Ainda que o Código Civil exija a anuência da maioria absoluta dos coproprietários para dar posse de imóvel a terceiros, eventual inexistência desse consentimento não gera a nulidade do contrato de locação, tornando-o incapaz de produzir efeitos jurídicos. Os vícios que podem levar à anulação do contrato são aqueles previstos nos artigos 166 e 167 do Código Civil, e a legislação não impõe a obrigatoriedade da presença de todos os proprietários no instrumento locatício.
O entendimento foi fixado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao manter acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que declarou a rescisão de contrato de aluguel e determinou o despejo do locatário – o qual firmou o contrato com apenas um dos proprietários do imóvel.
O autor da ação de despejo – que posteriormente faleceu e foi sucedido pelos herdeiros – entrou com o pedido em nome próprio e como representante legal dos demais proprietários. Entretanto, duas das coproprietárias alegaram que não fizeram parte do contrato de locação nem autorizaram a sua celebração.
Relator do recurso das coproprietárias, o ministro Villas Bôas Cueva explicou que, nos termos do artigo 1.314 do Código Civil, admite-se que qualquer um dos condôminos reivindique a coisa de terceiro e defenda a sua posse. No entanto, ponderou, para que seja alterada a destinação do bem, ou para dar a posse a alguém, é necessário o consenso dos condôminos.
Por outro lado, no caso dos autos, o ministro apontou que não foi demonstrada a ocorrência de nenhum dos vícios capazes de gerar a nulidade do negócio jurídico, como aqueles descritos no Código Civil. "Ademais, é incontroverso nos autos que o contrato foi celebrado entre pessoas capazes e houve a transmissão da posse do imóvel para o réu", afirmou.
"A respeito da capacidade do autor para firmar contrato de locação, oportuno observar que a lei nem sequer exige a condição de proprietário para sua celebração", complementou o ministro.
Por esses motivos, Villas Bôas Cueva entendeu que não poderia ser acolhida a tese de nulidade do contrato, de modo a exonerar o locatário de qualquer obrigação, especialmente em virtude do princípio da vedação do enriquecimento sem causa, previsto no artigo 884 do Código Civil.
Ao manter o acórdão do TJSP, o relator também considerou "inusitado" que a tese de nulidade do contrato de locação tenha sido levantada pelas coproprietárias, pois elas, em tese, teriam interesse no recebimento dos aluguéis.
"Conforme concluiu o tribunal de origem, mostra-se irrelevante, no presente caso, a demonstração de consentimento dos coproprietários para que o autor firmasse o contrato de locação, sendo devidos os aluguéis vencidos e inadimplidos até a desocupação do imóvel", finalizou o ministro.
A matéria foi objeto de discussão no REsp 1861062.
Tem-se que o condômino não poderá dar isoladamente em locação coisa comum, por ter apenas a parte ideal. Dessa forma, a locação de bem indivisível somente será permitida se houver mútuo consenso entre os condôminos, prevalecendo a maioria em caso de divergência (CC, arts. 1323 e 1325). A maioria será calculada não pelo número, mas pelo valor dos quinhões, uma vez que a obrigatoriedade das deliberações necessitará do apoio da maioria absoluta, isto é, de votos que representem mais de meio do valor total(artigo 125, § 1º).
Na matéria, sob o império do Código Civil de 1916, Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, volume III, 1975, pág. 248) ensinou que o condômino não pode dar em locação uma parte da coisa locada, sem o consentimento dos consortes, por faltar-lhe a liberdade de dar posse a estranho, na coisa em comum. Tal entendimento estava na linha traçada por De Page.
No que tange ao instituto do condomínio, observa-se que o direito brasileiro adotou a teoria da propriedade integral ou total. Desse modo, “cada condômino tem a propriedade plena e total sobre a coisa, o que é limitado pelos direitos dos demais” como observou Flávio Tartuce (Manual de Direito Civil. Volume único. 3. ed. São Paulo: Método, 2013, pág. 946).
Na hipótese dita o artigo 1314 do Código Civil:
"Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la. Parágrafo único. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros".
Ensinou Paulo Lôbo (Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2020):
“A alusão que a lei faz ao 'consentimento dos demais' (CC, art. 1.314, parágrafo único) remete-o ao critério comum da deliberação, ou seja, da maioria absoluta das partes ideais; a lei não exige unanimidade”.
Mas, se não for observada essa maioria, haveria nulidade do negócio?
Ainda que seja exigível a anuência da maioria absoluta dos coproprietários para dar posse da coisa comum a terceiros, não é possível afirmar que eventual inexistência desse consentimento enseje a nulidade do contrato de locação, tornando-o incapaz de produzir qualquer efeito jurídico.
Sobre o tema julgou o STJ:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO EM recurso especial. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO RENOVATÓRIA. JULGAMENTO ULTRA PETITA. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO RECORRIDO INATACADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 283 DO STF. ENTREGA DO IMÓVEL. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO POR PERDA DO OBJETO. CONDENAÇÃO DA AUTORA/LOCATÁRIA AO DE PAGAMENTO DOS ALUGUEIS DEVIDOS NO PERÍODO. NECESSIDADE. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O presente recurso especial foi interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73, razão pela qual devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado Administrativo nº 2, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/73 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016), devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 2. A ausência de impugnação ao fundamento adotado pelo acórdão recorrido que, por si só, é capaz de manter o entendimento então firmado, atrai a incidência, por analogia, da Súmula nº 283 do STF. 3. A ação renovatória tem por objeto principal o alongamento do prazo contratual, por igual período. Por conseguinte, pela mesma via e por estar intrinsecamente vinculada com a locação, a atualização do valor do aluguel também é objeto da demanda. 4. A locação pressupõe a entrega de um bem mediante contraprestação. Assim, enquanto o locatário estiver na posse do imóvel, é devida a retribuição pelo seu uso, ainda que findo o contrato, sob pena de enriquecimento sem causa, circunstância defesa à luz do art. 884 do CC/02, e violação da boa-fé objetiva, insculpida no art. 422 do CC/02. 5. Recurso especial a que se nega provimento” (REsp 1.528.931/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/11/2018, DJe 20/11/2018).
É o que disse Cunha Gonçalves (Novo Curso de Direito Civil: Contratos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020):
'A locação de coisa alheia será válida enquanto durar a posse do locador; e somente ficará sem efeito quando a coisa locada for reivindicada pelo seu verdadeiro proprietário, pois ficando evicto o locador, evicto ficará também o locatário'. (...) Ademais, a possibilidade de sublocação também ratifica a possibilidade de alguém, que não é proprietário, mas mero possuidor, poder locar um bem'”.
Rogério Tadeu Romano - Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado
Fonte: Revista Jus Navigandi
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