quarta-feira, 3 de junho de 2015

CAUTELAS NA COMPRA DE IMÓVEIS: NADA MUDA COM A LEI 13.097/2015 (MP 656/2014)


Tornou-se comum a utilização de factoides jurídicos, notadamente estampados em Medidas Provisórias, depois convertidas em lei, sem o menor critério, para anunciar “novidades” que não existem e representam, na verdade, apenas a ratificação daquilo que a jurisprudência construiu e o sistema já prevê.

Me refiro à Medida Provisória 656, de 7 de outubro de 2014 convertida na Lei13.097/2015 que, nos artigos 54 a 56 (arts. 10 a 12 da MP), apenas ratifica aquilo que há muito se entende em razão da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça.

Eis o teor do seu art. 54: Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil [projeto do NCPC, art. 844];III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; eIV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 do Código de Processo Civil [projeto do NCPC, arts. 808 e 860].

Alardeou-se, precipitadamente, que a partir dela o adquirente não precisaria mais se preocupar, a não ser com a verificação da matrícula.

Pior. Há vozes que sustentam a boataria jurídica fomentada pela sociedade da informação, desinformando em verdade e anunciando aos quatro ventos que “agora, com a lei, não é mais necessário pesquisar o vendedor do imóvel” (sic).

Não é, definitivamente, assim e muito menos tão simples quanto parece e demonstrarei os motivos da minha ilação.

Posso adquirir tranquilamente um imóvel se não houver penhora, arresto, sequestro ou qualquer pendência registrada ou averbada na matrícula?

Definitivamente não.

A par de o art. 54 da Lei 13.097/2015 estabelecer a eficácia dos negócios jurídicos imobiliários sem que haja qualquer constrição ou gravame na matrícula, esta presunção, como já decorria do sistema consolidado na Súmula 375 do STJ, é relativa.

Por outras palavras, evidentemente – e não haveria necessidade da MP para isso – se houver registro ou averbação de gravame, a presunção de ineficácia da aquisição ou recebimento de direitos sobre o imóvel em face de ações reais, dívidas e restrições administrativas é absoluta, ou seja, não admitirá qualquer prova em sentido contrário.

Todavia, se não houver o registro, não significa, automaticamente, que o adquirente está livre tanto da fraude contra credores quanto da fraude à execução.

Não havendo registro de qualquer pendência, a conclusão evidente, evidentíssima, aliás, é que o ônus da prova de conhecimento do gravame ou constrição se transfere para o credor ou prejudicado.

Isto significa que presume-se, de forma relativa, a higidez da transferência, modificação ou extinção do direito sobre o imóvel se não houver registro ou averbação do gravame ou constrição, mas não significa que não tenha havido fraude contra credores ou fraude à execução.

Se não houver registro ou averbação de gravame, a eventual fraude será objeto de verificação fática, caso a caso, pela demonstração, pelo credor ou pelo prejudicado, da má-fé do adquirente.

Essa é a conclusão que se extrai do parágrafo único do art. 54 da Medida Provisória 656/2014, segundo o qual “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.”

Portanto, se – e percebam que o condicionante é importante – o adquirente estiver de boa fé ao operar a aquisição ou o recebimento de garantia imobiliária, a ele não poderão ser opostas “situações jurídicas não constantes da matrícula”, ou seja, ações, penhoras, arrestos etc.

Contudo – e aí está a confusão de muitos – não significa que, não havendo o registro ou averbação de gravames ou constrições na matrícula, o sistema prestigie o negócio e beneficie o terceiro que haja procedido com má-fé.

Seria até absurdo pensar o contrário.

Posso exemplificar: imaginem alguém que adquira imóvel de pessoa que, a par de não ter, em face do seu imóvel, qualquer gravame registrado ou averbado, responde por dívidas ajuizadas, possui títulos protestados e assim por diante na mesma comarca da situação do imóvel.

O adquirente poderá ser considerado “de boa fé” nessa situação?

Evidentemente que não, de tal sorte que haverá a fraude à execução em relação às ações já ajuizadas e a fraude contra credores em relação àquelas não ajuizadas, até em virtude da interpretação correta do parágrafo único, do art. 54, da Lei 13.097/2015.

A única diferença é que, nesses casos – de ausência de registro ou averbação do gravame ou constrição – competirá ao credor demonstrar a má-fé do adquirente, o consilium fraudis, posto que em favor do adquirente do imóvel ou do recebedor da garantia consistente em imóvel militará a presunção – relativa – de boa-fé.

Outro exemplo pode ser dado: pela leitura do art. 54, I, da Lei 13.097/2015, exige-se o registro da citação de ações reais ou reipersecutórias (que buscam o bem).

Imaginem, então, a falsificação de documentos e a outorga de escritura com documentos falsos do vendedor que propõe, em face do adquirente, ação anulatória da escritura.

O adquirente poderia se furtar da citação, vender o imóvel para terceiro e, ainda que esse terceiro não tenha extraído qualquer certidão de distribuição de ações em face do vendedor, como não havia qualquer gravame na matrícula, a venda seria mantida e o titular do imóvel, que teve seus documentos falsificados, perderia?

Obviamente que essa não é a solução e sequer é a interpretação correta da Lei13.097/2015.

É óbvio que nos casos exemplificados, se o adquirente não tomou a cautela de extrair as certidões na comarca do imóvel e de residência do alienante, a presunção – relativa, é bom que se diga – de boa-fé que em seu favor milita, resta facilmente afastada.

Portanto, as certidões devem continuar sendo extraídas.

Sem extrair as certidões de praxe, a má-fé aflora e, a par de não haver qualquer constrição na matrícula, o negócio jurídico praticado será ineficaz perante ação ou execução já aforada, que tenham o condão de reduzir o alienante à insolvência; poderá ser anulada em razão da fraude contra credores no caso de dívidas ainda não ajuizadas através da ação pauliana ou revocatória; ou, será anulada nos casos de falsificações de documentos do titular do imóvel.

Pensar diferente seria premiar a má-fé, o que, definitivamente não decorre do sistema.

Então o que mudou em relação ao entendimento consolidado na Súmula 375 do STJ?

Nada.

De acordo com a Súmula 375/STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.

O Ministro José Delgado resume bem a questão: “Não há que se falar em fraude contra credores se, quando da alienação do bem, não havia registro de penhora. Para tanto, teria que restar nos autos provado que o terceiro adquirente tinha conhecimento da demanda executória, o que não ocorreu no caso em apreço. Precedentes. Recurso especial não-provido"(REsp nº 791.104/PR, Relator Ministro José Delgado, DJ de 06/02/2006, p. 222).

O que isso quer dizer?

Quer dizer exatamente aquilo que foi incorporado, com uma linguagem confusa, pela Medida Provisória 656/2014 e, agora, pela Lei 13.097/2015, ou seja, que não havendo registro na matrícula, de qualquer gravame, ao credor incumbe a prova que o adquirente agiu de má-fé.

E essa prova pode consistir apenas na constatação que decorre da ausência do oferecimento das certidões de praxe na comarca do imóvel, quando facilmente, por tais documentos, poderia o adquirente verificar a insolvência do alienante ou a dívida.

Nesse sentido:

Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Embargos de terceiro. Adquirente de boa-fé. Penhora. Registro. Ônus da prova. 1 - Ao terceiro adquirente de boa-fé é facultado o uso dos embargos de terceiro para defesa da posse. Não havendo registro da constrição judicial, o ônus da prova de que o terceiro tinha conhecimento da demanda ou do gravame transfere-se para o credor. A boa-fé neste caso (ausência do registro) presume-se e merece ser prestigiada. 2 - Recurso especial conhecido e provido. (REsp 493914/SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 08/04/2008, DJe 05/05/2008)

A alteração na Lei 7.433/1985 (que trata dos requisitos de lavratura das escrituras), deixa clara a conclusão da necessidade de certidões para garantir a boa-fé do adquirente.

O Decreto 93.240/1986, regulamentador da Lei 7.433/1985 (que trata dos requisitos de lavratura das escrituras), no § 2º do inc. V do art. 1º está assim redigido: “§ 2.º As certidões referidas na letra a do inc. III deste artigo [TRIBUTOS], somente serão exigidas para a lavratura das escrituras públicas que impliquem a transferência de domínio e a sua apresentação poderá ser dispensada pelo adquirente que, neste caso, responderá, nos termos da lei, pelo pagamento dos débitos fiscais existentes.”

Todavia, a Lei 7.433/85 foi alterada pela MP 656/2014 e, agora, pelo art. 59 da Lei13.097/2015 para incluir o § 2º do art. 1º nos seguintes termos: “O Tabelião consignará no ato notarial, a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando dispensada sua transcrição.”

Traduzindo, é obrigação funcional do notário, doravante, mencionar a existência de feitos ajuizados, donde conclui-se que essas certidões deverão – não poderão – ser apresentadas ao tabelião que consignará a sua entrega na escritura.

Nesses termos, fica ainda mais clara a necessidade de obtenção dessas certidões, além de outras como a dos cartórios de protestos da comarca do imóvel e do domicílio do alienante se diferente for, para manutenção da presunção relativa da boa-fé do adquirente de imóvel cuja matrícula não espelha qualquer gravame ou constrição e consequente higidez do negócio jurídico praticado.

Luiz Antonio Scavone Junior - Advogado, Administrador pela Universidade Mackenzie, Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP, Professor e Coordenador do Curso de pós-graduação em Direito Imobiliário da EPD. Professor Titular do Curso de Mestrado em direto da EPD, Professor de Direito Civil e Mediação e Direito Arbitral nos cursos de graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, autor de diversas obras e, entre elas: Direito Imobiliário – teoria e prática.
Fonte: Artigos JusBrasil

NOTA DO EDITOR:
Clique no link abaixo para acessar a íntegra da Lei 13.097/2015:

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