terça-feira, 7 de janeiro de 2014

DESAPROPRIAÇÃO PRIVADA (CC) x USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO COLETIVO (ESTATUTO DA CIDADE)


Antes de adentrarmos no teor dos artigos de lei objeto do título, se faz necessário tecer algumas considerações sobre o usucapião. A doutrina não é unânime quanto ao modo de aquisição da propriedade por usucapião, se originário ou derivado. O mesmo valendo para a natureza da sentença proferida na ação usucapienda, se declaratória ou constitutiva. O modo originário de aquisição se dá direta e independentemente da interposição de outra pessoa. O adquirente faz seu o bem, que lhe não é transmitido por quem quer que seja. Já a derivada tem como pressuposto um ato de transmissão por via do qual a propriedade se transfere para o adquirente.Usucapião significa tomar pelo uso. A relação jurídica de que é titular o usucapiente surge como direito novo, independentemente da existência de qualquer vinculação com seu predecessor, que, se por acaso existir, não será o transmitente da coisa, daí a tendência em classificá-lo como modo originário de aquisição da propriedade.

Quanto à sentença, a inclinação é o entendimento de que seja declaratória, uma vez que verificada a ocorrência dos requisitos previstos nos artigos 1238, 1240, 1240-A e 1242, do Código Civil brasileiro, o juiz declarará o direito real de propriedade, cuja decisão terá efeitos ex tunc. Não sendo crível para a banda prevalente da doutrina que a sentença (com efeitos ex nunc) tenha o condão de constituir o direito real de propriedade. Em síntese, o entendimento majoritário é de que o usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e que a sentença usucapienda é de natureza declaratória.

Feitos esses apontamentos, vamos à transcrição dos artigos de lei, partindo do Código Civil (da propriedade em geral) para o Estatuto da Cidade (usucapião especial de imóvel urbano):

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

(...)

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

A doutrina vem atribuindo ao § 5º o nome de desapropriação particular ou privada. No caso em tela, temos o proprietário do imóvel no polo ativo da demanda. Exitoso na lide, não receberá o imóvel urbano ou rural de volta, mas receberá o justo preço. Interessante é a lição dos Professores ao comentar a lei civil substantiva1:

No tocante aos § 4º e 5º, o relatório Fiuza, recepcionando por sua vez o relatório Emnani Satyro, acolhe os argumentos do Prof. Miguel Reale quando afirma que se trata de “um dos pontos mais altos do Projeto, no que se refere ao primado dos valores do trabalho como uma das causas fundantes do direito de propriedade. De outro lado, não há, a nosso ver, nada de surpreendente no fato de ser atribuído ao juiz competência para, no caso especialíssimo previsto no art. 1.266, declarar a desapropriação dos bens reivindicandos, a fim de que seja pago ao reivindicante o justo preço de seu imóvel, sem se locupletar ele à custa dos frutos do trabalho alheio. Como bem observou o Relator especial, os múltiplos casos de ‘desapropriação indireta’, que são casos típicos de ‘desapropriação pretoriana’, resultantes das decisões de nossos tribunais, estão aí para demonstrar que o ato expropriatório) não é privilégio nem prerrogativa exclusiva do Executivo ou do Legislativo. Nada existe que tome ilegítimo que, por lei, em hipóteses especiais, o poder de desapropriar seja atribuído ao juiz, que resolverá em função das circunstâncias verificadas no processo, em função do bem comum. Sobretudo depois que a lei de usucapião especial veio dar relevo ao trabalho como elemento constitutivo da propriedade, conferindo efeitos dominicais à “posse trabalhos” (consoante terminologia do Prof. Miguel Reale, em sua Exposição de Motivos, ou à posse pro labore, segundo expressão do Estatuto da Terra), tomou-se ainda mais imperioso dar garantia, no Código, àquelas situações em que se defrontam, de um lado, o possuidor de boa-fé, como produto de seu trabalho, e, do outro, o proprietário com o seu título de domínio . Para atender a esse conflito de interesses sociais, o Projeto prevê que o juiz não ordene a restituição do imóvel ao reivindicante, que teve êxito na demanda, mas que lhe seja pago o justo preço. Solução equitativa e do maior alcance socioeconômico, sobretudo porque tem em vista regularizar, de maneira prática e imediata, a situação de considerável número de pessoas que, por mais de cinco anos, com boa-fé, houverem realizado, em extensas áreas, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social relevante”.

Nem tudo são flores. Há outro lado há ser observado, como o incentivo às invasões e a morosidade na fixação e no recebimento da indenização. A exequibilidade de tal sentença é dificílima. Acrescente-se a isto, a importante particularidade de que o usucapião especial urbano individual ou coletivo previsto no Estatuto da Cidade pode ser utilizado como defesa, não havendo necessidade de ação própria.

Retomando o comparativo, segue o artigo 10:

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º (...).

§ 2º A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.

§ 3º Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.

Aqui, os habitantes (e não o proprietário do bem) formam o polo ativo da demanda, que tem por objeto imóvel urbano e por pedido a declaração da aquisição da propriedade imobiliária pelo uso, mais precisamente, pela moradia. O titular, réu na demanda, perderá a propriedade sem que a ele seja atribuída qualquer indenização, fato encarado como potencializar das invasões. Mas como prever indenização se o devedor estatutário tem por requisito ser de “baixa renda”?

O legislador intenta fulminar a propriedade improdutiva, castigando o proprietário não empreendedor, pretendendo atribuir eficácia a direitos constitucionalmente assegurados, estando dentre eles, justamente a propriedade. Percebe-se que não é uma tarefa fácil, pois se atribuindo direito a um, tira-se de outro, tornando ainda mais importante o papel do Poder Judiciário que, dos três poderes, neste caso, é o que está mais próximo do cidadão.

Nota:
1 Novo Código Civil Comentado. Disponível em: 
< http://www.netlegis.com.br/componentes/upload/CCCOMENTADO.pdf>. Acesso em: 13 de dezembro de 2012.

Sandra Regina Pires
Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Pós-Graduada "lato sensu" pela UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina) em Direito Processual Civil, com área de conhecimento em Processo Civil com formação para o Magistério Superior. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 1990. Vinte e três anos de militância na advocacia, com ênfase em Direito Civil, Processual Civil e Direito de Família. Professora na Graduação das Disciplinas Prática Forense Civil I e II, Direitos Reais, Responsabilidade Civil e Direito Civil (Parte Geral).
Professora na Escola Superior da Magistratura da Paraíba (ESMA) das Disciplinas Ação Civil Pública, Ação Popular Atualidades em Direito Processual Civil.

Fonte: Revista Jus Navigandi

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