sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

EXTINÇÃO DO COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA DE IMÓVEIS E AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 13.097/2015


Em tempos de crise, tornam-se comuns renegociações, inadimplemento e extinção dos contratos.

Na área imobiliária, a considerar as atuais dificuldades dos consumidores para honrarem as prestações do financiamento, temos acompanhado inúmeros casos de extinção dos contratos de venda e compra de imóveis.

Há formas diversas para a extinção contratual. Havendo comum acordo entre vendedor e comprador, as partes firmam o distrato bilateral. Sendo relação de consumo é comum as construtoras realizarem a retenção de parte dos valores pagos. Daí a primeira controvérsia.

Embora a questão seja controvertida, a jurisprudência, já há alguns anos, firmou entendimento que autoriza a retenção dos valores pagos pelo consumidor. Tanto é assim que o TJ/SP editou súmula admitindo a compensação com gastos próprios de administração e propagandas realizados, assim como o valor que se arbitrar pelo tempo e ocupação do bem[1].

De todo modo, embora sumulada, a questão está longe de ser tranquila. O Tribunal, embora tenha autorizado a retenção, não estabeleceu qual o percentual admitido. É muito comum ver julgados autorizando retenção de apenas 10%[2], enquanto há outros autorizando retenção de 40%[3]. Boa parte dos litígios envolvendo construtoras e consumidores é justamente para discussão sobre a abusividade ou não do percentual de retenção estabelecido no contrato. Já era tempo da jurisprudência estabelecer um percentual uníssono.

Mas isso não é só.

A questão é ainda mais tormentosa quando o comprador torna-se inadimplente, não concorda com o distrato (principalmente por discordar da retenção dos valores) e o vendedor pretende resolver o contrato.

Caso o negócio firmado entre as partes envolva financiamento bancário, garantido por alienação fiduciária, não há que se falar em resolução contratual entre comprador e vendedor. Em primeiro lugar porque já não há mais promessa de venda e compra, mas, sim, escritura pública. Além disso, no caso de alienação fiduciária, o adquirente não possui a propriedade plena, a considerar que o próprio imóvel garante o pagamento do financiamento.

Nessa hipótese, sendo instituída alienação fiduciária e em caso de inadimplemento contratual do comprador, o vendedor apenas poderia manejar a ação de cobrança em face do comprador inadimplente. Não a resolução do contrato.

Caso a alienação fiduciária seja instituída em favor do vendedor, a forma da extinção contratual é realizada pela via da lei 9.514/97, com o procedimento extrajudicial da alienação fiduciária.

De todo modo, é possível que o contrato de venda e compra entre as partes não esteja atrelado a um financiamento bancário ou mesmo inexista alienação fiduciária. Vamos a algumas situações.

Na situação “A”, é possível imaginarmos que o consumidor, embora tenha firmado compromisso de venda e compra, não consiga obter o financiamento bancário e, diante de tal negativa, pretenda a extinção da promessa de venda e compra.


Na situação “B”, a própria construtora realiza a venda, sem a participação de um agente financeiro, não estabelecendo, ainda, alienação fiduciária.

Na hipótese “C”, de forma mais comum, também verificamos contratos de compra e venda de imóveis usados, celebrados entre pessoas físicas, sem qualquer participação do agente financeiro ou garantia de alienação fiduciária.

Para as hipóteses “A”, “B” e “C”, onde não há lavratura de escritura pública e apenas compromisso de venda e compra, sem que seja estabelecida alienação fiduciária, ocorrendo o inadimplemento contratual, abre-se a porta para a resolução do contrato.

Havendo a inexecução por culpa de uma das partes, segundo o artigo 475, do CC, a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

A questão é saber se há (ou não) necessidade da declaração judicial da resolução ou se esta se daria de forma automática, independentemente do pronunciamento judicial.

Orlando Gomes[4] nos ensina que o exercício da faculdade de resolução é distinto por dois sistemas: o francês e o alemão. Pelo sistema francês, a decretação da resolução contratual tem de ser declarada judicialmente. Já pelo sistema alemão, ao contrário, admite-se a resolução sem intervenção judicial. O contrato resolve-se de pleno direito. Assim, se um dos contratantes não cumpre a sua obrigação, pode o outro declarar resolvido o contrato, independentemente de pronunciamento judicial.

O Brasil se valeu de um sistema misto. Isso porque o artigo 474 do CC determina que a “cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”.

Assim, se o contrato estabelecer uma cláusula resolutiva expressa, ou seja, uma cláusula contratual em que as partes reforçam que, ocorrendo o inadimplemento contratual, o contrato resolve-se automaticamente, sem a necessidade de interpelação judicial, estamos diante do sistema alemão[5]. Contudo, caso não haja a previsão de uma cláusula resolutiva expressa, estamos diante do sistema francês[6] e há a necessidade de interpelação judicial.

De qualquer forma, atente-se que o direito pátrio, valendo-se da cláusula resolutiva expressa, autoriza a possibilidade de resolução automática.

Atente-se, contudo, que nos contratos de venda e compra, o decreto-lei 745/69, determina que o inadimplemento absoluto só se caracteriza se o comprador, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora no prazo de 15 dias contados do recebimento da interpelação.

Assim, pela legislação brasileira, havendo (i) cláusula resolutiva expressa no contrato e (ii) inadimplemento absoluto (caracterizado pela ausência de purgação de mora nos termos do Decreto 745/69), a resolução contratual poderia ser realizada de forma extrajudicial, sem a necessidade de intervenção judicial.

Mas esse não é o entendimento dos Tribunais. Como se sabe, os Tribunais são firmes no entendimento de que a resolução contratual dos contratos de venda e compra, ainda que exista cláusula resolutiva, necessariamente precisa ser declarada pela via judicial[7].

E a razão desse entendimento, como se pode imaginar, é que muitos construtores, num passado não tão recente, resolviam extrajudicialmente o contrato, mesmo sem conferir o direito de purgação de mora. Em outros casos, a devolução dos valores pagos era irrisória. O abuso do direito abriu as portas para obrigar que a resolução contratual fosse realizada judicialmente.

Mas essa determinação mostrou-se péssima ao mercado, seja para compradores, seja para vendedores. Ao ter de aguardar anos e anos para a resolução do contrato, o vendedor via-se privado da coisa. Além disso, ao final de longos anos de tramitação da ação, o comprador via-se obrigado ao pagamento de uma “taxa de ocupação” que dificilmente conseguirá pagar. Some-se a isso unidades que ficavam inutilizadas, aguardando pronunciamento judicial.

Diante de tal situação, a lei 13.097/2015, recentemente editada, trouxe grande inovação, em seu art. 62, parágrafo único. Referido dispositivo alterou a redação do decreto-lei 745/69, incluindo parágrafo único ao art. 1º, nos seguintes termos:

“Art. 1º [...]

Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora.” (NR)”.

A nova redação atribuída ao decreto-lei 13.097/15 altera completamente a jurisprudência firmada ao longo dos anos, que determinava a necessidade de pronunciamento judicial para resolução contratual da promessa de venda e compra. A lei “dá recado” à jurisprudência, determinando que a resolução se “operará de pleno direito”.

Voltamos, portanto, ao que sempre determinou a legislação brasileira: havendo cláusula resolutiva expressa e inadimplemento absoluto, abre-se a possibilidade do vendedor resolver automaticamente o compromisso de compra e venda, sem necessidade de pronunciamento judicial. Assim, para a recuperação da posse, não há mais necessidade de ser intentada ação resolutiva, mas apenas ação possessória. Caberá ao magistrado, naturalmente, antes da concessão de liminar, verificar se os requisitos autorizadores da resolução foram atendidos. Resta saber se, diante de tal drástica alteração, o judiciário terá a coragem de fazer cumprir a lei.
____________________

1 “Súmula 1: O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem”.

2 “Rescisão do contrato – Possibilidade de retenção de parte do montante pago pelos autores para custeio de despesas com publicidade e administração do empreendimento – Incidência das Súmulas 1, 2 e 3 desta Corte de Justiça – Montante retido que deverá ser fixado em 10% dos valores pagos – Sentença de procedência – Manutenção – Recurso não provido. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 1123197-78.2014.8.26.0100, Rel. Marcia Dalla Déa Barone, j. 17 de Novembro de 2015).

3 “REMUNERAÇÃO DA COMISSÃO DE CORRETAGEM. Documentos expedidos no ato da compra que discriminam todos os valores devidos pelo autor a título de comissão de corretagem. Cobrança não abusiva, porquanto pactuada. Remuneração devida. [...] RETENÇÃO DE 40% DOS VALORES PAGOS. Razoabilidade, no caso concreto. Desfazimento do negócio por iniciativa do autor, sob o argumento de que não tem mais condições de efetuar o pagamento das parcelas. Desistência em momento de grave recessão do mercado imobiliário e notória desvalorização dos imóveis. Valor destinado a cobrir as despesas administrativas suportadas pela ré. Recurso parcialmente provido. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 1003703-87.2015.8.26.0068, Rel. Hamid Bdine, j. 10 de Setembro de 2015).

4 GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 207.

5 Sobre a desnecessidade da interferência judicial na declaração da resolução, manifestou-se Daniel Ustárroz: “[...] ao se firmarem o pacto, as partes apontam de antemão nos quais o contrato é resolvido, descabe ao Judiciário outra conduta que não a de chancelar suas vontades. Dentro desse contexto, qualquer alteração do conteúdo do contrato deve se dar mediante o reconhecimento das figuras que permitem a anulação do negócio jurídico e jamais pela mera vontade do julgador e sua ideia particular de justiça. Quer dizer isto que, caso o contrato tenha sido celebrado longe de vícios, não cabe a terceiros analisar a gravidade ou não da conduta prescrita na cláusula resolutiva, pois a mesma fora elaborada pelos próprios interessados” (USTARRÓZ, Daniel. A resolução do contrato no novo Código Civil. Revista Jurídica, n. 304, ano 51, p. 32-53, Fevereiro de 2003, p. 36).
Na mesma senda, Antônio Celso Pinheiro Franco e José Roberto Pinheiro Franco asseveram: “Também adotamos essa linha de pensamento entendendo que havendo cláusula resolutiva expressa estabelecida pelas partes, isso permite ao interessado fazer uso direto da reintegratória, independentemente de uma ação prévia de rescisão contratual” (PINHEIRO FRANCO, Antônio Celso; PINHEIRO FRANCO José Roberto. Cláusula resolutiva expressa: o exato sentido do art. 119 do CC/1916 e dos arts. 128 e 474 do Diploma Substantivo de 2002. Revista do Instituto dos Advogados, ano 13, n. 25, Janeiro-Junho de 2010, p. 80).

6 O Código Civil francês (art. 1.184) determina que a resolução poderá ser requerida apenas via judicial (“Art. 1.184. La résolution doit être demandeé en justice).

7 Nesse sentido: “Ação de reintegração de posse derivada da falta de pagamento das prestações do imóvel transacionado, pelo cooperado. Liminar bem denegada, agravo contra a denegação improvido. Necessidade de primeiro ser rescindido o negócio, ainda que haja cláusula resolutiva expressa” (Tribunal de Justiça de São Paulo, 8ª Turma Cível, Apelação n.º 991.06.040542-2, Rel. Min. Luiz Ambra, j. 26 de maio de 2010). A questão não é pacífica porque, no próprio TJ/SP, há julgadores que entendem desnecessário o pronunciamento judicial quando o contrato prever cláusula resolutiva expressa.

Alexandre Junqueira Gomide e Fábio Tadeu Ferreira Guedes - Advogados, sócios da banca Junqueira Gomide & Guedes Advogados Associados

Fonte: Migalhas

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