O artigo 1332 do Novo Código Civil, assim como artigo 7º. da Lei 4591/64, não estabeleceu, de maneira expressa, se para a instituição do condomínio edilício (tradicionalmente denominado de propriedade horizontal) seria necessária a utilização de instrumento público.
A opinião dominante na doutrina e na jurisprudência admitia a utilização do instrumento particular para a finalidade antes mencionada.
Este, por exemplo, o posicionamento do Conselho da Magistratura do Estado de São Paulo, em diversos julgados, cristalizado, inclusive, nas Normas de Serviço da Corregedoria de Justiça daquele estado, no seu capítulo XX, item 211, cujo teor é o seguinte:
“A instituição e especificação de condomínio serão registrados mediante apresentação do respectivo instrumento (público ou particular), que caracterize e identifique as unidades autônomas, acompanhadas do projeto aprovado e do habite-se”.
Colhe-se, por sua vez, na doutrina a lição de Mário Pazutti Mezzari (2), asseverando que:
“A lei não exigiu forma especial, sendo válida a afirmativa de que tanto se pode instrumentalizar a instituição em escritura pública como em escrito particular”
Veja-se, ainda, a lição de Pedro Elias Avvad (3):
“Não existindo, na lei, uma forma especial prescrita, não vemos como indispensável o instrumento público, salvo se o ato de instituição do condomínio ocorrer em razão de transferência de direitos sobre a propriedade como, por exemplo, uma doação de unidades a diversas pessoas. A instituição do condomínio, tal qual sua extinção, tem caráter, simplesmente declaratório, não incidindo, portanto, a regra do artigo 108 do Código Civil, que prevê a escritura pública para os negócios jurídicos que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, sequer se modificando a natureza jurídica do direito, salvo quando alienadas as unidades”.
Com a edição do Novo Código Civil a questão não pode ser tida como pacífica, sendo, ao revés, necessária a mudança do entendimento anteriormente sedimentado, como se pretende demonstrar.
Propriedade exclusiva e condominial como direito real
A propriedade é um direito real por excelência, uma vez que é o mais extenso daqueles enumerados no artigo 1228 do Novo Código Civil.
A legislação vigente não definiu, a exemplo do que fizera no artigo 524 do Código de 1916, este instituto jurídico, limitando-se a enumerar os poderes inerentes ao domínio, quais sejam, o de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa.
A propriedade, como regra, é um direito subjetivo exercido com exclusividade pelo seu titular, que poderá valer-se dos poderes indicados no artigo 1228 do Código Civil em vigor.
Admite-se, todavia, que uma única coisa possa ser objeto de direito real pertencente a várias pessoas, caracterizando, assim, o condomínio.
Diversas teorias existem (4) para explicar essa forma especial de co-propriedade, não sendo, entretanto, oportuno apreciá-las nos estreitos limites deste artigo.
O certo é que o condomínio, seja ele ordinário, seja ele edilício ou, ainda, outra nova forma de propriedade que venha a surgir em função das dinâmicas social e econômica, é um tipo de propriedade com feição distinta do modelo tradicional de domínio exclusivo.
Apesar de se encartarem no conceito genérico de propriedade, tanto o domínio exclusivo, quanto o compartilhado estão sujeitos a um regramento jurídico peculiar.
Modificação do direito real de propriedade. Aplicação do artigo 108 do novo código civil
Como já observado com absoluta propriedade, não é a simples existência de uma edificação suficiente para caracterizar a propriedade horizontal (condomínio edilício), sendo necessária uma manifestação de vontade que submeta a propriedade ao regime da Lei 4591/64.(5)
Nesse documento que contém a manifestação de vontade criadora do condomínio há, inequivocamente, uma alteração no direito real de propriedade, uma vez que se verifica a transferência de um regime jurídico para outro.
Logo, inexistindo regra clara e específica em contrário, é de aplicar-se a regra geral do artigo 108 do Novo Código Civil, exigindo-se escritura pública para que a propriedade saia do regime comum (propriedade exclusiva ou condomínio voluntário) para o regime do condomínio edilício.
O artigo 108 do Novo Código Civil estabelece:
“Art. 108 Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.”
Embora sejam duas faces de uma mesma moeda, constituem a propriedade exclusiva e a condominial institutos substancialmente distintos, com peculiaridades inerentes aos diferentes regimes jurídicos.
Não é de se aceitar a tese de que a manifestação de vontade que submete a propriedade ao regime do condomínio edilício é meramente declaratória, como faz com habilidade Pedro Avvad, na lição já colacionada, uma vez que ela opera substancial mudança no seu estatuto jurídico.
Tal vontade não se limita a declarar um fato, mas sujeita a coisa a novos parâmetros legais, de sorte que incide o disposto no artigo 108 do Código Civil.
Invoque-se, por analogia, o conceito de sentença constitutiva do direito processual, que é aquela que, além de conter uma carga declaratória, inerente a toda sentença, constitui uma nova situação jurídica.
O proprietário, ao declarar que deseja submeter seu imóvel ao regime da propriedade edilícia, inova no regime legal, criando restrições e direitos para o titular de cada unidade autônoma, residindo aí o seu caráter constitutivo.
Como o artigo 134, II, do Código Civil de 1916, somente exigia escritura pública nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóvel acima de cinqüenta mil cruzeiros, era sustentável a tese de que tal norma não se aplicava á hipótese do artigo 7º da Lei 4591 (ato constitutivo da propriedade horizontal)
É que seria possível argumentar, ante ao não posicionamento explícito do legislador, que não se estava constituindo um novo direito real, mas simplesmente modificando um outro já existente.
Hoje não mais se sustenta tal entendimento. É que o artigo 108 do Novo Código Civil diz, expressamente, que a escritura pública é imprescindível para atos que modifiquem o direito real.
O fato de se exteriorizar sob a mesma denominação jurídica – direito de propriedade – não significa que sejam iguais em seus conteúdos.
É que não mais se pode falar em direito de propriedade como um direito de conteúdo único, como ensina José Afonso da Silva (6):
“A constituição, aliás, consagra a tese que se desenvolveu especialmente na doutrina italiana, segundo a qual a propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares, de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em propriedades (...) Pois, como alertou Pugliati, há bastante tempo: no estado das concepções atuais e da disciplina positiva do instituto, não se pode falar de um só tipo, mas se deve falar de tipos diversos de propriedade, cada um dos quais assume um aspecto característico”. Cada qual desses tipos pode estar sujeito, e por regra estará, a uma disciplina particular (...)”.
No mesmo sentido, veja-se a lição de Perlingieri (7):
(...) Se os estatutos proprietários são diversos em relação aos objetos, aos sujeitos, às destinações e mesmo aos patrimônios e às circunstâncias concretas, não existe um conteúdo mínimo da propriedade; existem sim, os conteúdos mínimos de cada estatuto proprietário que é necessário individuar através de uma análise atenta”.
Ademais, se realmente o legislador admitisse o uso do instrumento particular teria estabelecido isto de forma expressa no artigo 1332 do Novo Código Civil, a exemplo do que fez em relação à convenção condominial no parágrafo 1º do artigo 1334 do mesmo diploma legal.
Ressalte-se, por fim, que a questão em foco também é objeto de controvérsia nas legislações alienígenas, como informa Frederico Viegas em excelente trabalho sobre o tema, invocando a lição de Antunes Varela, a seguir transcrita. (8)
“Embora não revista a natureza de um acto de disposição, o negócio de constituição da propriedade horizontal opera, no entanto, a modificação do estatuto real a que o imóvel se encontrava sujeito, extinguindo o direito de propriedade normal e constituindo, em sua substituição, direito real novo. Deve, por isso, entender-se, em obediência ao disposto na alínea a do artigo 89 do Código do Notariado, que se trata de um negócio sujeito à escritura pública..”
Assim, à vista do exposto, conclui-se que a migração do regime da propriedade exclusiva ou em condomínio ordinário para o regime do condomínio edilício (propriedade horizontal) constitui, inequivocamente, alteração do direito real anteriormente existente, sendo necessária, assim, a utilização da escritura pública, na forma do artigo 108 do Novo Código Civil.
Notas
(1) Titular do 1º Ofício de Justiça de Volta Redonda-RJ. Ex-Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro.
(2) Mário Pazutti Mezzari. Condomínio e Incorporação no Registro de Imóveis. Editora Norton. 2ª edição, página 70.
(3) Pedro Elias Avvad. Condomínio em Edificações no Novo Código Civil. Editora Renovar, 1ª edição, página 57.
(4) Em relação ao condomínio comum existem, dentre outras, a teoria individualista e a teoria coletivista. Quanto ao condomínio edilício existem, entre outras, a teoria do direito de superfície, teoria da servidão, teoria da sociedade imobiliária, teorias da universalidade de fato e universalidade de direito.
(5) Marco Aurélio S. Viana. Manual do Condomínio e das Incorporações Imobiliárias, Editora Aide, 2ª edição, página 3.
(6) José Afonso da Silva. Direito Urbanístico Brasileiro. Editora Malheiros. 2ª edição. Página 64.
(7) Pietro Perlingieri. Perfis de Direito Civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco, Editor Renovar.
(8) Frederico Henrique Viegas Lima. A Instituição de Condomínio em Edifício (uma análise do artigo 7º da Lei 4.591/64). Revista de Direito Imobiliário. Editora Revista dos Tribunais. Páginas 72/82. Embora sustente tese contrária, na vigência do antigo ordenamento, o autor informa que na Itália se exige instrumento público para a instituição do Condomínio. Informa também que no direito espanhol a maioria da doutrina considera indispensável a escritura pública para tal desiderato, invocando farta doutrina.
Autor: Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho (1)
Fonte: IRIB-Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
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