A convenção de condomínio não tem o poder de sobrepor ao direito de locação, uma derivação do direito constitucionalmente garantido de propriedade. E também não pode vetar que ela ocorra por temporada, já que a prática está prevista no artigo 48 da Lei de Locações (Lei 8.245/1991) é feita por contrato respaldado pelas normas do Código Civil. Logo, o fato de a oferta ocorrer via plataforma digital não pode induzir a outra conclusão.
É o que defende Vitor Butruce, advogado do Airbnb, aplicativo que aproxima usuários e anfitriões e permite aluguel de imóveis ou mesmo cômodos por período pré-definido, com todas as facilidades pertinentes à era da economia compartilhada inaugurada por outras empresas como Uber ou iFood.
Recentemente, ele atuou como assistente no julgamento em que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que um prédio de Porto Alegre tem, sim, o direito de impedir que um dos proprietários ofereça sua unidade em serviços de locação como o do Airbnb. Foi o primeiro precedente da corte sobre o tema, em resultado que, como mostrou a ConJur, gerou dúvidas e dividiu opiniões entre advogados especialistas.
Nessa entrevista, Butruce propõe a análise do julgado sob um prisma de distinguishing. O caso concreto, afirma, não espelha a atividade desempenhada na plataforma. Isso faz com que o precedente não seja aplicável de maneira abstrata e geral a qualquer demanda envolvendo o Airbnb. Isso porque a anfitriã processada converteu o próprio apartamento em hostel, oferecendo serviços e quartos pelo aplicativo.
"É isso que se vê incompatível com a convenção do condomínio", define o advogado. "Os proprietários de imóveis podem ficar tranquilos que decisão se refere a um caso específico de Porto Alegre que não representa o universo da comunidade e não afeta o direito dessas pessoas de alugar imóveis em condomínios via plataformas. Os condomínios não estão autorizados a, de maneira geral e abstrata, proibir que alguém alugue um apartamento pela plataforma", aponta.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual é a conclusão do Airbnb sobre o julgamento da 4ª Turma?
Vitor Butruce — Por esse ter sido o primeiro processo a chegar aos tribunais superiores, é natural que tenha gerado bastante interesse e também dúvidas sobre o entendimento do que foi debatido. Os proprietários de imóveis podem ficar tranquilos que decisão se refere a um caso específico de Porto Alegre que não representa o universo da comunidade e não afeta o direito dessas pessoas de alugar imóveis em condomínios via plataformas. Os condomínios não estão autorizados a, de maneira geral e abstrata, proibir que alguém alugue um apartamento pela plataforma. A atividade regular de locação por temporada, de modo geral, está respaldada na Lei de Locações e é uma derivação do direito de propriedade. A decisão foi específica, concentrada na análise sobre a atividade desempenhada pela recorrente que, ao converter sua unidade em hostel, descaracterizou a atividade geralmente praticada pelos anfitriões.
ConJur — Por que a causa julgada pela 4ª Turma do STJ não pode ser amplamente aplicada para os casos de imóveis locados via Airbnb?
Butruce — É um caso específico com algumas peculiaridades marcantes. Uma das premissas que vieram do acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi o fato de a anfitriã ter convertido o apartamento dela em hostel. Ela fez obras, converteu a sala em dois cômodos e teria prestados serviços como refeições e lavanderia, e essa moldura fática foi algo determinante. Nesse contexto, em vez de discutir o Airbnb de modo geral e abstrato, discutiu-se aquela atividade concreta. E ao longo do debate, os ministros reconheceram que o uso do Airbnb e que a atividade dos anfitriões é lícita, que não se confunde com a hotelaria e, portanto, afastaram a aplicação do artigo 23 da Lei Geral do Turismo.
ConJur — E quais as consequências?
Butruce — Quando a gente reúne esses aspectos — as especificidades do caso, a licitude da atividade do Airbnb e o fato de ela não se confundir com hotelaria — percebemos duas coisas. A primeira é que, por essa decisão, os condomínios não estão autorizados a proibir a locação por temporada mediante aplicativos de modo geral. Não foi isso que se discutiu e nem se decidiu. Mais do que isso, a manifestação do ministro Antonio Carlos Ferreira ao final fez questão de situar que seria um equívoco divulgar o resultado desse julgamento atrelado aos aplicativos. O caso não deve ser tratado como precedente geral.
[Nota da redação: o ministro Luís Felipe Salomão, relator do caso e que ficou vencido, discordou da afirmação do ministro Antonio Carlos Ferreira. “É claro que formamos um precedente. Pode ter variações, caso a caso, mas formamos. Aqui, a modalidade foi de locação por plataforma, e a convenção vedava. Nesse caso, prevaleceu a convenção, e é essa a posição da maioria, que deve ser respeitada. Desenganadamente, no caso e para o caso, se formou precedente.”]
ConJur — Por que não?
Butruce — Há outros detalhes na decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que passam pelo julgamento. A disputa surgiu antes mesmo de o Airbnb ser realidade no Brasil. A disputa entre essa anfitriã e o condomínio começa entre 2011, 2012. Ela fez as obras e já alugava a unidades para estudantes. Foi nesse contexto de locação, não por Airbnb, que surge a disputa. A ação é de 2014, e o Airbnb só se torna realidade alguns anos depois, sobretudo com as Olimpíadas de 2016. Isso chama atenção para mostrar que não era o aplicativo, não era a atividade feita pelos locadores mediante o aplicativo, mas a atividade especificamente desempenhada por aquela anfitriã considerada dentro da moldura que veio dos autos.
ConJur — A legislação existente é suficiente para abarcar as atividades do Airbnb?
Butruce — De uma maneira geral, a atividade que os anfitriões desempenham é o que trata o artigo 48 da Lei de Locações. E que inclusive já era praticada por outros meios. A grande novidade que o Airbnb trouxe foi ser um meio tecnológico, moderno e inovador para facilitar a conexão entre as pessoas. Antigamente, tudo era feito por anúncios em imobiliárias, por filipetas, ou no boca-a-boca. Aí sim o Airbnb traz a inovação, tornando-se representativo da economia do compartilhamento. Mas o contrato entre as pessoas continua sendo de locação por temporada.
ConJur — Mas não foi suficiente no caso julgado pela 4ª Turma, em que considerou-se "hospedagem atípica".
Butruce — Essa atividade específica que os ministros entenderam como "hospedagem atípica", diante dos fatos dessa anfitriã que converteu seu apartamento em hostel, não é representativa do universo da plataforma. Essa combinação não é estimulada pela plataforma. De maneira geral, o que é feito é a locação por temporada, regida pelo artigo 48 da Lei de Locações: cessão do temporária do espaço contratada por período determinado inferior a 90 dias, a qualquer das finalidades que a lei considere residencial. Entre elas inclusive lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel. É exatamente isso que compreende o universo da imensa maioria das locações realizadas pela plataforma. E na visão dela, já estão previstas na legislação.
ConJur — Mesmo em que a locação do espaço se dê, por exemplo, por um ou mais quartos para pessoas diferentes?
Butruce — O contrato de locação, tanto pelo Código Civil como pela Lei de Locações, não exige que a locação seja de toda a unidade e exclusiva. Isso não faz parte da essência do contrato de locação. Então esse aspecto não altera o contrato. Diferente do que aconteceu nesses autos, em que era uma circunstância mais complexa. A anfitriã mudou o apartamento. Os ministros levaram em consideração também que teria havido prestação de serviços de lavagem e refeições e chegaram à conclusão, como veio na decisão das instâncias inferiores, de que isso seria converter em um hostel. É isso que se vê incompatível com a convenção do condomínio.
ConJur — A maioria entendeu que é possível a extensão dos poderes da convenção de condomínio diante do exercício do direito de propriedade do apartamento. Como avalia?
Butruce — As pessoas têm o direito de alugar seus imóveis. E se lei prevê o aluguel por temporada no artigo 48, a conclusão é que elas têm que poder exercer esse direito. A convenção não pode excluir um direito em razão do meio pelo qual a oferta é veiculada. Se é permitido alugar um apartamento em cidade de veraneio via imobiliária, não faz sentido que a convenção de condomínio diga que não pode alugar se a aproximação com o locatário tiver ocorrido por plataforma digital. Na nossa visão, uma convenção de condômino não pode se sobrepor a um direito que é garantido pela Constituição, que integra o núcleo do direito de propriedade, reforçado pelo Código Civil e regulado pelas Lei de Locações. Não é algo compatível com o regime de direitos. Decisões do STJ já indicaram que o condomínio não pode tudo.
ConJur — Quais decisões?
Butruce — A 3ª Turma do STJ já reconheceu que a convenção de condomínio não pode proibir de ter animais domésticos, por exemplo. E a 4ª Turma reconheceu que a convenção não pode proibir o condômino inadimplente de usar as áreas comuns. Ela não pode proibir o exercício de um direito que a lei reconhece. A questão não deve ser sobre saber quem prevalece: se é a convenção ou o direito de propriedade. Entendemos que a conversa tem que migrar do debate de prevalência para o debate de convergência, de convivência e, consequentemente, para o diálogo. Uma vez que fizermos essa mudança de perspectiva, observamos que existem caminhos para convergência.
ConJur — Quais caminhos?
Butruce — Partindo da premissa de que proibir o exercício de um direito é ilegal, existem diferentes aspectos que podem ser debatidos entre condomínio, síndico e anfitriões, e que são estimulados pela plataforma. O Airbnb estimula e espera que os anfitriões comuniquem ao condomínio que colocam unidades à disposição na plataforma. É importante e razoável comunicar com antecedência quem são as pessoas que vão usar qual apartamento e em qual período. O condomínio também pode pedir que se exija documentação dessas pessoas, que eventualmente encaminhem cópias dos documentos para serem conferidos no acesso ao prédio. E os locatários devem observar as mesmas regras que se aplicam aos demais condôminos. A locação deve ser limitada ao número de pessoas que seja compatível com estrutura do apartamento e do prédio. E agora uma coisa mais recente: não pode alugar uma unidade pelo Airbnb para marcar festa.
ConJur — As mesmas regras da convenção condominial.
Butruce — O Airbnb tem feito esforço para que o diálogo seja também entre condomínios e o Airbnb. O próprio condomínio pode entrar em contato pelo Canal do Vizinho, uma funcionalidade da plataforma. Por ali, o síndico ou um condômino pode reportar alguma ocorrência, e o Airbnb vai entrar em contato com o locatário para tentar solucionar a questão. O Canal do Vizinho talvez seja a medida mais proativa da plataforma em fazer essa aproximação e permitir que os condôminos percebam que existem espaços de convivência entre seus interesses e os de quem quer alugar. No fim do dia, é no melhor interesse do condomínio que a pessoa possa dar utilidade digna de tutela à sua unidade. Há proprietários que usam essa renda extra para pagar contas do imóvel, para manter em dia a taxa condominial. Proibi-los de exercer esse direito só vai trazer judicialização e litigiosidade.
ConJur — Como o Judiciário tem tratado esses casos?
Butruce — Do que temos observado, existem tanto disputas entre condomínios que pretendem impedir os condôminos de exercer o direito de locação — portanto, são os proponentes da ação —como casos em que os condôminos tentam aprovar alguma medida para proibir a pessoa de alugar, e aí consequentemente o anfitrião move ação para garantir esse direito. E do que temos observado, conforme aumenta o conhecimento sobre como plataforma funciona, temos visto que progressivamente os tribunais vão começando a entender também. Temos visto surgir decisões prestigiando o direito dos anfitriões e desprestigiando tentativas de proibir as locações em abstrato.
ConJur — No caso do STJ, o Airbnb atuou como assistente do locador. A plataforma não ajuíza ações sobre o tema?
Butruce — Não. As ações correm entre condomínios e os anfitriões, e o Airbnb não é parte. No caso, atuou como assistente porque, quando noticiou-se que seria realizado o julgamento, a plataforma entendeu que poderia comparecer aos autos para trazer esclarecimentos para subsidiar a análise. Isso foi bastante importante, porque reconheceu-se que o Airbnb, como plataforma, é atividade licita, que não se confunde com uma atividade hoteleira, não está submetido ao artigo 23 da Lei Geral do Turismo.
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário