O Supremo Tribunal Federal, por maioria apertada de 6 votos pelo provimento e 5 votos contra, apreciando o tema 492 da repercussão geral no Agravo de Instrumento 745.831 de São Paulo, deu provimento ao recurso extraordinário (RE 695.911), em sessão virtual encerrada em 14/12/20, para fixar a tese da inconstitucionalidade da cobrança das taxas de manutenção dos adquirentes de imóveis em loteamentos ou agremiações sob o fundamento de lesão aos princípios constitucionais da legalidade e da liberdade de associação (artigo 5º, caput e inciso XX, da Constituição Federal).
E assim diz a tese fixada, que certamente repercutirá de forma negativa no dia a dia dos loteamentos:
“É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da lei 13.465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível a cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis”.
Primeiramente, importante registrar que a decisão, do ponto de vista constitucional, está correta. Não há lei que trate do assunto e, por essa razão afeta ao princípio da legalidade e o Poder Judiciário não pode, para suprir a inércia do legislador, “criar” texto legal, o que caracterizaria um ativismo judicial descabido. Portanto, o julgado tem pleno amparo jurídico. Mas na prática, suas consequências serão graves, pois por não poder ser coagido a se associar, ninguém poderá, caso não o faça voluntariamente, ser obrigado a pagar pelas taxas de manutenção lançadas pelas associações.
A inércia do legislador em dar aos loteamentos e suas associações a natureza condominial no próprio ato aquisitivo – medida tentada pela decisão do STF determinando a necessidade de inscrição no registro de imóveis – visando atribuir o caráter propter rem e vinculação erga omnes, repercute negativamente no bom funcionamento das associações.
Feita essa breve consideração, na prática não podemos perder de vista que a partir do momento em que o morador escolhe, opta por residir naquele local – loteamento -, sem sofrer qualquer coação, me parece que, voluntariamente, ele aceita e adere às regras que ali vigem, tal qual se dá quando compramos um apartamento ou casa instituída sob a égide do Código Civil, sendo condomínio.
Imaginem se todos que optarem por morar num condomínio decidissem não aderir às cláusulas convencionais, como seria?
Logicamente que os loteamentos/associações são diferentes dos condomínios, desde a sua instituição até a sua extinção. Todavia, na prática ambos têm a mesma finalidade: dar àquela comunidade mais segurança e serviços – do contrário, bastaria adquirir um imóvel situado em rua aberta e não num loteamento “fechado”.
Bom que se diga, aliás, que nos empreendimentos instituídos sob a forma de loteamento é dever dos seus moradores realizar a manutenção das vias públicas que lhe foram cedidas para uso, o que, por si só já impõe a todos os mesmos deveres, pouco importando se há um portão limitando ou não o acesso, como no caso em concreto discutido. Até porque a ausência do Poder Público na manutenção e oferecimento de serviços é precária em muitos municípios, o que acaba por estimular a instalação de loteamentos.
A tese fixada tornou válida a cobrança somente após o advento da lei 13.465/17 – legislação que trata da regularização fundiária, direito real de laje e outros institutos e também incluiu no Código Civil o CONDOMÍNIO de lotes. Portanto, óbvio que sendo condomínio a cota parte será devida porque a lei material assim dispõe:
“Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.
§ 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.
§ 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística”.
Tal legislação (lei 13.465/17), tida como marco temporal mostra o desígnio do legislador de regularizar áreas urbanas e rurais e também previu a possibilidade de rateio das despesas nos loteamentos diante das atividades desenvolvidas pelas associações, tanto que incluiu o artigo 36-A e seu parágrafo único à lei 6.766/79 que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano:
“Art. 36-A. As atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com o objetivo de administração, conservação, manutenção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem o empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis.
Parágrafo único. A administração de imóveis na forma do caput deste artigo sujeita seus titulares à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos.”
Pelo critério adotado, os loteamentos existentes antes da lei 13.465/17 ficaram sem qualquer possibilidade de cobrança das taxas de manutenção daqueles que não quiseram associar-se, mas serão beneficiados pelos serviços prestados e pagos pelos seus vizinhos.
Portanto, abstraindo-se a correção técnica do julgamento e da tese fixada, a decisão será um desastre e trará a desvalorização desses imóveis, até porque a prescrição para cobrança dessas taxas é de 05 anos. É de se ressaltar, novamente, que pela tese fixada, somente poderá haver a cobrança se cumprido ao menos um dos pressupostos:
“(i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis OU
(ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis.”
Resumo da ópera: só poderá haver cobrança de taxa de manutenção de loteamento/associação se o adquirente for associado e após o advento da lei 13.465/17 – antes dela e não sendo associado, é inconstitucional até porque não tinha legislação. E mais, APÓS o advento da lei 13.465/17 somente será POSSÍVEL a cobrança caso os proprietários:
“(i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou
(ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis.”
Então, teremos mais discussão acerca de tema muitíssimo relevante que interfere e repercute na vida de milhares de pessoas, daí seu julgamento na forma de repercussão geral.
Seria mais justo, assim como fez a 9º Câmara de Direito Privado do TJ/SP, equiparar os loteamentos aos condomínios, por analogia e entender correta a cobrança da taxa para manutenção do empreendimento, sem fixar qualquer marco temporal inicial ou condições para a sua exigibilidade, ao menos enquanto o legislador não cumpra com o seu dever e dê a devia importância aos loteamentos e suas associações.
É possível especular que alguns de nossos julgadores não têm a menor noção dos custos elevadíssimos para se manter um loteamento, suas vias e áreas públicas e o quanto a inadimplência prejudica a coletividade. Há loteamentos que contam com controle de acesso, coleta de lixo, praças com exemplares arbóreos que precisam de cuidado e zelo daqueles particulares que ali decidiram e decidirão residir e que aceitaram do Poder Público o dever de manutenção dessas vias públicas.
Pior será para as associações que cobram daqueles que têm débitos com elas até o marco temporal fixado pela decisão que corresponde à vigência da lei 13.465/17, já que, uma vez declarada a inconstitucionalidade da cobrança, seus caixas serão sobremaneira prejudicados.
Tendo processo judicial em curso, ele será extinto e poderá haver a condenação da associação ao pagamento das custas e honorários advocatícios, em que pese haver tese no TJ/SP isentando a parte sucumbente, em decorrência da fixação de tese em repercussão geral, do pagamento das verbas sucumbenciais, afinal, até o momento anterior a controvérsia existia (veja-se, Agravo de Instrumento 2042869-46.2020.8.26.0000, rel. Des. Vera Angrisani, j. 16/6/20).
Há ainda os proprietários que tiveram ações judiciais desfavoráveis e tiveram bens expropriados para saldar tal débito. Enfim, enquanto reinar a desordem em que os tribunais inferiores têm entendimentos diversos e a Corte maior leva anos para decidir tema relevante, a insegurança jurídica e o prejuízo material restarão aos jurisdicionados e à população em geral.
De se ressaltar ainda que foi declarada a inconstitucionalidade “de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da lei 13.465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão”, o que significa dizer que mesmo as taxas instituídas sob a égide de alguma lei municipal anterior à lei nacional 13.465/17 também não poderão ser cobradas caso não preenchido ao menos um dos demais requisitos estabelecidos na tese fixada.
Dessa tese surgem as seguintes dúvidas e conclusões:
1. As associações são instituídas na forma do artigo 53 e seguintes do Código Civil e o registro dos seus atos constitutivos e estatuto, o qual contém os direitos e DEVERES do associado, se dá no Cartório de Registro das Pessoas Jurídicas, afinal por expressa determinação do inciso I, do artigo 44 do mesmo código, as associações são pessoas jurídicas. A decisão determina que a obrigação de pagar conste do ato constitutivo firmado após a lei 13.465/2017 E que seja averbado na matrícula do loteamento junto ao cartório de registro de imóveis. Como reagirão os cartórios de registro de imóveis quanto a esse registro?
2. Já existindo o loteamento, se o adquirente não aderir ao ato constitutivo/não se associar e não houver registro perante o CRI, ele fica isento da cobrança.
3. Pela tese, as associações somente poderão cobrar as taxas SE os adquirentes aderirem aos termos das entidades, adesão que deverá ser expressa, ou exista o prévio e competente registrado no álbum imobiliário, dando a publicidade ao ato. A decisão, embora cumprindo os ditames legais, acaba com a rotina das associações por tratar os iguais de forma desigual e prestigia o enriquecimento ilícito, bem como, faz o interesse particular prevalecer ao coletivo e em nossa modesta opinião é o caso de oposição de embargos declaratórios pela parte recorrida e vencida, a associação, ao menos para aclarar alguns dos pontos acima indicados.
Suse Paula Duarte Cruz Kleiber é advogada especialista em Direito Condominial.
Fonte: Migalhas
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