O Código Civil de 2002, no art. 2038, afirma que a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses passa a ser proibida. Entretanto, em relação às já existentes, o artigo estabelece que suas relações jurídicas permanecerão disciplinadas pelo art. 686 do Código Civil de 1916.
Isso quer dizer que a obrigação originária de pagar o laudêmio é, em regra, do vendedor, do alienante. Todavia, desde que haja um acordo de vontades, um pacto entre as partes, é possível transferir a obrigação para o adquirente/comprador. Cumpre, neste momento, tecer breves comentários sobre o laudêmio.
Laudêmio, didaticamente, é o pagamento realizado pelo vendedor ou comprador, a título de compensação financeira para a União, quanto às áreas de Marinha, para o Município, quanto aos imóveis de sua titularidade gravados com enfiteuse, para a Igreja Católica sobre os seus imóveis e até mesmo para particulares, quanto aos bens gravados pelo direito real de enfiteuse constituído até a vigência do Código Civil de 2002 (janeiro de 2003).
O laudêmio, portanto, não é tributo, o que implica sua não submissão às leis e regulamentos tributários. É, como já mencionado, compensação financeira pelo não exercício do direito de preferência de determinado titular (União, Município, Igreja Católica, particular), cuja raiz reside numa relação contratual.
Dessa forma, quando da ocorrência de uma transferência onerosa da propriedade ou do domínio útil de determinado imóvel que se encaixe nos critérios aqui estabelecidos, surgirá a obrigação de pagar o laudêmio, cuja responsabilidade originária é do vendedor. Entretanto, no contrato de compra e venda deste imóvel poderá constar cláusula que modifique a obrigação, transferindo-a para o comprador, desde que essa cláusula esteja em consonância com a função social do contrato e respeite princípios básicos como direito à informação e boa-fé objetiva.
Para que o leitor compreenda melhor sobre o caso concreto em que a modificação da obrigação esteja em jogo, trago um exemplo de cláusula contratual considerada que, sob a minha ótica, é abusiva, por ferir os requisitos acima elencados:
10 – DO PAGAMENTO
(...)
10.4 – Serão de responsabilidade do adquirente:
10.4.1 – todas as despesas necessárias à lavratura da escritura
10.4.2 – a iniciativa necessária à lavratura da escritura, inclusive a obtenção de guias, declarações e documentos exigíveis, com o consequente pagamento, às suas expensas, de taxas, impostos, emolumentos, registros, e demais encargos que se fizerem necessário
10.4.3 – as custas processuais e taxas judiciárias, quando for o caso.
10.4.4 – o pagamento das tarifas bancárias devidas na contratação.
10.4.5 – apresentação junto à agência da escritura/contrato registrado.
A função social do contrato impede que este instrumento seja utilizado para atividades abusivas, de modo a gerar danos para a parte contrária ou para terceiros, vez que, conforme o art. 187 do Código Civil, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Da leitura da cláusula transcrita, facilmente percebemos a afronta ao princípio referido.
No caso, temos o exemplo de uma cláusula genérica que tenciona disciplinar a transferência de uma obrigação específica, legalmente prevista. Ora, para que a transferência efetivamente possa ocorrer, é preciso que o adquirente tenha plena consciência de que a obrigação passa a ser sua a partir da assinatura do contrato. Para isso, é necessário que exista cláusula expressa, com conteúdo cristalino, extreme de dúvidas, sendo esta a única maneira de respeitar a função social do contrato e efetivar o princípio do direito à informação.
Quando isto não ocorre, a cláusula deve ser considerada abusiva e a transferência da obrigação como inexistente, permanecendo o alienante com o dever de pagar o laudêmio.
Observe que, no ítem 10.4.2, o comprador ficará responsável pelo pagamento de “taxas, impostos, emolumentos, registros e demais encargos que se fizerem necessários”. Ora, já vimos que o laudêmio não possui natureza tributária, não podendo amoldar-se à taxas e impostos. Também não é emolumento, tampouco registro. Admitir que a compensação financeira enquadra-se em “demais encargos” é, inexoravelmente, induzir o comprador ao erro.
A linha cognitiva desta cláusula induz o adquirente a pensar que será responsável por arcar com todos os custos que a legislação o obriga, tão somente. Não existem elementos mínimos que digam “ei, comprador, o laudêmio deverá ser custeado por você”, ante o caráter genérico de “demais encargos”.
Em decisão datada de 02/12/2013, o desembargador André Andrade, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao julgar um agravo de instrumento sobre o tema em debate, assinalou que “não há, no texto contratual, qualquer menção à obrigação de pagamento do laudêmio”. Prosseguiu “Como não há previsão expressa acerca da transferência de obrigação quanto ao pagamento do laudêmio, haja vista que a Cláusula Décima Oitava esmiúça as obrigações imputadas ao promitente comprador (fls. 73/74), não há que falar em pagamento da referida obrigação pelo ora agravante”.
A decisao do TJ-RJ exemplifica perfeitamente o quanto defendido por este artigo. É preciso fornecer informação clara e adequada, bem como interpretar o instrumento contratual à luz da sua função social, sem os quais estaremos diante de cláusulas abusivas.
Por fim, diante de cláusula genérica que tenha por objetivo a transferência da obrigação do pagamento do laudêmio, esta não se consuma, de modo a eximir o comprador de qualquer responsabilidade sobre a compensação financeira paga ao titular da propriedade ou domínio útil.
Carlos Mendes - Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia
Fonte: Artigos JusBrasil