quarta-feira, 21 de maio de 2014

OS TERRENOS DE MARINHA E O DIREITO DE SUPERFÍCIE


Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.627/2013, do Poder Executivo, que visa corrigir imperfeições na legislação relativa aos terrenos de marinha e acrescidos, entre as quais avulta a inconstitucionalidade do art. 11 do Decreto-lei nº 9.760/1946, que viola o princípio do devido processo legal ao prever que, nos procedimentos de demarcação das linhas do preamar médio do ano de 1831, os interessados serão notificados por edital, e não pessoalmente, (ADI nº 4.267-PE).

Embora se proponha a corrigir o vício da inconstitucionalidade, o Projeto está desalinhado em relação aos princípios e preceitos da Constituição de 1988 relacionados à propriedade e à posse, já consagradas no Estatuto da Cidade e no Código Civil.

Uma das situações que reclama urgente atualização da legislação é o regime de ocupação dos terrenos de marinha, pelo qual a União confere ao ocupante apenas posse precária, passível de ser resolvida a qualquer tempo por ato administrativo discricionário, situação distinta do regime de aforamento (ou enfiteuse), que confere ao ocupante o domínio útil, direito real perpétuo do terreno.

As normas sobre ocupação ainda se sustentam na concepção original formulada na primeira metade do século passado, e precisam ser adaptadas aos princípios constitucionais que priorizam a posse produtiva em face da inércia do titular do domínio.

É necessário que, enquanto não concedido pela União o aforamento, seja conferido aos ocupantes direito compatível com a dignidade da pessoa humana, como exigido pelo art. 49 do ADCT, que lhes assegura a outorga de direitos (e não posses precária) mediante celebração de contrato, até que este lhes seja outorgado o aforamento.1

Esse procedimento, ademais, deve atender à exigência constitucional de razoável duração do procedimento e de celeridade de sua tramitação, inclusive no âmbito administrativo (Constituição da República, inciso LXXVIII do art. 5º).

A figura jurídica que melhor se ajusta a esse comando constitucional é a concessão de direito de superfície, pela qual a União concederia aos ocupantes direito real sobre a construção, ou plantação, por determinado prazo, sem lhes conceder direito sobre o solo.

A aplicação prática dessa figura jurídica atende ao interesse do proprietário de terreno que, pretendendo tirar proveito econômico da sua propriedade sem perdê-la, obtém renda correspondente ao preço estipulado para a concessão. Atende, igualmente, ao interesse do concessionário, que se torna proprietário da construção, ou plantação, sem ter que desembolsar o preço do terreno, pois paga ao proprietário do solo apenas a retribuição pelo uso temporário do solo.

A lei permite a concessão de superfície sobre os terrenos de marinha (Código Civil, art. 1.377); quando empregado como instrumento de política urbana, aplicam-se a essa concessão os arts. 21 e seguintes da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).2

Está a União, portanto, autorizada por lei a conceder direito de superfície aos ocupantes dos terrenos de marinha. Ao fazê-lo, a União nada perde; apenas qualifica como direito real temporário a titularidade do ocupante sobre a construção, mantendo-se o terreno no domínio pleno da União. Por essa forma, a União cumpriria a um só tempo o princípio da função social da propriedade e o disposto no § 2º do art. 49 do ADCT.

A adequação da concessão da superfície em relação aos terrenos sob regime de ocupação é evidente, pois importa apenas na ratificação do reconhecimento do direito do ocupante sobre o valor da construção (Decreto-lei nº 2.398/1987, art. 3º, e Lei nº 9.636/1997, arts. 7º, § 7º, 13, 15 e seus parágrafos e 17), a ele agregando a qualificação de direito real. Atende, igualmente, à finalidade social e econômica da legislação, isto é, a finalidade de “tornar o imóvel produtivo” e “radicar-se o indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública” (Decreto-lei nº 9.760/1946, art. 64).

A qualificação da superfície como direito real habilita o ocupante-concessionário à constituição de garantia real sobre esse direito para obtenção de financiamento para construção, que, como se sabe, é elemento catalisador do adequado aproveitamento social ou econômico do solo.

Importa salientar que a concessão do direito de superfície importa na criação patrimônios distintos, formados separadamente pelos direitos e obrigações vinculados à propriedade do solo e pelo conjunto de direitos vinculados à propriedade da construção ou da plantação. Esses patrimônios são necessariamente incomunicáveis, de modo que, de uma parte, o titular do solo só é responsável pelas obrigações e dívidas a ele relacionadas e, de outra parte, o concessionário responde somente pelas obrigações e dívidas vinculadas à construção ou à plantação, conforme seja o caso.3

É nesse sentido o Enunciado nº 321, aprovado por unanimidade pela IV Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Jurídicos do Conselho da Justiça Federal (CEJ do CJF).4

Assim, o passivo de cada um desses patrimônios é suportado apenas pelo seu correspondente ativo, tal como preconiza o art. 807 do Projeto de Lei do Código de Processo Civil (PL 6025/2005), aprovado pela Câmara dos Deputados em 26 de março de 2014.5.

Disso resulta que qualquer dos titulares (do solo ou da construção, ou plantação) pode alienar ou onerar seu direito sem comprometer a propriedade do outro titular, como reconhecido no Enunciado nº 249, aprovado por unanimidade na III Jornada de Direito Civil.6

Dada essa caracterização, fica claro que a concessão de direito de superfície é modalidade de negócio jurídico adequada ao disposto no § 2º do art. 49 do ADCT, seja porque, ao outorgá-la, a União conserva o domínio pleno do terreno no seu patrimônio, seja porque atribui aos ocupantes direito real temporário sobre a construção, com a segurança jurídica necessária a que deem aos terrenos de marinha utilidade compatível com sua função social e econômica, potencializando sua utilização com recursos de financiamento.

É, portanto, oportuna e conveniente a regulamentação da concessão de direito de superfície em relação aos terrenos de marinha, no contexto do Projeto de Lei nº 5.627/2013, visando dar consequência prática à garantia instituída pelo § 2º do art. 49 do ADCT e aos princípios constitucionais e ela relacionados, notadamente o da dignidade da pessoa humana e o da função social da propriedade.

Notas:

1 Constituição da República – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 49. A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos. 
§ 1º Quando não existir cláusula contratual, serão adotados os critérios e bases hoje vigentes na legislação especial dos imóveis da União. 
§ 2º Os direitos dos atuais ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato.
§ 3º A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.”

2 Código Civil: “Art. 1.377. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que for diversamente disciplinado em lei especial.”

3 Tratamos da matéria em nosso Direitos Reais, cit., p. 168.

4 Enunciado nº 321: “Os direitos e obrigações vinculados ao terreno e, bem assim, aqueles vinculados à construção ou à plantação formam patrimônios distintos e autônomos, respondendo cada um dos seus titulares exclusivamente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as fiscais decorrentes do imóvel.” 

5 Projeto de Lei do Código de Processo Civil (PLC 6025/2005): “Art. 807. Se a execução tiver por objeto obrigação de que seja sujeito passivo o proprietário de terreno submetido ao regime do direito de superfície, ou o superficiário, responderá pela dívida, exclusivamente, o direito real do qual é titular o executado, recaindo a penhora ou outros atos de constrição exclusivamente sobre o terreno, no primeiro caso, ou sobre a construção ou plantação, no segundo caso. Parágrafo único. Os atos de constrição a que se refere o caput serão averbados separadamente na matrícula do imóvel, no Registro de Imóveis, com a identificação do executado, do valor do crédito e do objeto sobre o qual recai o gravame, devendo o Oficial destacar o bem que responde pela dívida, se o terreno ou a construção ou a plantação, de modo a assegurar a publicidade da responsabilidade patrimonial de cada um deles pelas dívidas e obrigações que a eles estão vinculadas.”

6 Enunciado nº 249: “Art. 1.369. A propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e garantia, cujo prazo não exceda a duração da concessão da superfície, não se lhe aplicando o art. 1.474.”

Melhim Namem Chalhub - Advogado no Rio de Janeiro. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Autor dos livros Direitos reais (2. ed, RT, 2014), Alienação Fiduciária, Incorporação Imobiliária e Mercado de Capitais: Estudos e Pareceres (2013, Editora Renovar), Negócio Fiduciário (4. ed., 2009, Editora Renovar) e Da Incorporação Imobiliária (3. ed., 2010, Editora Renovar), entre outros. 

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