segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A CERTIDÃO DE FEITOS AJUIZADOS GARANTE A SEGURANÇA JURÍDICA E A BOA-FÉ DOS ADQUIRENTES DE IMÓVEIS


Tornou-se comum a utilização de factoides jurídico, notadamente estampados em Medidas Provisórias, depois convertidas em lei sem o menor critério, para anunciar “novidades” que não existem e representam, na verdade, apenas a ratificação daquilo que a jurisprudência construiu e o sistema já prevê. Refiro-me à Medida provisória 656, de 7 de outubro de 2014 convertida na Lei 13.097/2015, que, nos arts. 54 a 56 (arts. 10 a 12 da MP), apenas ratifica aquilo que há muito se entende em razão da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça.

Eis o teor do seu art. 54:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil [atual art. 828]; III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil [atuais arts. 792, IV, e 844].

Alardeou-se, precipitadamente, que a partir dela o adquirente não precisaria mais se preocupar, a não ser com a verificação da matrícula. Pior. Há vozes que sustentaram a boataria jurídica fomentada pela sociedade da informação, desinformando em verdade e anunciando aos quatro ventos que “agora, com a lei, não é mais necessário pesquisar o vendedor do imóvel” (sic). Não é definitivamente assim ou tão simples quanto parece e demonstrarei os motivos da minha ilação.

Posso adquirir tranquilamente um imóvel se não houver penhora, arresto, sequestro ou qualquer pendência registrada ou averbada na matrícula?

Definitivamente não. A par de o art. 54 da Lei 13.097/2015 estabelecer a eficácia dos negócios jurídicos imobiliários sem que haja qualquer constrição ou gravame na matrícula, essa presunção, como já decorria do sistema consolidado na Súmula 375 do STJ, é relativa.

Por outras palavras, evidentemente – e não haveria necessidade da MP para isso –, se houver registro ou averbação de gravame, a presunção de ineficácia da aquisição ou recebimento de direitos sobre o imóvel em face de ações reais, dívidas e restrições administrativas é absoluta, ou seja, não admitirá qualquer prova em sentido contrário. Todavia, se não houver o registro, não significa, automaticamente, que o adquirente está livre tanto da fraude contra credores quanto da fraude à execução.

Não havendo registro de qualquer pendência, a conclusão evidente, evidentíssima, aliás, é que o ônus da prova de conhecimento do gravame ou constrição se transfere para o credor ou prejudicado. Isso significa que se presume, de forma relativa, a higidez da transferência, modificação ou extinção do direito sobre o imóvel se não houver registro ou averbação do grava-me ou constrição, mas não significa que não tenha havido fraude contra credores ou fraude à execução. Se não houver registro ou averbação de gravame, a eventual fraude será objeto de verificação fática, caso a caso, pela demonstração, pelo credor ou pelo prejudicado, da má-fé do adquirente.

Essa é a conclusão que se extrai do parágrafo único do art. 54 da Lei 13.097/2015, segundo o qual “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel”.

Portanto, se – e percebam que o condicionante é importante – o adquirente estiver de boa-fé ao operar a aquisição ou o recebimento de garantia imobiliária, a ele não poderão ser opostas “situações jurídicas não constantes da matrícula”, ou seja, ações, penhoras, arrestos etc. Contudo – e aí está a confusão de muitos –, não significa que, não havendo o registro ou averbação de gravames ou constrições na matrícula, o sistema prestigie o negócio e beneficie o terceiro que haja procedido com má-fé. Seria até absurdo pensar o contrário.

Posso exemplificar: imaginem alguém que adquira imóvel de pessoa que, a par de não ter, em face do seu imóvel, qualquer gravame registrado ou averbado, responde por dívidas ajuizadas, possui títulos protestados e assim por diante na mesma comarca da situação do imóvel. O adquirente poderá ser considerado “de boa-fé” nessa situação? Evidentemente que não, de tal sorte que haverá a fraude à execução em relação às ações já ajuizadas e a fraude contra credores em relação àquelas não ajuizadas, até em virtude da interpretação correta do parágrafo único do art. 54 da Lei 13.097/2015. A única diferença é que, nesses casos – de ausência de registro ou averbação do gravame ou constrição –, competirá ao credor demonstrar a má-fé do adquirente, o consilium fraudis, posto que em favor do adquirente do imóvel ou do recebedor da garantia consistente em imóvel militará a presunção – relativa – de boa-fé.

Outro exemplo pode ser dado: pela leitura do art. 54, I, da Lei 13.097/2015, exige-se o registro da citação de ações reais ou reipersecutórias (que buscam o bem). Imaginem, então, a falsificação de documentos e a outorga de escritura com documentos falsos do vendedor que propõe, em face do adquirente, ação anulatória da escritura. O adquirente poderia se furtar da citação, vender o imóvel para terceiro e, ainda que esse terceiro não tenha extraído qualquer certidão de distribuição de ações em face do vendedor, como não havia qualquer gravame na matrícula, a venda seria mantida e o titular do imóvel, que teve seus documentos falsificados, perderia? Obviamente que essa não é a solução e sequer é a interpretação correta da Lei 13.097/2015.

É óbvio que, nos casos exemplificados, se o adquirente não tomou a cautela de extrair as certidões na comarca do imóvel e de residência do alienante, a presunção – relativa, é bom que se diga – de boa-fé que em seu favor milita resta facilmente afastada. Portanto, as certidões devem continuar sendo extraídas. Sem extrair as certidões de praxe, a má-fé aflora e, a par de não haver qualquer constrição na matrícula, o negócio jurídico praticado será ineficaz perante ação ou execução já aforada, que tenham o condão de reduzir o alienante à insolvência; poderá ser anulada em razão da fraude contra credores no caso de dívidas ainda não ajuizadas por meio da ação pauliana ou revocatória; ou será anulada nos casos de falsificações de documentos do titular do imóvel. Pensar diferente seria premiar a má-fé, o que, definitivamente não decorre do sistema.

Então o que mudou em relação ao entendimento consolidado na Súmula 375 do STJ?

Nada. De acordo com a Súmula 375/STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

O Ministro José Delgado resume bem a questão: “Não há que se falar em fraude contra credores se, quando da alienação do bem, não havia registro de penhora. Para tanto, teria que restar nos autos provado que o terceiro adquirente tinha conhecimento da demanda executória, o que não ocorreu no caso em apreço. Precedentes. Recurso especial não provido” (Resp. 791.104/PR, rel. Min. José Delgado, DJ 06.02.2006, p. 222).

O que isso quer dizer? Quer dizer exatamente aquilo que foi incorporado, com uma linguagem confusa, pela Medida Provisória 656/2014 e, agora, pela Lei 13.097/2015, ou seja, que não havendo registro na matrícula, de qualquer gravame, ao credor incumbe a prova de que o adquirente agiu de má-fé. E essa prova pode consistir apenas na constatação que decorre da ausência do oferecimento das certidões de praxe na comarca do imóvel, quando facilmente, por tais documentos, poderia o adquirente verificar a insolvência do alienante ou a dívida. Nesse sentido:

Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Embargos de terceiro. Adquirente de boa-fé. Penhora. Registro. Ônus da prova. 1 – ao terceiro adquirente de boa-fé é facultado o uso dos embargos de terceiro para defesa da posse. Não havendo registro da constrição judicial, o ônus da prova de que o terceiro tinha conhecimento da demanda ou do gravame transfere-se para o credor. A boa-fé neste caso (ausência do registro) presume-se e merece ser prestigiada. 2 – Recurso especial conhecido e provido (Resp. 493.914/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, 4ª Turma, j. Em 08.04.2008, DJe 05.05.2008).

A alteração na Lei 7.433/1985 (que trata dos requisitos de lavratura das escrituras)

O Decreto 93.240/1986, regulamentador da Lei 7.433/1985 (que trata dos requisitos de lavratura das escrituras), no § 2º do inc. V do art. 1º, está assim redigido: “§ 2º As certidões referidas na letra ‘a’ do inc. III deste artigo somente serão exigidas para a lavratura das escrituras públicas que impliquem a transferência de domínio e a sua apresentação poderá ser dispensada pelo adquirente que, neste caso, responderá, nos termos da lei, pelo pagamento dos débitos fiscais existentes”.

Observe-se, todavia, que a Lei 7.433/1985 foi alterada pela MP 656/2014 e, depois, pelo art. 59 da Lei 13.097/2015, para incluir o § 2º do art. 1º nos seguintes termos: “O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão Inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição. ”

Foi retirada, assim, da redação original, desde a Medida provisória 656/2014, a necessidade de o tabelião consignar a existência de feitos ajuizados.

Isto significa que não há necessidade de exigir tais certidões? Não. E a resposta negativa se impõe na exata medida que a redação foi adequada para contemplar a possibilidade de a averbação do ajuizamento de feitos ser requerida diretamente pelo autor de ações reais, reipersecutórias ou que possam reduzir o devedor à insolvência. Não significa, todavia, que o adquirente pode dispensar a sua apresentação, posto que a sua boa-fé, conforme insistimos, é fundamental.

Em outras palavras, se dispensar a apresentação das certidões de distribuição de ações, além de outras como a dos cartórios de protestos da comarca do imóvel e do domicílio do alienante se diferente for, não manterá a presunção – relativa – de boa-fé, em que pese a matrícula não espelhar qualquer gravame ou constrição.

Conclui-se que a higidez do negócio jurídico praticado, tendo em vista nada ter sido averbado, não resiste à patente má-fé daquele que ignora deliberadamente eventuais ações distribuídas na comarca do local do imóvel, ainda que não tenham sido averbadas na matrícula.

Nesses termos, o que foi consignado no Comunicado CG n. 276/2015 (Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo no parecer 46/2015-E, da lavra do Juiz Swarai Cervone de Oliveira: “Daí se infere: a) devem ser averbadas as citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, além de, mediante decisão judicial, a existência de qualquer outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir o proprietário à insolvência, nos termo do art. 593, II [atual art. 792, IV], do Código de Processo Civil; b) não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 [lei de falências], e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel [v. G.: usucapião].

Não descartamos a hipótese de interpretação contrária àquela que defendemos, o que se mostrará desastroso para os credores e representará intolerável prestígio à má-fé do adquirente que se mostrou desidioso ao não exigir as certidões, no mínimo da comarca da situação do imóvel e do domicílio do vendedor se diferente for, ignorando direitos de crédito e outros que poderiam ser facilmente constatados. Demais disso, representará ferir de morte, tornando letra morta, os institutos da fraude contra credores e fraude à execução.

A contrário sensu, se exigir as certidões do vendedor e antecessores na comarca da situação do imóvel e na comarca do domicílio do alienante se diferente for, qualquer situação não constante na matrícula não poderá ser oposta à alienação sendo exatamente esta a extensão do novo regramento ao proteger expressamente o adquirente de boa-fé.

Luiz Antônio Schiavone Junior - Advogado, Especialista em Direito imobiliário.
Fonte: Artigos JusBrasil

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