A maioria da doutrina não distingue os regimes da ocupação (mera tolerância da União ao uso de seus imóveis) da enfiteuse ou aforamento, que enseja transferência de direito real (domínio útil) aos particulares, pelo que necessário traçar suas naturezas jurídicas e diferenças.
O regime de ocupação é direito pessoal conferido ao particular, pela União, por mera tolerância para uso de seus imóveis mediante o pagamento de taxa de ocupação. Essa relação precária pode ser revista pela União a qualquer tempo, excetuadas as ocupações consideradas de boa-fé, conforme artigos 71 e 132 do
decreto 9.760/46. O instituto da ocupação é construção legal sobre a tolerância da União em relação aos terrenos federais ocupados ao longo da história sem sua fiscalização. Certo que não há usucapião de bens da União submetidos ao regime de mera ocupação, pois os bens públicos são imprescritíveis, a teor dos artigos 183 §3° e 191, parágrafo único, da
Constituição Federal. Ressalte-se que, o instituto da ocupação sobre bens públicos não se confunde com a aquisição de imóveis pela simples posse ou ocupação, espécie de usucapião instantâneo1 de outras terras públicas, que ocorreu até a promulgação da Lei de Terras, em 1850. Vilmar Lobo Abdalah Junior trata a ocupação como "uma etapa pré-enfiteuse na maioria dos casos. (...) Afinal, a maioria das pessoas que passa a ser foreira, adquirindo o domínio útil do imóvel que se pretende aforar, gratuita ou onerosamente, já estava ocupando esse terreno anteriormente."2
Grande parte dos bens da União não é objeto de enfiteuse e seus ocupantes possuem mero direito obrigacional não suscetível de registro no fólio real, sendo que a Secretaria do Patrimônio da União insiste em obstar a transferência de direito real por meio de contratos de aforamento em favor dos ocupantes, ainda que estes tenham direito ao aforamento a título gratuito.
2. Regime de enfiteuse ou aforamento
O Código Civil de 2002 proibiu a constituição de novas enfiteuses, mas seu artigo 2.038, § 2°3, estabelece que tal proibição não afeta os bens públicos. A legislação patrimonial da União se refere ao termo aforamento quando trata da enfiteuse, que é o 'direito real e perpétuo de possuir, usar e gozar de coisa alheia e de emprega-la na sua destinação natural sem lhe destruir a substância, mediante o pagamento de um foro anual invariável.'4
Melhim Chalhub adverte que "pela enfiteuse, dá-se o desdobramento dos poderes do domínio, fazendo com que sobre um mesmo imóvel coexistam, simultaneamente, um domínio direto (também chamado domínio eminente) e o domínio útil. O domínio direto é a nua propriedade, e permanece com aquele que era o titular do domínio pleno do imóvel, sendo denominado senhorio direto ou, simplesmente, senhorio, enquanto que o domínio útil reúne faculdades relativas à posse, ao uso, ao gozo do imóvel, bem como o direito de transmiti-las, sendo essas faculdades atribuídas ao titular do direito real de utilização e exploração econômica perpétua do imóvel, ao qual se dá o nome de foreiro ou enfiteuta"5.
Os contratos de aforamento ou enfiteuse devem ser registrados na matrícula do respectivo imóvel para constituição de direito real (domínio útil) em favor do particular. Infelizmente há pouco regramento acerca do registro da enfiteuse. Marcelo Terra lembra que:
"A enfiteuse foi parcamente regrada nas leis registrarias (atual e anteriores) ou por esquecimento ou por medo do enfrentamento de tema tão espinhoso. Os imóveis enfitêuticos e os mistos (alodiais) raramente têm sua real situação jurídica nos livros 6.."
Aos foreiros há possibilidade de solicitar à Secretaria do Patrimônio da União a remição ou resgate do aforamento, para aquisição do domínio direto e consolidação da propriedade plena em favor do particular, conforme demonstraremos.
3. Da alienação de imóveis sob regime de ocupação: alienação direta
A
lei 13.465/17 incluiu o artigo 8°- A7 na
lei 13.240/15, autorizando a alienação de bem público da União diretamente aos seus regulares ocupantes, mediante a publicação de portarias específicas, que listam os imóveis passíveis de alienação. É a chamada alienação direta, que visa transferir aos particulares os imóveis da União, mediante pagamento do preço de avaliação com exclusão das benfeitorias, que não podem integrar o valor a ser pago à União, sob pena de enriquecimento sem causa, uma vez que as benfeitorias foram realizadas pelos particulares ao longo dos anos.
Entretanto, o legislador olvidou-se de questão fundamental ao interesse dos particulares nessa aquisição: o preço do imóvel já foi pago pelos ocupantes quando da aquisição dos direitos de ocupação sobre o imóvel de propriedade da União.
Ainda que não sejam proprietários desses imóveis públicos, têm os particulares em seu favor a outorga de escrituras públicas de cessão de direitos de ocupação ou até títulos de propriedade (ainda que nulos, eis que de domínio da União), pagamento de impostos e emolumentos. Certamente, não pagarão o preço novamente, ainda que a lei seja expressa em excluir do pagamento as benfeitorias realizadas no imóvel da União, ex vi do artigo 1° do
decreto-lei 2.398/87 e outros dispositivos que repetem a mesma norma.
Conforme alertamos em outras oportunidades, sem a concessão dos aforamentos a título gratuito, que demandam estudo da cadeia possessória do imóvel e devem ser concedidos aos particulares que preencham seus requisitos, poucos particulares terão interesse na aquisição do domínio desses imóveis.
Todavia, em determinados casos pode haver interesse do particular na aquisição do domínio pleno do bem, desde que a avaliação do terreno pela SPU seja módica. Cada imóvel deverá ser objeto de análise acurada, para aferição da conveniência da aquisição, mesmo nas aquisições à vista, nas quais incidirá desconto de vinte e cinco por cento sobre o preço da avalição da União8.
Por outro lado, o artigo 92 da lei 13.465/17 confere aos particulares a utilização de recursos do FGTS para aquisição do bem público, e o artigo 93 facilita a constituição de aforamentos em condomínios edilícios quando uma das unidades autônomas já estiver aforada. Nesse caso, o novo artigo 16-F da
lei 9.636/98 determina que o mesmo critério de outorga de aforamento será conferido às demais unidades autônomas.
Consolidada a propriedade em favor do particular, antes mero ocupante do imóvel público, não mais incidirá taxa de ocupação, tampouco foro.
Importa considerar que, ainda, que na transferência da propriedade pública ao particular, decorrente da venda de que trata o artigo 8°-A da lei 13.240/15 não incidirá laudêmio, que é de responsabilidade da União (alienante), mas que pela regra da imunidade não pagará qualquer contraprestação a si.
4. Da remição do aforamento
Antigo instituto regulado pelo decreto-lei 9.760/46 e pela lei 13.240/15 foi novamente disciplinado pela lei 13.465/17. Aliás, a remição do aforamento tem suas regras e procedimento indicados em diversas instruções normativas da SPU, sendo a mais recente delas a IN/03/2016/SPU.
A remição do aforamento é forma de extinção da enfiteuse, decorrente da venda pela União (senhorio direto) do domínio direto ou iminente, que corresponde a 17% do valor do imóvel, nos estritos termos do artigo 123 do Decreto-Lei 9.760/46. Consolidado o domínio direto em favor do particular (foreiro), a propriedade plena do imóvel, antes pública, se tornará alodial. Terras alodiais são terras privadas, livres de pagamento de foros.
A remição do aforamento, desde a edição da
lei 13.139/15 (que alterou o artigo 122 do decreto-lei 9.760/46, dentre outros dispositivos) é considerada ato administrativo vinculado no tocante aos terrenos de marinha e seus acrescidos, desde que localizados fora da faixa de segurança (artigo 10, §3° da
lei 7.661/88).
Rememore-se que, a maioria dos imóveis da União não é sequer objeto de aforamento, mas de ocupação, e resta claro que o legislador coloca a carroça na frente dos bois, pois novamente disciplinou o instituto da remição ou resgate do aforamento (o DC 9.760/46 e as leis 9.636/98, 11.481/07, 13.139/15 e 13.240/15 já o fizeram), ignorando o fato de que a maioria dos imóveis da União é apenas ocupado por particulares, que não têm sequer o domínio útil desses bens, eis que cadastrados na SPU sob o regime de mera ocupação. Não são foreiros ou enfiteutas e não têm direito de resgatar algo que não possuem. Entretanto, esses particulares têm, na maioria das vezes, direito ao aforamento a título gratuito, e essa fundamental questão continua sonegada pela União.
5. Conclusão
Quando o Poder Público protege o direito real dos particulares ao invés de lutar com todas suas forças para manter determinadas áreas sob seu domínio exclusivo, o próprio Estado, por via de consequência, terá benefícios decorrentes da riqueza gerada aos particulares e bem-estar social associado ao crédito mais barato e segurança jurídica e patrimonial propiciados pela propriedade privada.
Negar a propriedade privada, manter o deletério regime de ocupação e obstar a instituição de enfiteuses ou aforamentos e sua posterior remição não é a melhor forma de gerir o patrimônio federal. Em que pese a receita gerada pelas taxas de ocupação, laudêmio e foro, o desenvolvimento que a extinção da atual sistemática traria ao país é enorme. Nesse diapasão, percebemos que a noção de propriedade que paira sobre a administração é a clássica, ainda que sob outro rótulo, mas que desrespeita qualquer noção de função social da propriedade pública.
Outras formas de alienação de imóveis da União que não são objeto deste artigo, como a permuta para atender necessidades de instalação de órgãos e entidades públicas federais e a doação para pessoas físicas de baixa renda foram regulamentadas e serão instrumentos hábeis para transferência de patrimônio público ao particular.
Certo que a União pretende transferir aos particulares o domínio dos seus imóveis regularmente ocupados e aforados, mas parece que os instrumentos legais disciplinados pela lei 13.465/17 não serão suficientes à transição satisfatória, caso superavaliados os imóveis e desrespeitadas regras para concessão de aforamentos a título gratuito, conforme vetusta legislação que autoriza a Secretaria do Patrimônio da União a fazê-lo.
Referências:
1 - AZEVEDO JUNIOR, José Osório de. Atualidades da posse no direito brasileiro - Estudos Avançados de Direito Imobiliário – Ed. Elsevier, Rio de Janeiro 1ª ed. Coord. José Roberto Neves Amorim/ Rubens Carmo Elias Filho. p. 233
2 - ABDALAH Junior, Vilmar Lobo. Aforamento nos terrenos de marinha. Vitória: Grafita Gráfica e Editora, 2010. p. 88
3 - Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei 3.071, de 1° de janeiro de 1916, e leis posteriores. § 2o A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial.
4 - PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. IV, p. 157.
5 - CHALHUB, Melhim – Direito Reais, 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais - p.204
6 - TERRA, Marcelo - Propriedade e direitos reais limitados/Ricardo Dip, Sergio Jacomino, organizadores – 2ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. – Coleção doutrinas essenciais: direito registral; v. 5 - p. 756.
7 - Art. 8º-A. Fica a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) autorizada a receber Proposta de Manifestação de Aquisição por ocupante de imóvel da União que esteja regularmente inscrito e adimplente com suas obrigações com aquela Secretaria.
§ 1º O ocupante deverá apresentar à SPU carta formalizando o interesse na aquisição juntamente com a identificação do imóvel e do ocupante, comprovação do período de ocupação e de estar em dia com as respectivas taxas, avaliação do imóvel e das benfeitorias, proposta de pagamento e, para imóveis rurais, georreferenciamento e CAR individualizado.
§ 2º Para a análise da Proposta de Manifestação de Aquisição de que trata este artigo deverão ser cumpridos todos os requisitos e condicionantes estabelecidos na legislação que normatiza a alienação de imóveis da União, mediante a edição da portaria do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, de que trata o art. 8o desta Lei, bem como os critérios de avaliação previstos no art. 11-C da Lei no 9.636, de 15 de maio de 1998.
§ 3º O protocolo da Proposta de Manifestação de Aquisição de imóvel da União pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) não constituirá nenhum direito ao ocupante perante a União.
§ 4º A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) fica autorizada a regulamentar a Proposta de Manifestação de Aquisição de que trata este artigo, mediante edição de portaria específica.”
8 - Art. 11. O adquirente receberá desconto de 25% (vinte e cinco por cento) na aquisição à vista, com fundamento no art. 4o desta Lei, requerida no prazo de um ano, contado da data de entrada em vigor da portaria de que trata o art. 8o desta Lei que incluir o bem na lista de imóveis sujeitos à alienação.
Diogo Üebele Levy Farto - Advogado; Pós-graduado em Direito Imobiliário; Program on Negotiation pela Harvard Law School; Pós-graduado em Direito dos Contratos; Professor universitário.
Fonte: Migalhas de Peso