terça-feira, 10 de julho de 2018

ANOTAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE NO DIREITO IMOBILIÁRIO


I - O PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE

Significa que toda inscrição deve recair sobre um objeto precisamente individualizado. Este princípio, que é consubstancial ao registro de imóveis, desdobra o seu significado para abranger a individualização obrigatória de todo o imóvel que seja objeto do direito real, a começar pelo de propriedade, pois a inscrição não pode versar sobre todo o patrimônio ou sobre um número indefinido de imóveis; toda dívida que seja garantida por um direito real (como por exemplo a hipoteca), deve ser objeto desse princípio.

A Lei Civil o exige tanto em relação ao imóvel que é transmitido ou gravado como à dívida, que é objeto de garantia.

A especialização deve ser tal que atenda aos dados geográficos que se exigem para individualizar o imóvel, para determinar o espaço terrestre por ele ocupado.

Veja-se o que é dito no artigo 176, parágrafo § 1º, n. 3, da Lei n. 6015/73:

Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3. (Renumerado do art. 173 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).

§ 1º A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: (Renumerado do parágrafo único, pela Lei nº 6.688, de 1979)

I - cada imóvel terá matrícula própria, que será aberta por ocasião do primeiro registro a ser feito na vigência desta Lei;

II - são requisitos da matrícula:

1) o número de ordem, que seguirá ao infinito;

2) a data;

3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação: (Redação dada pela Lei nº 10.267, de 2001)

a - se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área; (Incluída pela Lei nº 10.267, de 2001)

b - se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver. (Incluída pela Lei nº 10.267, de 2001)

4) o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário, bem como:

a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou à falta deste, sua filiação;

b) tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda;

5) o número do registro anterior;

III - são requisitos do registro no Livro nº 2:

1) a data;

2) o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:

a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou, à falta deste, sua filiação;

b) tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda;

3) o título da transmissão ou do ônus;

4) a forma do título, sua procedência e caracterização;

5) o valor do contrato, da coisa ou da dívida, prazo desta, condições e mais especificações, inclusive os juros, se houver.

Os nomes dos logradouros decretados pelo Município são publicados e, às vezes comunicados, assim como a mudança de numeração dos prédios. De toda sorte, caberá ao registro competente averbar de oficio.

As confrontações abrangem as linhas e os nomes dos confrontantes.

Como explicitou LIsipo Garcia(A transcrição, pág. 174), as linhas de limites, com o seu comprimento no terreno, são fixas, mas os nomes dos confrontantes em cada uma delas são variáveis em consequência das sucessivas mudanças dos proprietários vizinhos.

A individualização dos imóveis, pela menção dos requisitos apontados em lei, notadamente os seus característicos e confrontações e seu número de inscrição atual, é exigida seja em atos particulares seja em atos judiciais.

A lei exige que o imóvel, quando do registro, apresente as suas características, limites e confrontações, devendo vir de corpo certo.

II - O ARTIGO 500, CAPUT, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL

Não pode haver compra e venda sem um objeto. A venda de uma herança futura é proibida.

Reza o vigente art. 500, caput e § 1º, do Código Civil de 2002, verbis:

Art. 500. Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional ao preço.

§ 1º Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não exceder de 1/20 (um vigésimo) da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio.

Por definição, a expressão ad corpus, cujo significado seria “por inteiro” ou “assim como está”, é utilizada nas transações imobiliárias para exprimir uma venda cujo preço foi estipulado sobre a propriedade como um todo, na forma como foi apresentada ao comprador, não existindo qualquer tipo de referência à sua metragem.

De outra parte, a expressão ad mensuram serve para designar aquele negócio jurídico imobiliário cuja estipulação do preço foi condicionada à especificação das dimensões e da área do imóvel, o que enseja ao comprador o direito à complementação da área, abatimento do preço e, até mesmo, ao desfazimento do contrato.

Lembra Gilberto de Souza(Compra e venda ad mensuram: alguns esclarecimentos) que diz-se que a compra e venda é ad corpus quando os contratantes levam em consideração o corpo, o objeto e as características de localização, suas comodidades e outras características que são levadas em consideração, sendo que a área do imóvel não tem quase importância.

A frase geralmente utilizada nos contratos para identificar esta modalidade de compra e venda é a de que “as dimensões do imóvel são de caráter secundário, meramente enunciativas e repetitivas das dimensões constantes no registro imobiliário”.

Para Sílvio Rodrigues, in “Direito Civil”, vol. 3, 11a edição, Editora Saraiva, São Paulo, p. 170, “tem-se entendido ser a referência à medida meramente enunciativa, quando vem acompanhada da locução ‘mais ou menos, quando a coisa vendida é designada por limites certos, quando o imóvel está murado ou cercado, e ainda quando há especificação ou nomeação de confinantes”.

Washington de Barros Monteiro, em seu Curso de Direito Civil, Ed. Saraiva, 8ª ed., pg. 109, traz notas esclarecedoras sobre este instituto:

“Na venda ad corpus “o vendedor aliena o imóvel como um corpo certo e determinado, perfeitamente individuado pelas confrontações, claramente caracterizado pelas suas divisas, discriminadas e conhecidas: a fazenda Petrópolis, a chácara Marengo, a vila Kirial. Na venda ad corpus, compreensiva de corpo certo e individuado, presume-se que o comprador examinou as divisas do imóvel, tendo intenção de adquirir precisamente o que dentro delas se continha. A referência à metragem ou à extensão superficial é meramente acidental e o preço é global, pago pelo todo, abrangendo a totalidade da coisa”. (...) “Entende-se que o comprador percorreu o imóvel, conheceu sua extensão, verificou as divisas. Comprou-o afinal, não em atenção à área declarada, mas pelo conjunto que lhe foi mostrado, conhecido e determinado. Estando murado ou cercado quase todo o imóvel comprado reputa-se acidental a declaração das medidas, ou quando há especificação ou nomeação dos confinantes.”

III - O IMÓVEL RURAL

Quanto a especialização dos imóveis rurais, fala-se em módulo rural.

De acordo com o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), no art. 4º, incisos III e II, entende-se por Módulo Rural como a área rural fixada afim de atender às necessidades de uma propriedade familiar, um imóvel que possa ser diretamente explorado por uma família para lhes garantir a subsistência e viabilizar sua progressão socioeconômica. Em outras palavras, trata-se de uma unidade de medida agrária, expressa em hectares, que busca refletir a interdependência entre a dimensão, a situação geográfica do imóvel rural, a forma e as condições do seu aproveitamento econômico.

IV - O FORMAL DE PARTILHA

Também aplica-se quanto ao princípio o chamado formal de partilha.

O formal de partilha é um documento de natureza pública expedido pelo juízo competente para regular o exercício de direitos e deveres decorrentes da extinção de relações jurídicas entre pessoas nas ações de inventário, separação, divórcio, anulação e nulidade do casamento. O referido título é admitido a registro no fólio real por força do artigo 221, inciso IV, da Lei Federal 6.015/73, denominada Lei de Registros Públicos.

Pelo formal de partilha, se demonstra que um imóvel foi dividido entre ex-cônjuges ou herdeiros, conforme o caso. A respeito da matéria, Maria Helena Diniz( Sistemas de Registros de Imóveis. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009) ensina que “transitando em julgado a sentença, o herdeiro receberá os bens que lhe couberem e um formal de partilha, que terá força executiva contra o inventariante, os demais herdeiros e seus sucessores, a título singular ou universal”.

Observe-se o artigo Art. 654 do CPC: Pago o imposto de transmissão a título de morte e juntada aos autos certidão ou informação negativa de dívida para com a Fazenda Pública, o juiz julgará por sentença a partilha. Parágrafo único. A existência de dívida para com a Fazenda Pública não impedirá o julgamento da partilha, desde que o seu pagamento esteja devidamente garantido.

Deste modo, uma vez homologada a partilha por sentença, o herdeiro que houver recebido o bem poderá reivindicá-lo diretamente do inventariante, herdeiro ou legatário que o detenha ou possua. Trata-se de título executivo judicial.

Quando, ao final da partilha, os bens e direitos que compõem o monte-mor forem atribuídos exclusivamente a um herdeiro, depois de deduzidas eventuais despesas e encargos, o título a ser expedido será a carta de adjudicação e não o formal de partilha. Desta forma, conclui-se que o título em estudo pressupõe a pluralidade de herdeiros.

Os requisitos do formal de partilha nas ações de inventário estão previstos no artigo 1027 do Código de Processo Civil. In suma:

“Artigo 1027 – Passada em julgado a sentença mencionada no artigo antecedente, receberá o herdeiro os bens que lhe tocarem e um formal de partilha, do qual constarão as seguintes peças: I – termo de inventariante e título de herdeiros; II – avaliação dos bens que constituíram o quinhão do herdeiro; III – pagamento do quinhão hereditário; IV – quitação dos impostos; V – sentença.”

Excepcionalmente, será possível a substituição do formal de partilha por certidão que contenha a transcrição da sentença que homologou a partilha, expedida pelo juízo onde tramitou a ação de inventário, desde que o quinhão hereditário recebido não seja superior a 5 (cinco) salários mínimos. No mesmo sentido, o parágrafo único do artigo supracitado enuncia que:

“Parágrafo único. O formal de partilha poderá ser substituído por certidão do pagamento do quinhão hereditário, quando este não exceder 5 (cinco) vezes o salário mínimo vigente na sede do juízo; caso em que se transcreverá nela a sentença de partilha transitada em julgado.”

Ensinou Afrânio de Carvalho(Registro de Imóveis, segunda edição, páginas 228 e 229):

“Quando se procede a partilha de um patrimônio por morte do seu titular, essa partilha, conforme for o monte-mor, tanto poderá atribuir a cada um dos herdeiros imóveis inteiros, perfeitamente individuados, como partes de imóveis, a serem individuados posteriormente. No primeiro caso, a partilha esgotará tudo quando interessa aos herdeiros obter e ao registro inscrever, ao passo que, no segundo, ele ficará em meio de uma operação, que só se completará com a divisão e demarcação dos imóveis. Portanto, a partilha, conquanto se inclua entre os juízos divisórios, nem sempre o é de modo pleno, pois costuma transformar apenas uma indivisão absoluta, em que o direito de cada interessado se acha difuso pelo monte-mor, numa indivisão relativa, em que esse direito se radica em certos imóveis, mas em partes aritméticas, de modo que, a rigor, pode desdobrar-se deveras nestas alternativas: a) divisória, quando o pagamento de cada um dos herdeiros é composto de imóveis inteiros, o que faz cessar desde logo a indivisão hereditária; b) semidivisória, quando o pagamento de cada um dos herdeiros é formado de partes de imóveis, o que não faz cessar desde logo a indivisão hereditária, exigindo, ainda, o juízo da divisão e da demarcação.

Conquanto a primeira alternativa seja a mais rápida e vantajosa, a mais comum é a segunda, em que à partilha se segue a divisão e demarcação, fazendo na primeira a determinação aritmética dos quinhões hereditários e na segunda a sua concretização no terreno.

Disse ainda Afrânio de Carvalho(obra citada) que quando a partilha põe termo efetivamente à indivisão, por consistir em divisão real dos imóveis da herança, cada um dos quais é atribuído em sua integridade a um herdeiro, satisfazendo a necessidade da especialização, pois o formal extraído em nome desse herdeiro traz as características e confrontações do imóvel com que foi separadamente quinhoado para habilitá-lo à inscrição. Mas, quando a partilha não põe fim à indivisão, por consistir apenas em divisão ideal de imóveis da herança, cada um dos quais é atribuído de forma fracionária a mais de um herdeiro, deixa de satisfazer, a rigor, à necessidade da especialização, de vez que o formal de cada um dos herdeiros somente traz as características e confrontações do imóvel comum, de todo dentro do qual a titularidade do interessado se mistura com a dos demais.

É obrigatória a inscrição do formal de partilha quando o imóvel cabe por inteiro no quinhão do herdeiro, como quando apenas pare dele aí caiba, por haver ele sido atribuído em condomínio a mais de um herdeiro. Sendo assim a obrigatoriedade da inscrição dos formais de partilha abrange uma e outra hipótese, quer o pagamento a cada um dos herdeiros se faça em bens diferentes, quer em partes ideais dos mesmos bens. Ensinou, aliás, Carvalho Santos(Código Civil interpretado, volume VII, artigo 532) que há exigência da inscrição de todos os formais de partilha.

A obrigatoriedade estende-se ao formal de partilha do legatário, quando o legado é de imóvel.

Após a realização da partilha, geralmente, as partes atribuídas aos herdeiros, objeto dela, permanecem indivisas.

Problema há quando existe hipótese de venda desses quinhões partilhados.

Os herdeiros, como proprietários, podem, nesse intervalo, querer vende-las ou hipoteca-las.

Em isso havendo, interpõe-se o princípio da especialização dos imóveis, para a venda, hipoteca, propriedade fiduciária. Mas, para Afrânio de Carvalho, no conflito, na hipótese, entre o princípio da continuidade e da especialidade dos imóveis, este segundo é atenuado, aceitando-se a especialização do todo, sem exigir a individual, tanto mais quanto esta sobreviverá mais tarde com a divisão, cujo efeito é declarativo.

V - A HIPOTECA E A INDIVISIBILIDADE

Por força da indivisibilidade da hipoteca esta se estende a todo imóvel em que é inscrito.

Quanto a hipotecabilidade da parte ideal de imóvel em condominio, ela é admitida no Direito Alemão. No Brasil, duas correntes se formaram: uma entendia ser válida a hipoteca de parte ideal do imóvel, ainda que este seja materialmente indivisível, porque a indivisibilidade do "todo" não importa na inalienabiilidade da parte, desaparecendo a hipoteca, por falta de objeto, se ao condômino nada tocar ao imóvel, como ensinou Lafayette(Direito das Coisas, n. III, pág. 528 e 529). Outra corrente sustentava ser inválida essa hipoteca, salvo se o imóvel for materialmente divisível, porque a indivisibilidade é incompatível com a especialização e enseja o desaparecimento da hipoteca, se ao condômino nada tocar no imóvel, como lecionou Clóvis Beviláqua(Rev. de Direito, volume IV, pág. 44), na mesma linha seguida por Dídimo da Veiga(Manual do Código Civil, volume III, parte 3, pág. 108 - 117) e ainda Lacerda de Almeida(Direito das Cousas, Parte Especial, pág. 292 a 293). Mas, o Supremo Tribunal Federal, em decisão de 4 de dezembro de 1918, consoante TIto Fulgêncio(Hipoteca, 1928, pág. 36) já dizia que a especialização, em ambos os casos, reflete a da partilha, da qual procede, consistindo na referência a uma fração certa de um imóvel individuado.

Desta forma, durante a indivisão, fase legalmente transitória, atenua-se mais uma vez o princípio da especialidade para conciliá-lo com o de indivisibilidade da hipoteca.

Rogério Tadeu Romano - Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.
Fonte: Artigos Jus Navigandi

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