terça-feira, 10 de janeiro de 2017

MEDIDA PROVISÓRIA QUE CRIOU DIREITO REAL DE LAJE APRESENTA PROBLEMAS TÉCNICOS


A Medida Provisória 759, de 22 de dezembro de 2016, alterou o Código Civil para incluir um novo direito real: o direito real de laje. Trata-se de uma tentativa do legislador de regularizar aquilo que é conhecido popularmente como “puxadinho”, numa perspectiva de atender à finalidade da novidade legislativa de regularizar núcleos urbanos informais e de dar maior efetividade à função social da propriedade.

Antes de adentrar os aspectos materiais da nova legislação, é importante destacar que a espécie adotada não nos parece a mais adequada. É indubitável o profundo impacto social que referidas normas jurídicas causarão no cotidiano brasileiro, sendo ideal que tivesse havido um extenso e delicado debate sobre o tema. Ao invés disso, a medida provisória foi adotada no apagar das luzes, sem a participação de especialistas ou da população, provavelmente levando em consideração o frágil momento em que se encontra as instituições brasileiras.

Outro problema evidente de ter sido adotado por meio de medida provisória se encontra na possibilidade de esta não ser convertida em lei no prazo de 60 dias prorrogáveis por mais uma vez, a fazendo perder a eficácia, conforme o artigo 62, parágrafo 3º da Constituição Federal. Ainda que o Congresso Nacional venha a disciplinar em decreto legislativo as relações jurídicas decorrentes, é certo que não faltarão conflitos acerca daqueles que constituíram o direito real de laje ou estavam em processo de sua constituição, sobretudo se levarmos em conta a dificuldade que há no Brasil na correta aplicação do Direito Intertemporal[1].

Passando aos aspectos materiais, a medida provisória altera em seu artigo 25 o artigo 1.225 do Código Civil, inserindo o inciso XIII, para não deixar dúvidas de que a laje agora também pertence ao rol de direitos reais. Também insere o artigo 1.510-A, o qual tratará junto de seus oito parágrafos a sua regulamentação.

O caput do artigo 1.510-A define que o direito real de laje “consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”. Trata-se de conceito absurdamente atécnico, haja vista reduzir um direito a uma mera possibilidade. Na letra fria da lei, não se trata, portanto, de um direito com um “dever ser”, mas de um (sic) “poder ser”! Nestes termos, parece que, preenchidos os requisitos legais, pode ser que exista o direito real de laje ou não, dependendo da boa vontade de quem quer que seja que esteja analisando o caso concreto.

Pelo menos referido atecnicismo pode ser superado por um breve exercício hermenêutico, eliminando o sentido da expressão “possibilidade” como uma mera hipótese, mas como a própria existência do direito real de laje caso haja a coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, em que o proprietário cede a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. Parece-nos ser a alternativa para salvar essa falha redacional.

No parágrafo primeiro, contudo, encontramos outro problema técnico: o direito real de laje só será aplicável quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos. Como assim aplicável? O direito real de laje deve existir ou não e, a partir disso, produzir os devidos efeitos jurídicos. Nesse sentido, havendo a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos, o direito real de laje não existirá. Talvez haja uma veia parcialmente dworkiniana às avessas em quem redigiu o dispositivo, pois há coerência no erro: se o direito real de laje é uma possibilidade, ele pode ser aplicado ou não.

Em um terceiro atecnicismo, o parágrafo segundo trata da extensão do direito real de laje, afirmando que “contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário do imóvel original”. Inicialmente, a utilização do vocábulo “contemplar”, no caso, se mostra inteiramente equivocada. Afinal, a exploração do espaço aéreo e do subsolo é abrangida pelo direito de propriedade, em altura e profundidade úteis ao seu exercício (artigo 1.229 do Código Civil).

Em outras palavras, o proprietário do solo não possui direito de propriedade sobre o espaço aéreo ou subsolo, mas possui o direito de impedir que a sua utilização lhe traga algum dano. Sendo assim, a tutela jurídica é compreendida até aonde há utilidade e interesse ao proprietário no espaço aéreo e no subsolo, e não o seu direito de propriedade em si[2].

No momento em que o dispositivo diz que a laje contempla o espaço aéreo e o subsolo, está qualificando-o acima do próprio direito de propriedade, pois o estende além da mera tutela jurídica, invocando para si estes locais como intrínsecos a sua existência. Dessa maneira, novamente, há de se fazer uma leitura mais apurada, compreendendo que a tutela do direito real de laje compreende o espaço aéreo e o subsolo, naquilo que for útil e interessante ao beneficiário.

É importante salientar aqui que se trata de uma extensão dada à laje muito maior que à superfície, direito real outrora utilizado alternativamente para regularizar os “puxadinhos[3]”. O artigo 1.369, parágrafo único, do Código Civil somente autorizava obra no subsolo caso fosse inerente ao objeto da concessão.

Outro problema não esclarecido é a abrangência do direito real de laje ao subsolo de terrenos públicos. Tratando-se de imóvel público, é vedada a sua aquisição por usucapião (artigos 183, parágrafo terceiro e 191, parágrafo único da Constituição Federal), sendo sua ocupação sem a devida autorização pelo Poder Público nas hipóteses legais ilícita. Era necessário, assim, que a lei deixasse claro que a ocupação ilegal poderá ser regularizada por meio da Regularização Fundiária Urbana (Reurb) prevista na própria Medida Provisória 759 (artigo 26). Por isso que, pela mera leitura do parágrafo segundo do artigo 1.510-A do Código Civil sem a leitura da medida provisória, há uma aparente inconstitucionalidade.

O direito real de laje só pode ser constituído caso possua isolamento funcional e acesso independente, tornando-se a referida unidade imobiliária autônoma (artigo 1.510-A, parágrafo terceiro do Código Civil). Tais características acabam por diferenciá-lo do condomínio edilício, haja vista que este possui áreas comuns, sendo construído já com a finalidade de servir às unidades autônomas para fins residenciais ou não.

Já a laje não possui a intenção original de haver unidades imobiliárias autônomas, não tem áreas comuns e não há atribuição de frações ideais aos titulares ou participação proporcional em áreas já edificadas (artigo 1.510-A, parágrafo sexto do Código Civil). Somente se assemelham na necessidade de ser aberta matrícula própria para cada uma das unidades. O dispositivo se preocupa em dedicar o parágrafo sétimo, inclusive, somente para destacar que são institutos distintos.

Como não poderia deixar de ser, o parágrafo quarto dispõe que o beneficiário deverá responder pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade. Trata-se de regra basilar presente inclusive no direito de superfície que, como dito alhures, era até agora utilizado para regularizar os “puxadinhos” (artigo 1.371 do Código Civil).

O parágrafo quinto delimita que somente poderão ser alienadas e gravadas livremente por seus titulares as unidades imobiliárias que possuam isolamento funcional, acesso independente e matrícula própria. Não poderá o adquirente, contudo, instituir sobrelevações sucessivas.

Por fim, o parágrafo oitavo permite que os municípios e o Distrito Federal disponham sobre posturas edilícias e urbanísticas associadas ao direito real de laje, tratando, por exemplo, do formato e especificação técnicas daquilo a ser construído.

Ainda que tenha sido boa a intenção de regularizar os “puxadinhos”, a legislação concernente não parece ter sido tecnicamente das melhores. Trata-se sim, sem sombra de dúvida, de um problema urbano e, sobretudo, social que merece a atenção do Poder Público. Todavia, a urgência não pode ser motivo de negligência à técnica, sob o risco de se criar novas dificuldades.

Talvez fosse interessante o aprimoramento do próprio direito de superfície, esclarecendo na própria lei haver o direito de sobrelevação e a partir disso desenvolver os devidos efeitos jurídicos. Optou-se, contudo, pela criação de um novo direito real, com novos paradigmas a serem enfrentados. 

[1] Conforme já denunciamos anteriormente: MARTINS, José Eduardo Figueiredo de Andrade. Fundamentos do direito intertemporal. Revista Sapere Aude, ano 5, vol. 1, agosto de 2016. p. 133-148.

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil : vol. IV : Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 101.

[3] Trata-se de interpretação estruturada a partir do direito suíço que permite no direito a superfície a sobrelevação, isto é, de o proprietário superficiário construir ou conceder a um terceiro a construção sobre a superfície.
Referida ideia, inclusive, foi adotada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo como tese institucional: “Tese III - É lícito ao superficiário a concessão do direito de construir sobre a sua propriedade superficiária – direito de laje”. Igualmente, a VI Jornada de Direito Civil do STJ consolidou o enunciado 568: “O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística”. Um dos problemas, todavia, consiste na obrigatoriedade de prazo determinado para o direito de superfície (artigo 1.374 do Código Civil).

José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins - Professor do curso de Direito da PUC-Campinas, mestre e doutorando em Direito Civil pela USP e especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP.
Fonte: Revista Consultor Jurídico

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