Muito embora os contratos de compra e venda de imóveis sejam meramente consensuais, considerando-se o negócio jurídico efetivamente celebrado, quando há o acordo das partes sobre a coisa e o preço, há um costume comercial, pelo qual, no momento da celebração do contrato, um dos contratantes entrega ao outro quantia em dinheiro como símbolo ou garantia da conclusão do negócio.
Historicamente, tal prática consubstanciava a intenção firme e inequívoca das partes no que se refere ao cumprimento do contrato, reforçando o vínculo contratual diante da ideia de que, com a entrega do dinheiro, o contratante se sentiria menos vulnerável a não honrar as obrigações contratuais, resultando a constatação de que o sinal confirmava o negócio jurídico.
Pelo Código Civil em vigor, as arras podem ser confirmatórias do negócio jurídico celebrado em caráter irrevogável e irretratável, não se admitindo, pois, o direito de arrependimento, servindo como princípio de pagamento do preço, ou penitenciais em que as partes ajustam a possibilidade do direito de arrependimento por qualquer das partes, tornando o contrato revogável e retratável, servindo como função meramente indenizatória que se reverterá ao contratante que não tiver exercido a desistência.
E o que em tese deve ocorrer se, não obstante as arras dadas, o contrato não vier a ser adimplido? Tratando-se de arras confirmatórias, o Código Civil, em seu artigo 418, estabelece que, se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito, retendo as arras dadas. Por sua vez, se o inadimplemento contratual derivar de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir a sua devolução mais o equivalente (= dobro).
Tratando-se de arras penitenciais, o Código Civil, em seu artigo 420, estabelece que, se for exercido o direito de arrependimento, o sinal entregue será perdido por quem o deu ou restituído em dobro por quem o recebeu, a título de indenização.
Entretanto, no âmbito dos contratos regidos pelo Código do Consumidor — por exemplo, os contratos celebrados no âmbito da incorporação imobiliária e de loteamentos —, a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça aponta que o inadimplemento do comprador não implica a perda do sinal, sejam as arras confirmatórias ou penitenciais, devendo ser computado no valor para efeito de definição de indenização pelos prejuízos decorrentes do desfazimento do negócio jurídico, de sorte que é lícito ao vendedor fazer a retenção de 10% a 30% das quantias pagas, incluindo o sinal. Como as arras confirmatórias servem como garantia do negócio, sendo consideradas início de pagamento, verifica-se que não pode ser objeto de retenção na resolução contratual por inadimplemento do comprador (AREsp 1731013, relator ministro Marco Aurélio Bellizze).
Essa orientação de que, havendo inadimplemento contratual do comprador/consumidor, afigura-se ilícita a retenção das arras pela vendedora é extraída antes a par da Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como também após a Lei 13.786/2018, e se aplica exclusivamente aos contratos regidos pelo Código do Consumidor, afastando-se a incidência do regramento previsto no Código Civil, dada a hipossuficiência.
De outro lado, no cenário dos contratos que não sejam de consumo, por exemplo os contratos empresariais e civis, em que vigoram as ideias de simetria e de paridade entre os seus sujeitos, e ainda diante da premissa de racionalidade dos agentes econômicos e da prevalência da autonomia privada, as arras ajustadas em contratos imobiliários, reputados como negócios empresariais e/ou civis, devem necessariamente observar o regramento previsto no Código Civil, em seus artigos 418 e 420, de sorte que deve haver uma divisão de regimes jurídicos, quando o contrato seja regido pelo Código do Consumidor, e quando seja regido pelo Código Civil.
Assim, em regra a intervenção do Poder Judiciário na autonomia privada, em contratos empresariais e/ou civis, deve ser efetuada em caráter excepcional, em razão da simetria/paridade dos seus sujeitos e da presunção de racionalidade dos agentes econômicos. Por isso que a doutrina aponta que deve haver um grau distinto de intervenção do Poder Judiciário a par da natureza jurídica dos contratos imobiliários, tornando-se imprescindível examinar se são negócios empresariais/civis, em que há a predomínio da autonomia privada, ou se são negócios de consumo, em que há a hipossuficiência do consumidor.
Por oportuno, em paradigmático julgado que envolvia a discussão das arras em contrato de promessa de compra e venda celebrado entre sociedades empresárias, no qual se discutiu se não seria o caso de aplicar, por analogia, o entendimento adotado aos contratos de consumo, a ministra Maria Isabel Galloti anotou tal distinção ao assentar que "reitero que não se cuida, aqui, de negociação de unidades imobiliárias incluídas na carteira de bens de empresas destinadas a incorporação, compra e venda de imóveis a consumidores finais, hipótese em que se aplicaria o CDC, e a revenda do bem seria realizada dentro do giro normal dos negócios da empresa. Trata-se, aqui, de compra e venda regida pelo Código Civil, tendo plena aplicação o instituto das arras, com o objetivo de reforçar a firmeza do contrato celebrado entre as partes em igualdade jurídica de condições, somente devendo intervir o Poder Judiciário, ao meu sentir, em caso de manifesto excesso e desproporção, o que não vislumbro das circunstâncias da causa traçadas na origem" (AgInt no AREsp 1186036).
Embora deva ser ressalvado que, mesmo em contratos empresariais, afigura-se lícito ao Poder Judiciário efetuar o controle da abusividade das arras ajustadas em contrato imobiliário, especialmente para, diante das peculiaridades do caso concreto, aplicar o regramento do artigo 413 do Código Civil que permite a redução equitativa pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante for manifestamente excessivo à vista da natureza e da finalidade do negócio, a teor do Enunciado 165 da IV Jornada de Direito Civil, segundo o qual "em caso de penalidade, aplica-se a regra do artigo 413 ao sinal, sejam as arras confirmatórias ou penitenciais" (AREsp 246731, relator ministro Raul Araújo).
Portanto, a classificação dos contratos imobiliários, a par do regime jurídico, se são empresariais, civis ou de consumo, torna-se relevante para aferir o nível de intervenção do Poder Judiciário nos negócios jurídicos. Em se tratando de contratos empresariais e/ou civis, as arras confirmatórias e/ou penitenciais ajustadas devem necessariamente observar as regras postas no Código Civil, ressalvando-se a hipótese excepcional em que, desde devidamente justificada, o juiz poderá efetuar a redução equitativa das arras confirmatórias ou penitenciais, à luz dos parâmetros do artigo 413 do Código Civil.
Gleydson K. L. Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e professor da graduação e mestrado da UFRN.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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