Há algum tempo, o Poder Judiciário tem sido provocado a se manifestar sobre uma prática imemorial do mercado imobiliário, principalmente de imóveis novos, a respeito do pagamento da remuneração do corretor.
Não obstante todo mundo que compra um imóvel novo direto de uma construtora saiba que o comprador arca com a remuneração do corretor, alguns compradores têm ido à Justiça, com base no Código de Defesa do Consumidor, pedir a restituição, em dobro, deste valor, quando o negócio de compra e venda do imóvel é desfeito.
No Distrito Federal, a 1ª e a 2ª turma recursal do Tribunal de Justiça têm posições completamente divergentes sobre o assunto, mas está em julgamento um incidente de uniformização no TJDFT (
UNJ 2012 01 1 20194-0 - suspenso por pedido de vista) a fim de pacificar esta controvérsia entre as turmas.
Ainda que a questão seja decidida pelo TJDFT em um sentido ou outro, temos que a discussão ainda está longe de acabar e não impede que nós, enquanto estudiosos do direito, manifestemos nossa opinião e defendamos uma terceira corrente.
O professor e filósofo Michael J. Sandel, atualmente professor-visitante na Sorbonne, em Paris, em sua obra recentemente traduzida para o português "O que o dinheiro não compra – os limites morais do mercado", diz que fomos resvalando da situação de ter uma economia de mercado para a de ser uma sociedade de mercado. E a diferença entre uma coisa e outra ele mesmo explica: A diferença é esta: uma economia de mercado é uma ferramenta valiosa e eficaz – de organização de uma atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é um modo de vida em que os valores de mercado permeiam cada aspecto da atividade humana. É um lugar em que as relações sociais são reformatadas à imagem do mercado. (pág. 16)
Em nosso contexto brasileiro atual, estamos tendenciosos a encarar todas as relações jurídicas como relações de consumo, supervalorizando o CDC e desvalorizando o Código Civil.
Depois de estudar com profundidade todas as correntes que se propõem a definir os elementos da relação de consumo – consumidor, fornecedor, serviço e produto -, podemos concluir, com a maior tranquilidade, que a corretagem não é um contrato sujeito ao CDC.
Especificamente sobre compra e venda de imóveis na planta ou em construção feita entre construtoras e incorporadoras de um lado e clientes pessoas físicas do outro, não há dúvida de que o contrato entre eles sofre dupla incidência – CC e CDC.
Isto se dá porque o CDC define o que é produto e serviço e quem é fornecedor e consumidor, havendo, em princípio, adequação que sustente a aplicação deste instituto ao negócio de compra e venda de imóveis.
Ocorre que o contrato de corretagem, que não é apenas uma etapa dentro do contrato de compra e venda, é um contrato autônomo, que não se enquadra no CDC porque não é um serviço, tal como definido nesta lei, nem em outra.
Das lições de Arnaldo Rizzardo 1, extraímos o seguinte excerto:
Concebe-se a prestação de serviços como contrato sinalagmático através do qual uma das partes contratantes, designada prestadora (no Código de 1916 'locadora'), se compromete a prestar serviços de mão- de- obra, que a outra, denominada beneficiária ou recebedora (no Código de 1916 'locatária'), se compromete a remunerar.
Já a corretagem é o contrato através do qual uma pessoa se obriga, mediante remuneração, a intermediar, ou agenciar, negócios para outra, sem agir em virtude de mandato, de prestação de serviços ou de qualquer relação de dependência.
Ainda da lição de Arnaldo Rizzardo 2:
O CC de 2002, que disciplinou a espécie, no que era omisso o Código anterior, traz, no art. 722, a definição: "pelo contrato de corretagem, uma pessoa, não ligada a outra em virtude do mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas".
Corretor não presta serviço na sua acepção jurídica, portanto não é fornecedor de serviço. Pelo conceito do CC, que, relembre-se, é posterior ao CDC, o corretor obriga-se a obter negócio e não fornecer um serviço. O corretor é a pessoa que aproxima quem quer comprar e quem quer vender.
E essa aproximação de pessoas, essa mediação, por definição do CC não é serviço.
Se o corretor não presta serviço, logo sua atividade não está abrangida pelo CDC, mas tão somente pelo direito civil, que não determina a quem cabe o pagamento de sua remuneração.
Não é o corretor que vende o imóvel. Ele simplesmente aproxima comprador e vendedor para que estes façam o negócio. Consumidor é o comprador e a construtora ou incorporadora é a fornecedora do produto. Nos negócios de compra e venda de imóveis não há fornecimento de serviços.
Isto significa que a corretagem, e todas as suas implicações, estão sujeitas unicamente aos dispositivos do CC e da
Lei de Corretagem, não sendo possível tomar o CDC, nem por empréstimo, para regular a situação.
Não vislumbramos necessidade de mudança de hábitos nas imobiliárias, construtoras e incorporadoras na forma como vendem os imóveis, desde que resguardado os princípios contratuais do CC em relação à corretagem, quais sejam, boa-fé e probidade:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Não há no CC disposição sobre quem deva pagar a remuneração (e o termo do Código Civil é este mesmo) no caso da corretagem, como também não há disposição sobre isto na lei de corretagem.
Estando o comprador do imóvel informado de que o pagamento desta remuneração será feita por ele, cabe a ele aceitar ou não. Haverá vício de consentimento se ele não for informado. Mas vício de consentimento dentro do CC não dá direito ao pagamento em dobro, e sim a anulação do contrato com o ressarcimento do que se pagou.
O contrato de corretagem também não é um contrato acessório. Ele se perfectibiliza quando as pessoas que foram aproximadas por ele entabulam o negócio. Se posteriormente estas pessoas desfazem o negócio – compra e venda – por várias legítimas razões, o corretor não tem mais responsabilidade.
Se interpretarmos o § 2º do art. 3º do CDC de forma literal, de imediato nulificaremos todosos contratos previstos no CC, diferentes do contrato de prestação de serviços, deixando de fora, e não por muito tempo, somente as relações trabalhistas.
Não parece que esta seja o caminho a ser percorrido.
Outro equívoco em tentar reduzir as diversas relações jurídicas a relações de consumo é infantilizar o cidadão. Isto porque o CDC é norteado pelo princípio da vulnerabilidade, que parte do pressuposto de que o consumidor é o elo mais fraco da corrente, ou que consumidor e fornecedor não integram a relação jurídica como iguais.
As relações civis são baseadas na liberdade contratual, na boa-fé e na probidade. Só haverá invalidação de negócios jurídicos se a livre vontade das partes tiver sido de alguma forma violada pelas figuras elencadas no art. 138e seguintes do CC – erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
O Código Civil parte do pressuposto que uma pessoa no gozo de sua capacidade civil tem discernimento de suas escolhas e das consequências desta escolha e que ele integra uma relação jurídica em igualdade de condições. Neste aspecto, o CC é emancipador, pois atribui a todas as partes as responsabilidades pelo negócio.
Não se está dizendo que o CC é melhor que CDC na medida em que aquele emancipa e este infantiliza a pessoa. Mas, há de se ter em vista o delicado equilíbrio entre estes dois ramos do direito, para que um não aniquile o outro. Para que não resvalemos na esparrela de em vez de "ter uma economia de mercado" "ser uma sociedade de mercado".
O Código Civil não pode ser diminuído de importância. Ele está na base de todas as sociedades civilizadas. Reduzi-lo a um livro histórico ou limitado a questões de família e sucessões é um invencível equívoco.
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1 (Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pág. 612)
2 (Op. Cit. Pág. 775/6)
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Indira Quaresma - Procuradora federal e docente da ENAFE – Escola Nacional de Aperfeiçoamento, Formação e Editora.
Fonte: Migalhas de Peso