Registro do memorial de incorporação demonstra transparência e dá segurança ao comprador sobre intenção da construtora de entregar imóvel vendido na planta
Obrigatório por lei, o memorial de incorporação, documento que deve ser elaborado antes mesmo do lançamento das obras, muitas vezes é negligenciado pelas construtoras, que não providenciam seu registro em cartório de imóveis antes de comercializar as unidades.
Isso acontece, na maioria dos casos, devido a irregularidades na documentação da construtora. Afinal, o registro do memorial de incorporação em cartório - como obriga a lei brasileira no 4.591/1964, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias -, exige que a construtora apresente documentos que comprovem idoneidade e condições financeiras mínimas, assegurando que o empreendimento será entregue.
Nesse contexto, "a ausência de documentos, assim como a existência de ações na justiça ou débitos de impostos, podem fazer com que o cartório negue o registro", explica Leonardo Roscoe Bessa, titular da Segunda Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público do Distrito Federal.
Exemplo do que pode acontecer é a existência de pendências na certidão negativa de débitos com a previdência social. Caso existam dívidas, a empresa pode ter seus bens penhorados a qualquer momento. Por isso, o titular do cartório de imóveis tem o poder de negar o registro do memorial enquanto o imbróglio financeiro não for resolvido, visando dar garantias aos futuros compradores do imóvel.
Brechas na fiscalização
Para evitar o risco de reprovação em algum desses aspectos, algumas construtoras aproveitam a inexistência de órgãos específicos de fiscalização e, mesmo sem o memorial de incorporação, prosseguem com as obras e vendas de unidades ainda na planta. A brecha é apontada pelo advogado especialista em direito imobiliário Hamilton Quirino. Segundo ele, a responsabilidade desse controle fica a cargo do Ministério Público e dos órgãos de defesa do consumidor, acontecendo, geralmente, apenas mediante denúncias.
Além de ser crime, a multa por falta de memorial de incorporação é alta: chega a 50% do valor pago pelo imóvel em favor dos consumidores. No Brasil, existem alguns casos de condenação, embora nem sempre o consumidor lesado busque seus direitos. "Na maioria dos casos, a construtora não registrou o memorial de incorporação, porque estava quebrando, e documentos comprovariam isso. Então, entrar com ação na justiça traz pouco benefício. Além das despesas com custas do processo, a ação pode não ter finalidade", explica Quirino.
A construtora e incorporadora Encol, que faliu em 1999 e lesou 42 mil famílias ao deixar 712 obras inacabadas em 62 cidades brasileiras, lançou muitos empreendimentos sem registro do memorial de incorporação, porque não tinha como comprovar idoneidade ou fornecer garantias financeiras de que entregaria as edificações.
Quirino, que assessorou os proprietários de unidades da Encol na regularização jurídica dos condomínios e na retomada das obras, ressalta que apenas no Rio de Janeiro, de 40 obras da empresa falida que foram assumidas por outras incorporadoras, cerca de 20 não possuíam registro do memorial. "A empresa não possuía as certidões negativas necessárias para o registro do documento, já que devia ao INSS e à Receita Federal", explica.
O caso Encol prova que o consumidor deve ficar atento ao comprar imóvel na planta. Antes de formalizar o negócio, é imprescindível a consulta ao memorial de incorporação para certificar-se que a construtora assumiu o compromisso de entrega do empreendimento.
Prevenção sem garantia
"A existência do memorial não é garantia absoluta de entrega do imóvel, mas é uma consulta preventiva que dá sinais positivos da viabilidade da construção", afirma José Geraldo Tardin, presidente do Ibedec (Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo).
Em Brasília, Tardin testemunhou dois casos de construtoras que venderam imóvel na planta sem registro do memorial. No primeiro, uma consumidora adquiriu um apartamento para investimento e, ao revender, teve o negócio negado pela Caixa Econômica Federal, que seria o agente financiador do comprador e que não formaliza contratos de compra e venda se o imóvel não tiver memorial de incorporação.
No segundo caso, um dentista adquiriu uma sala comercial de um empreendimento ainda na planta, e, ao solicitar na administração municipal o alvará de funcionamento do consultório, teve o pedido negado, porque o prédio não possuía memorial.
Os dois proprietários ingressaram com ação na justiça e obtiveram ganho de causa. O TJDFT (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios) condenou a construtora a rescindir o contrato de compra e venda sem custos para as vítimas, além do pagamento da multa de 50% do valor do imóvel.
Descrição do memorial
O memorial de incorporação tem o objetivo de evitar fraudes e dar garantias ao comprador. Afinal, ao comprar um imóvel que não começou a ser construído, o consumidor adianta boa parte do capital para fechar o negócio, sem garantia de que a obra será concluída, explica o promotor Leonardo Bessa.
Dessa maneira, o memorial, a ser registrado no cartório de imóveis da região da construção, é composto de 15 documentos, entre os quais certidões negativas de débitos com a Receita Federal e Previdência Social; prova de propriedade do terreno; projeto de construção do empreendimento devidamente aprovado junto ao órgão competente; e discriminação detalhada do acabamento e material que serão utilizados.
"A construtora descreve o imóvel no memorial, firma em cartório e fica obrigada a entregar fielmente o que está afirmando. A descrição, portanto, deve ser perfeitamente igual à planta e ao projeto aprovado", explica Alexandre Barrionovo, diretor jurídico e de relacionamento da construtora Trisul.
Se todos os documentos estiverem de acordo com o requisitado pelo cartório, o órgão tem, conforme estabelecido pela lei, prazo de 30 dias para registrar o memorial de incorporação. De acordo com o 2o Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, o documento costuma ficar pronto em cinco dias úteis.
Embora deva ser registrado antes do início das obras, ele pode ser modificado a qualquer tempo. "Se o projeto inicial previa 20 andares e a construtora optou por fazer 19, a mudança tem que ser comunicada e aprovada pela prefeitura", afirma Barrionovo.
Já Tardin avalia que um dos documentos mais importantes do dossiê é o memorial descritivo, que detalha tudo que será utilizado na obra. "A descrição permite ao comprador ter ideia da qualidade dos bens empregados na obra e proíbe a troca por material de baixa qualidade sem prévia notificação ao proprietário", diz.
O memorial é público e fica disponível para consulta no cartório. Para facilitar a consulta, a lei obriga que toda publicidade referente ao empreendimento contenha o número do registro do memorial de incorporação e o cartório onde foi registrado, explica o advogado especialista em direito imobiliário, Marcelo Tapai. "Há cartórios que disponibilizam pela internet a matrícula do imóvel, onde está anexado o memorial", afirma.
Omissão suspeita
Se a publicidade não informar o número do memorial, o consumidor deve desconfiar de irregularidades na obra. Em Brasília, os jornais passaram a ser obrigados a vincular este tipo de anúncio somente com o número do memorial, sob pena de responsabilidade solidária.
A existência do memorial de incorporação assegura a regularidade jurídica do empreendimento, segundo a advogada do escritório Marsaioli & Marsaioli Advogados Associados, Gláucia Helena Rodrigues de Meneses. A partir do registro deste documento, os compradores dos imóveis podem levar para registro no cartório de imóveis seus contratos de promessa de compra e venda, ou de compra e venda definitiva. "Essa é a maior garantia, porque o comprador torna-se titular de um direito real, cuja garantia de cumprimento limita-se à idoneidade e solvência da empresa incorporadora", afirma.
A existência do memorial não confere, portanto, a garantia absoluta de que o empreendimento será construído e entregue. Isso dependerá das condições financeiras da empresa construtora. "O memorial apenas traz a certeza de que o imóvel encontra-se regularizado e existe juridicamente. Os riscos envolvendo pagamento antecipado por algo que se espera receber futuramente sempre existirão. São inúmeros os exemplos de obras regulares em termos de registro da incorporação, mas que não chegaram ao desfecho previsto", ressalta Paulo Hugo Scherer, assessor jurídico do Creci-SP (Conselho Regional dos Corretores de Imóveis).
Conforme previsto no artigo 66 da lei no 4591, o incorporador pratica crime quando negocia unidade imobiliária sem prévio registro do memorial de incorporação. Por isso, ausente o documento, o comprador pode requerer cancelamento do contrato de compra e venda, além de pleitear multa de 50% do valor do imóvel.
Depois de pronto, o imóvel que não possui o memorial de incorporação registrado também enfrenta problemas. Segundo Tardin, sem o documento não pode ser constituído condomínio, portanto, o empreendimento não existe para a sociedade, e o proprietário não consegue vender o imóvel financiado.
Como registrar o memorial de incorporação
Reunidos os documentos abaixo discriminados, os mesmos devem ser levados para análise do cartório de registro de imóveis referente à área em que se encontra o imóvel. Daí, o órgão terá até 30 dias para fazer o registro do documento.
Depois de registrado, o memorial de incorporação será anexado à matricula do empreendimento, ficando disponível para consulta pública. O número do memorial de incorporação, a ser fornecido pelo cartório, deverá ser informado no contrato de compra e venda das unidades imobiliárias, bem como em qualquer ação de marketing que a construtora fizer - jornais, revistas, rádio, televisão, Internet e outdoors.
Confira quais são os documentos necessários para registrar o memorial de incorporação:
- Título de propriedade de terreno, ou de promessa, irrevogável e irretratável, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta do qual conste cláusula de imissão na posse do imóvel;
- Certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativos ao imóvel, aos alienantes do terreno e ao incorporador;
- Histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidão dos respectivos registros;
- Projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes;
- Cálculo das áreas das edificações, discriminando, além da global, a das partes comuns, e indicando, para cada tipo de unidade, a respectiva metragern de área construída;
- Certidão negativa de débito com a Previdência Social, quando o titular de direitos sobre o terreno for responsável pela arrecadação das respectivas contribuições;
- Memorial descritivo das especificações da obra projetada;
- Avaliação do custo global da obra, atualizada à data do arquivamento, discriminando-se, também, o custo de construção de cada unidade, devidamente autenticada pelo profissional responsável pela obra;
- Discriminação das frações ideais de terreno com as unidades autônomas que a elas corresponderão;
- Minuta da futura convenção de condomínio que regerá a edificação ou o conjunto de edificações;
- Declaração que defina a parcela do preço;
- Certidão do instrumento público de mandato;
- Declaração expressa em que se fixe, se houver, prazo de carência;
- Atestado de idoneidade financeira, fornecido por estabelecimento de crédito que funcione no Brasil há mais de cinco anos;
- Declaração, acompanhada de plantas elucidativas, sobre o número de veículos que a garagem comporta e os locais destinados à guarda dos mesmos.
Fonte: lei no 4.591, de 16 de dezembro de 1964
Ana Carolina Lourençon / Revista Construção Mercado
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