]
Na doutrina moderna, o posicionamento ora exposto é também defendido por Flávio Tartuce e por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias. Estes últimos, citando o entendimento de Arnaldo Rizzardo, realçam a importância nuclear do princípio da função social da propriedade:
"Contudo, parece-nos que, nos tempos atuais, a penetração do princípio constitucional da função social da propriedade evoca a destinação coletiva da coisa, em beneficio conjunto de seu titular e da comunidade, visando a uma finalidade econômica relevante. Assim, mesmo que exista uma saída para a via pública, constatando-se dificuldade, insuficiência, inadequação ou, até mesmo, periculosidade do percurso, permitir-se-á ao magistrado interpretar o dispositivo de forma extensiva, concedendo ao proprietário necessitado outra saída para que seu imóvel tenha a sua utilização ampliada e possa atender às necessidades de exploração econômica.
Nas palavras de ARNALDO RIZZARDO, o encravamento, ou falta de acesso, pois, para tipificar a espécie, não precisa ser absoluto. Não se exige que o fundo não disponha de nenhuma saída para a via pública. Se uma passagem penosa, longa, estreita, perigosa ou impraticável existir, não fica afastado o direito a outra comunicação" [4]
3. CONCLUSÃO
A análise da peculiar situação do imóvel em estado de encravamento parcial foi, por longo tempo, negligenciada pela jurisprudência. Na atualidade, todavia, em decorrência do princípio da função social da propriedade e dos valores que animam o novel Código Civil, tal concepção atravessa profundas alterações. Tal direito deve ser, portanto, concebido a partir de uma concepção jurídica de encravamento, que difere da simples análise técnica de engenharia. Essa situação de encravamento jurídico significa verificar a exploração atual do imóvel, contrastando-se com realização social a ser alcançada com o reconhecimento do direito a passagem forçada. Portanto, deve-se examinar a aptidão de incremento social do imóvel, ponderando-se os prejuízos a serem sofridos pelo vizinho que concederá a passagem. O que deve ser de logo repelida é a vedação, apriorística, ao direito à passagem forçada tendo por base concepções de encravamento absoluto ou relativo que, em termos jurídicos e sociais, podem mostrar-se de somenos importância.
NOTAS:
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: Direito das Coisas: v.5. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 360.
[2] TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Vol. 4. 2 ed. São Paulo: GEN/Método, 2009, p. 239.
[3] TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Vol. 4. 2. ed. São Paulo: GEN/Método, 2009, p. 239.
[4] FARIA, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 453.
Autor: Murilo Arjona De Santi - Advogado. Bacharel de Direito da Universidade de Ribeirão Preto.
Fonte: Revista Jus Navigandi
Autor: Murilo Arjona De Santi - Advogado. Bacharel de Direito da Universidade de Ribeirão Preto.
Fonte: Revista Jus Navigandi