No início deste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria (7 x 4), que incide Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) na integralização de imóveis ao patrimônio de pessoas jurídicas, nos casos em que o valor do imóvel exceder o (valor do) capital social integralizado.
Operação bastante comum no contexto de planejamentos sucessórios, reestruturações patrimoniais e fases iniciais de empreendimentos imobiliários, a transferência do imóvel para uma pessoa jurídica pode (ou não) estar sujeita ao ITBI.
Em breve síntese, o ITBI é um imposto municipal cobrado, dentre outras situações, na transmissão onerosa de imóveis, como é o caso da permuta ou compra e venda. Entretanto, a Constituição Federal prevê que a transmissão de imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital não está sujeita ao ITBI, a não ser que a atividade preponderante da pessoa jurídica (que recebeu os imóveis) for a compra e venda ou locação de bens imóveis (atividade imobiliária).
Em outras palavras: se um imóvel for transferido (por uma operação de aumento de capital) para uma pessoa jurídica, essa operação (de integralização) não estará sujeita ao ITBI — por imunidade prevista na Constituição Federal. Todavia, se essa pessoa jurídica for, por exemplo, uma holding imobiliária, a transmissão (para o patrimônio dessa holding) estará sujeita ao imposto. Por outro lado, se o mesmo imóvel for integralizado, por hipótese, em uma pessoa jurídica cuja atividade preponderante seja de agroindústria, não há que se falar em custo tributário na transferência da propriedade.
A Constituição Federal não faz qualquer menção à proporção entre o valor do imóvel que foi/será transferido e o capital social da sociedade que recebeu/receberá o imóvel. O requisito principal, para o reconhecimento da imunidade, está relacionado à preponderância da atividade, calculada com base na receita operacional da pessoa jurídica.
Entretanto, o STF — no julgamento (em sede de repercussão geral) do RE 796.376/SC envolvendo a empresa Lusframa Participações Societárias Ltda. — interpretou a imunidade constitucional sobre o ITBI digamos, no mínimo, de forma curiosa.
Caso concreto envolvendo o ITBI
O contexto é muito simples: os sócios da Lusframa integralizaram o capital da sociedade (da Lusframa) no valor de 24 mil reais mediante a transmissão (incorporação) de 17 imóveis no valor total de 802 mil reais.
Na deliberação sobre o aumento de capital, os sócios determinaram que 778 mil reais (802 mil reais menos 24 mil reais) seriam destinados para a conta de reserva de capital — que compõe o patrimônio líquido da sociedade. Entretanto, as autoridades fiscais do município de São João Batista (SC) entenderam que a diferença estaria sujeita ao ITBI. Após alguns anos de discussão, o assunto chegou até o STF.
A Suprema Corte tinha em mãos a seguinte discussão: a parcela dos 17 imóveis transferida para o patrimônio da Lusframa e alocada como reserva de capital estaria sujeita ao ITBI? Ou seja, apenas a parcela alocada para a conta de capital social estaria “protegida” pela imunidade? Uma vez que a imunidade do ITBI em integralização de capital está prevista em nossa Constituição, caberia ao STF decidir sobre o assunto.
E qual foi o entendimento que prevaleceu no plenário virtual? “Prevaleceu”, pois, como mencionado, foi uma decisão por maioria de votos. Em síntese, a tese vencedora concluiu que a parcela destinada à reserva de capital da Lusfarma está sujeita ao ITBI, uma vez que não tributar o valor destinado para a reserva de capital seria interpretar o artigo 156 da Constituição (que prevê a regra de imunidade) de forma extensiva.
Com o devido respeito à conclusão do leading case, entendemos não fazer sentido essa interpretação. Em nosso ponto de vista, a decisão é superficial e padece de aprofundamento nas regras tributárias, contábeis e societárias. Vamos enumerar alguns argumentos que sustentam as nossas críticas:
O que diz a Constituição sobre o assunto
A Carta Magna dispõe que não incide ITBI quando se incorpora (transmite) imóvel ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital.
Pois bem. Os imóveis foram transferidos para o patrimônio da Lusframa? Sem dúvida. Do ponto de vista jurídico, houve a transferência de propriedade para a sociedade — ou seja, o imóvel passou a integrar o conjunto de bens da Lusframa. Do ponto de vista contábil, as contas de capital social e reserva de capital são também registrados no patrimônio líquido. Dessa forma, em qualquer interpretação que se queira dar, os 17 imóveis passaram a incorporar o patrimônio (jurídico ou contábil) da sociedade. Ou seja, os fatos estão de acordo com a previsão constitucional.
Quer dizer então que a expressão “realização de capital” apenas significa subscrição do capital social?
De forma alguma. Vale lembrar que uma sociedade pode ser financiada por recursos dos sócios (capital próprio) ou por intermédio de terceiros (capital de terceiros). No patrimônio líquido, identifica-se o capital próprio — ou seja, todo o capital líquido que a sociedade possui. Contabilmente, registra-se no patrimônio líquido o capital social, as reservas, as ações em tesouraria e os ajustes de avaliação patrimonial. Assim, em nosso entendimento, a expressão “realização de capital” é sinônima de “integralização de recursos”, ou financiamento da sociedade que recebe o recurso (no caso, um bem imóvel). Esse recurso — seja destinado à conta de capital social ou à reserva de capital — se caracteriza como integralização de recursos pelos sócios. Ou seja, a realização do capital pode ser feita por capital próprio ou por capital de terceiros. A integralização do capital social é apenas uma das formas de realização de capital.
E onde se lê “realização de capital social”?
A norma de imunidade do ITBI faz referência apenas aos “bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital”. Ou seja, novamente, não há qualquer restrição à destinação do bem ou direito ao capital social, como firmado no caso em destaque. Se o legislador quisesse restringir a imunidade apenas ao que é destinado para o capital social, assim teria feito. Entretanto, o termo utilizado foi apenas “capital” — que deve ser entendido como o recurso (seja dinheiro, bens ou direitos) que financia a sociedade. Capitalizar uma empresa significa aportar recursos que irão servir para a manutenção das atividades da sociedade. Esse aporte de capital pode (ou não) ser inteiramente destinado para a subscrição do “capital social”. A alocação entre capital social e reserva de capital não modifica o ato juridico de capitalizar (transferir recursos para) uma sociedade. Tanto é que ambos são fontes de recursos e carregam o termo “capital” — seja como substantivo (“capital social”) ou adjetivo (“reserva de capital”).
Qual a base de cálculo do ITBI?
O Código Tributário Nacional estabelece que a base de cálculo do ITBI será o valor venal do bem transmitido. Quanto a esse ponto, parece-nos ter ocorrido uma grande confusão no critério utilizado para o cálculo do imposto.
Como sabemos, o que ocorre na prática é o seguinte: para evitar o ganho de capital, as pessoas físicas podem transferir bens para as pessoas jurídicas pelo valor constante da declaração de imposto de renda (faculdade prevista no artigo 23 da Lei n° 9.249/95). Em termos práticos, o imóvel detido pela pessoa física deixa de constar em sua declaração e passam a constar cotas/ações de sociedade pelo mesmo valor do imóvel. Não há ganho para a pessoa física, que apenas “troca” um bem pelo outro.
Contudo, por se tratar de operação imobiliária onerosa empreendida entre a pessoa física (sócia) e a pessoa jurídica, ocorre a tributação pelo ITBI.
Assim, independentemente do valor transferido pelas pessoas físicas (para evitar ganho de capital), a base de cálculo para fins de ITBI é o valor de mercado, o que, na grande maioria dos casos, é mais alto que o valor histórico (declarado pela pessoa física).
Dessa forma, o ITBI é calculado com base no valor de mercado do imóvel, em avaliação feita pelo município em que o bem se encontra. Em contrapartida, para fins de composição do capital social da empresa e contabilização no ativo da sociedade, o valor utilizado é o da declaração de imposto de renda do sócio que integralizou o bem. Ou seja, valores totalmente distintos.
A destinação do valor do imóvel — para capital social e para reserva de capital, por consequência, utiliza os valores da declaração de imposto de renda. Entretanto, o que parece ter sido feito pelo acórdão analisado foi considerar como base de cálculo o valor destinado para a conta de reserva de capital, como se o valor venal fosse irrelevante para fins de ITBI. O que, inevitavelmente, vai contra a base de cálculo legal do imposto.
O acordão dá, ainda, uma pitada adicional ao mencionar que “a imunidade não alcança o valor dos bens” – que pode ser interpretado de diversas formas, como valor de mercado, valor histórico (de declaração) ou valor cadastral.
E de onde surgiu a regra de “valor que exceder o capital social integralizado”?
Em nosso ponto de vista, trata-se exatamente do que o STF rechaça ser feito: interpretação extensiva da imunidade. No caso em questão, foi feita uma interpretação extensiva de uma norma que é literal por si só. O resultado foi prejudicial ao contribuinte e, sem sombra de dúvidas, resultará em litígios entre contribuintes e fazendas municipais.
Diante de um cenário de clamor muito forte por uma reforma tributária que simplifique a gigantesca complexidade do nosso sistema tributário, é ainda mais importante termos a certeza de que a nossa Corte Superior trará um mínimo de segurança jurídica em discussões que se arrastaram durante anos.
Infelizmente, entendemos que o voto vencedor poderia ter sido mais assertivo em seus argumentos, principalmente levando em conta a relevância do assunto (julgado em regime de repercussão geral). A transmissão de imóveis para pessoas jurídicas — bastante utilizadas em reorganizações patrimoniais e operações societárias — merecia mais atenção.
Compartilhamos o entendimento de que operação de transmissão de imóveis ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital é imune (para fins de ITBI) quando a atividade preponderante da pessoa jurídica não for imobiliária — independentemente se parte do valor aportado for destinado para a conta de reserva de capital, tal como determina a Constituição Federal.
*Colaborou: Júlia Barreto, associada do escritório Freitas Ferraz Capuruço Braichi Riccio Advogados.
Fonte: Legislação & Mercados
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