Cumprindo o comando constitucional da proteção à dignidade humana (art. 1º, III, CF) e, mais tarde, o direito à moradia como direito social básico (art. 6º, CF com a redação da EC 26/2000), a lei 8009/90, norma de ordem pública e, portanto, inderrogável pela vontade das partes, tornou impenhorável o bem imóvel que serve de moradia ao cidadão, assim como as acessões, benfeitorias e pertenças que guarnecem a residência, excepcionados os adornos suntuosos ou de luxo, pertencentes ao executado.
Em 1991, por acréscimo trazido pela lei 8245, incluiu-se o inciso VII no rol de exceções da impenhorabilidade a que alude o artigo 3º da citada lei 8009/90. Trata-se da polêmica previsão da fiança locatícia imobiliária urbana, a indicar que nessa modalidade de garantia fidejussória, o fiador que tenha um único imóvel que lhe serve de única moradia poderá vir a perdê-lo se o locatário não cumprir com a sua obrigação perante o locador.
O Supremo Tribunal Federal, na pena do emérito Ministro Carlos Velloso[1], em decisão monocrática proferida no ano de 2005, reconheceu a inconstitucionalidade da lei por duplo fundamento: ofensa ao direito de moradia e à isonomia. Significativo se mostra o seguinte trecho da referida decisão:
“Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000. Essa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C. F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família Lei 8.009/90, art. 1º encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de 1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000.”
Na doutrina, importantes vozes defendem a tese da inconstitucionalidade da norma[2], mas o fato é que o entendimento majoritário na jurisprudência tem sido pela constitucionalidade.
No Supremo Tribunal Federal, a tese da inconstitucionalidade não fez eco. Após a citada decisão monocrática, o Pleno, ainda que por maioria, vencidos os Ministros Carlos Britto, Eros Grau e Celso de Mello, entendeu pela constitucionalidade da norma especial[3]. No Superior Tribunal de Justiça, a questão acabou sendo afetada pelo regime de recursos repetitivos e a egrégia Segunda Seção, na esteira de antigo verbete aprovado por maioria no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[4], entendeu que “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação.”. (Súmula 549, Segunda Seção, julgado em 14/10/2015, DJe 19/10/2015).
É óbvio que o fundamento jurídico da tese majoritária na jurisprudência está blindado pelos melhores propósitos de incrementar a oferta de imóveis para a locação, notadamente para fins residenciais, mas trata-se, em nosso modo de sentir, de um grande equívoco dos poderes legislativo e judiciário, animado por argumentos ad terrorem do fundamental mercado imobiliário, no sentido de que os locadores preferirão deixar os imóveis vazios ou que sem essa regra não haverá garantia na locação, aumentando ainda mais o déficit habitacional como se este tivesse como causa a penhorabilidade do imóvel de moradia do fiador.
Com todo respeito às opiniões em contrário, na legalidade constitucional que prima pela isonomia, direito à moradia em posição de supremacia em relação ao direito de crédito, tendo em vista a primazia da proteção da dignidade humana, não há espaço para tal construção jurídica.
Com relação ao direito à moradia a hipótese é de não recepção dessa parte da lei 8009/90 com a redação dada pela lei do inquilinato, pois há uma demonstração explícita do afastamento do direito social à moradia, particularizada a um contratante e em atenção ao interesse privatista do locador, desprestigiando os paradigmas da justiça social.
Entretanto, mais eloquente é a inconstitucionalidade por falta de isonomia. Como se justifica que o locatário seja titular do direito à moradia e tenha o seu único imóvel para fins de moradia impenhorável e o responsável que não tem o dever primário de pagamento do aluguel não possa se socorrer de tal direito? Sobre esse ponto, perverso tem se mostrado o entendimento da jurisprudência sobre a penhorabilidade do único imóvel de moradia do locatário na ação fundada no direito de sub-rogação. Sob o justificável argumento de que não se pode conferir interpretação extensiva a normas que restringem direitos[5], os Tribunais[6], em maioria, têm rechaçado essa legítima pretensão do fiador contra o locatário.
Oxalá que a óbvia submissão do atual Código de Processo Civil à Constituição Federal (art. 1º) não seja obstaculizada pela preocupação com a estabilidade da jurisprudência e essa triste tese seja superada (overruling) com as cautelas propugnadas pelos parágrafos segundo, terceiro e quarto do artigo 927 da mesma lei.
A ignomínia da penhora do imóvel de moradia do fiador que tanto desespero tem levado a diversas famílias desde a entrada em vigor da atual lei do inquilinato há de cessar ou então que confessemos a nossa incompetência em dotar a locação imobiliária urbana de uma efetiva garantia aos locadores.
Há muitas possibilidades no ordenamento jurídico, mas pode existir um descaso mental diante de uma jurisprudência tão confortável para os interesses do locador e até mesmo do locatário que não será alvejado pela penhora de eventual imóvel de moradia de sua titularidade.
Referências
[1] RE nº 352.940/SP, julg. Em 25/04/2005.
[2] Eliane Maria Barreiros Aina. O Fiador e o Direito à Moradia. Direito Fundamental à Moradia frente à Situação do Fiador Proprietário do Bem de Família. 2002, p. 123/124; Gildo dos Santos. Locação e Despejo. Comentários à lei 8.245/91. 4ª ed. 2001, p. 123/146; Flávio Tartuce. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 10ª ed. 2015, p. 486/493; Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Contratos em Espécie. 6ª ed. 2013, p. 629/632; Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Contratos. 5ª ed. 2015, p. 1043/1044.
[3] Fiador. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República (RE 407688, Relator (a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, DJ 06-10-2006 PP-00033 EMENT VOL-02250-05 PP-00880 RTJ VOL-00200-01 PP-00166 RJSP v. 55, n. 360, 2007, p. 129-147).
[4] Súmula nº 63: “Cabe a incidência de penhora sobre imóvel único do fiador de contrato de locação, Lei nº. 8009/90 (art. 3º, VII) e Lei nº. 8245/91.” Referência: Súmula da Jurisprudência Predominante nº. 2001.146.00005. Julgamento em 24/06/2002. Relator: Desembargador Paulo Ventura. Votação por maioria. Registro do Acórdão em 14/08/2003.
[5] Defendendo a possibilidade de interpretação extensiva para alcançar o imóvel de moradia do locatário: Gabriel Seijo Leal de Figueiredo. Contrato de Fiança. 2010, p. 179/181.
[6] Ação de regresso, decorrente de fiança concedida em contrato de locação, em fase de cumprimento de sentença. Não estando caracterizada nenhuma das hipóteses previstas no art. 3º, da Lei 8.009/90, que trata das exceções à regra da impenhorabilidade, e estando evidenciado que o imóvel constrito é bem de família do executado, o levantamento da penhora é medida que se impõe. Recurso provido. (Relator (a): Gomes Varjão; Comarca: Diadema; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/10/2016; Data de registro: 10/10/2016).
Marco Aurélio Bezerra de Melo - Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Estácio. Professor da EMERJ.
Em 1991, por acréscimo trazido pela lei 8245, incluiu-se o inciso VII no rol de exceções da impenhorabilidade a que alude o artigo 3º da citada lei 8009/90. Trata-se da polêmica previsão da fiança locatícia imobiliária urbana, a indicar que nessa modalidade de garantia fidejussória, o fiador que tenha um único imóvel que lhe serve de única moradia poderá vir a perdê-lo se o locatário não cumprir com a sua obrigação perante o locador.
O Supremo Tribunal Federal, na pena do emérito Ministro Carlos Velloso[1], em decisão monocrática proferida no ano de 2005, reconheceu a inconstitucionalidade da lei por duplo fundamento: ofensa ao direito de moradia e à isonomia. Significativo se mostra o seguinte trecho da referida decisão:
“Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000. Essa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C. F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família Lei 8.009/90, art. 1º encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de 1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000.”
Na doutrina, importantes vozes defendem a tese da inconstitucionalidade da norma[2], mas o fato é que o entendimento majoritário na jurisprudência tem sido pela constitucionalidade.
No Supremo Tribunal Federal, a tese da inconstitucionalidade não fez eco. Após a citada decisão monocrática, o Pleno, ainda que por maioria, vencidos os Ministros Carlos Britto, Eros Grau e Celso de Mello, entendeu pela constitucionalidade da norma especial[3]. No Superior Tribunal de Justiça, a questão acabou sendo afetada pelo regime de recursos repetitivos e a egrégia Segunda Seção, na esteira de antigo verbete aprovado por maioria no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[4], entendeu que “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação.”. (Súmula 549, Segunda Seção, julgado em 14/10/2015, DJe 19/10/2015).
É óbvio que o fundamento jurídico da tese majoritária na jurisprudência está blindado pelos melhores propósitos de incrementar a oferta de imóveis para a locação, notadamente para fins residenciais, mas trata-se, em nosso modo de sentir, de um grande equívoco dos poderes legislativo e judiciário, animado por argumentos ad terrorem do fundamental mercado imobiliário, no sentido de que os locadores preferirão deixar os imóveis vazios ou que sem essa regra não haverá garantia na locação, aumentando ainda mais o déficit habitacional como se este tivesse como causa a penhorabilidade do imóvel de moradia do fiador.
Com todo respeito às opiniões em contrário, na legalidade constitucional que prima pela isonomia, direito à moradia em posição de supremacia em relação ao direito de crédito, tendo em vista a primazia da proteção da dignidade humana, não há espaço para tal construção jurídica.
Com relação ao direito à moradia a hipótese é de não recepção dessa parte da lei 8009/90 com a redação dada pela lei do inquilinato, pois há uma demonstração explícita do afastamento do direito social à moradia, particularizada a um contratante e em atenção ao interesse privatista do locador, desprestigiando os paradigmas da justiça social.
Entretanto, mais eloquente é a inconstitucionalidade por falta de isonomia. Como se justifica que o locatário seja titular do direito à moradia e tenha o seu único imóvel para fins de moradia impenhorável e o responsável que não tem o dever primário de pagamento do aluguel não possa se socorrer de tal direito? Sobre esse ponto, perverso tem se mostrado o entendimento da jurisprudência sobre a penhorabilidade do único imóvel de moradia do locatário na ação fundada no direito de sub-rogação. Sob o justificável argumento de que não se pode conferir interpretação extensiva a normas que restringem direitos[5], os Tribunais[6], em maioria, têm rechaçado essa legítima pretensão do fiador contra o locatário.
Oxalá que a óbvia submissão do atual Código de Processo Civil à Constituição Federal (art. 1º) não seja obstaculizada pela preocupação com a estabilidade da jurisprudência e essa triste tese seja superada (overruling) com as cautelas propugnadas pelos parágrafos segundo, terceiro e quarto do artigo 927 da mesma lei.
A ignomínia da penhora do imóvel de moradia do fiador que tanto desespero tem levado a diversas famílias desde a entrada em vigor da atual lei do inquilinato há de cessar ou então que confessemos a nossa incompetência em dotar a locação imobiliária urbana de uma efetiva garantia aos locadores.
Há muitas possibilidades no ordenamento jurídico, mas pode existir um descaso mental diante de uma jurisprudência tão confortável para os interesses do locador e até mesmo do locatário que não será alvejado pela penhora de eventual imóvel de moradia de sua titularidade.
Referências
[1] RE nº 352.940/SP, julg. Em 25/04/2005.
[2] Eliane Maria Barreiros Aina. O Fiador e o Direito à Moradia. Direito Fundamental à Moradia frente à Situação do Fiador Proprietário do Bem de Família. 2002, p. 123/124; Gildo dos Santos. Locação e Despejo. Comentários à lei 8.245/91. 4ª ed. 2001, p. 123/146; Flávio Tartuce. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 10ª ed. 2015, p. 486/493; Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Contratos em Espécie. 6ª ed. 2013, p. 629/632; Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Contratos. 5ª ed. 2015, p. 1043/1044.
[3] Fiador. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República (RE 407688, Relator (a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, DJ 06-10-2006 PP-00033 EMENT VOL-02250-05 PP-00880 RTJ VOL-00200-01 PP-00166 RJSP v. 55, n. 360, 2007, p. 129-147).
[4] Súmula nº 63: “Cabe a incidência de penhora sobre imóvel único do fiador de contrato de locação, Lei nº. 8009/90 (art. 3º, VII) e Lei nº. 8245/91.” Referência: Súmula da Jurisprudência Predominante nº. 2001.146.00005. Julgamento em 24/06/2002. Relator: Desembargador Paulo Ventura. Votação por maioria. Registro do Acórdão em 14/08/2003.
[5] Defendendo a possibilidade de interpretação extensiva para alcançar o imóvel de moradia do locatário: Gabriel Seijo Leal de Figueiredo. Contrato de Fiança. 2010, p. 179/181.
[6] Ação de regresso, decorrente de fiança concedida em contrato de locação, em fase de cumprimento de sentença. Não estando caracterizada nenhuma das hipóteses previstas no art. 3º, da Lei 8.009/90, que trata das exceções à regra da impenhorabilidade, e estando evidenciado que o imóvel constrito é bem de família do executado, o levantamento da penhora é medida que se impõe. Recurso provido. (Relator (a): Gomes Varjão; Comarca: Diadema; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/10/2016; Data de registro: 10/10/2016).
Marco Aurélio Bezerra de Melo - Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Estácio. Professor da EMERJ.
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