As transformações sociais, econômicas e políticas ensejam mudanças na sociedade. Tais transformações provocam mudanças no direito; mudam-se os princípios, alteram-se os paradigmas legais, surgem novas formas contratuais. A massificação da sociedade e das relações sociais, provocadas pela intensa intervenção da economia e da sociologia no direito, levou à massificação contratual.
Em meados de Março de 2020 instalou-se no Brasil a pandemia gerada pelo vírus COVID-19, dentre as medidas adotadas pelas autoridades competentes, o fechamento de vários estabelecimentos comerciais que foram classificados como supérfluos ou de não atividades essenciais.
Diante deste fato inevitável a economia sofreu um baque, gerando desemprego, diminuição de renda e ainda, o risco de morte iminente pelo vírus. Diante deste cenário, por óbvio que a diminuição de renda, tanto de pessoa física quanto de empresários, fez com que os negócios jurídicos sofressem consequencias graves, dentro eles os pedidos de revisional e resolução dos contratos de locação de imóveis, propiciando aos operadores do direito a aplicação das teorias já existentes no ordenamento jurídico.
Estampado nas leis pátrias, há alguns artigos que trazem soluções para a questão, porém não há uma uniformidade no entendimento jurisprudencial sobre o tema, nem mesmo qualquer precedente, o que gera diversos resultados de acordo com cada julgador.
Observa-se, portanto, que as resoluções e revisões de contratos de locação, levando em consideração a pandemia causada pelo Coronavírus (Covid-19), que acomete o Brasil desde meados de março de 2020, não pode basear-se em uma única teoria, deve se analisar o caso concreto para decidir.
Diante deste cenário, verifica-se que muitos cidadãos e empresas têm tido dificuldades de honrar os compromissos e obrigações assumidos anteriormente à pandemia, notadamente pela queda brusca em seus rendimentos e faturamentos.
2. O CONTRATO DE LOCAÇÃO
A publicação do Código Civil de 2002, em seu art. 421 disciplinou a teoria geral dos contratos, embutido nesse artigo está o princípio da função social do contrato em que o direito a entabular as vontades por meio do contrato, será exercido nos limites do referido princípio.
Os Enunciados do Centro de Estudos Judiciário do Conselho da Justiça Federal direcionam estudos no sentido de que, embora o artigo trate da função social do contrato, este tem como seu pape principal a função econômica.
O Superior Tribunal de Justiça pronunciou a respeito:
“A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Ao assegurar a venda de sua colheita futura, é de se esperar que o produtor inclua nos seus cálculos todos os custos em que poderá incorrer, tanto os decorrentes dos próprios termos do contrato, como aqueles derivados das condições da lavoura”. (STJ-3ª T., REsp 803.481, Min. Nancy Andrighi, j. 28.06.07, DJU 1.8.07)
A Lei 8.245/91 disciplina as relações contratuais da locação urbana, e tem como regra geral do contrato de locação em sendo bilateral, oneroso, comutativo, típico e consensual, não-formal e de trato sucessivo.
O contrato de locação gera obrigação de restituir, modalidade da obrigação de dar coisa certa, aplicando-se no que couber, quanto à perda e deterioração da coisa, os arts. 238 e 240 e, quanto aos acréscimos e melhoramentos, os arts. 241 e 242 ambos do Código Civil.
Em 2009, a Lei de Locação de Imóveis sofreu forte alteração. Com a finalidade de modernizar e alavancar o setor, na tentativa de desburocratizar e facilitar o acesso ao imóvel objeto de locação, a principal alteração foi a previsão expressa de concessão de liminar para o despejo do inquilino inadimplente, cujo contrato não tivesse garantia.
A influência estatal neste cenário de crise gerada pela pandemia instalada pelo vírus COVID-19 é um desafio enorme, o risco da omissão quanto da intervenção é alto, pelo que em que pese a urgência com que as decisões hão de ser tomadas, há de se resgatar o passado para solidificar a conduta a ser seguida.
3. AS TEORIAS APLICÁVEIS NO CASO DE RESOLUÇÃO DOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO OCASIONADA PELO CORONAVÍRUS
3.1. APLICAÇÃO DA TEORIA DE CASO FORTUITO E DE FORÇA MAIOR – ART. 393 DO CÓDIGO CIVIL
Alguns estudiosos, levados a analisarem os contratos de locação a luz na situação atual da sociedade, defendem que é possível a aplicação dessa teoria em que o locatário suspende os pagamentos de alugueis, diante do caso fortuito ou força maior.
A teoria consiste em que, como caso fortuito quanto a força maior podem ser entendidos como ações de causas que se situam fora do alcance da vontade de uma parte, impedindo-a de seu cumprimento. São eventos supervenientes e inevitáveis, ou seja, fora do alcance do poder humano, e ainda fora de qualquer previsão que pudesse ser acordada em contrato.
Na jurisprudência a seguir o Superior Tribunal de Justiça definiu o conceito:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.564.706 - PE (2014/0307212-8) RELATOR: MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA RECORRENTE : BANCO DO NORDESTE DO BRASIL S/A - BNB ADVOGADOS : NIELSON MOREIRA DIAS JUNIOR E OUTRO(S) MARIANA CERQUEIRA FELIX RECORRIDO : PEDRA DE AMOLAR AGROPECUARIA LTDA RECORRIDO : MARIA CRISTINA BANDEIRA DA COSTA AZEVEDO ADVOGADOS : JOÃO BENTO DE GOUVEIA MARIANA DOURADO LAURINDO GOMES E OUTRO(S) INTERES. : SÉRGIO DE ALBUQUERQUE MARANHÃO NEVES INTERES. : EDUARDO MARTINS CORTÊS INTERES. : ALICE PAULA COLAÇO RIBEIRO CORTÊS EMENTA RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO EXTRA PETITA. SÚMULAS NºS 283 E 284/STF. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL. PROPRIEDADE RURAL. INVASÃO. MOVIMENTO DOS SEM TERRA (MST). FORÇA MAIOR. REQUISITOS. artigo 393, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA DO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO. INEVITABILIDADE DO EVENTO. NÃO CONFIGURAÇÃO.1. Cinge-se a controvérsia a examinar se é possível reconhecer a invasão de propriedade rural pelo Movimento dos Sem Terra (MST) como hipótese de força maior apta a ensejar a exoneração do cumprimento da obrigação encartada em cédula de crédito rural. 2. A teor do que preconiza o artigo 393, parágrafo único, do Código Civil, o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Os elementos caracterizadores das referidas excludentes de responsabilidade são: a necessariedade (fato que impossibilita o cumprimento da obrigação) e a inevitabilidade (ausência de meios para evitar ou impedir as consequências do evento).g.n. 3. A invasão promovida por integrantes do MST em propriedade rural por si só não é fato suficiente para configurar o evento como de força maior, pois devem ser analisados, concretamente, a presença dos requisitos caracterizadores do instituto. 4. No caso dos autos, não restou comprovado que a ocupação ilegal da propriedade rural pelo MST criou óbice intransponível ao cumprimento da obrigação e que não havia meios de evitar ou impedir os seus efeitos, nos termos do artigo 393, parágrafo único, do CC. Ônus que incumbia à parte autora da ação anulatória. 5. Recurso especial provido. ACÓRDÃO. Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro João Otávio de Noronha, decide a Terceira Terceira Turma , por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, João Otávio de Noronha (Presidente) e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 16 de agosto de 2016(Data do Julgamento) Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA - Relator
Assim, ao analisarmos o caso concreto, de acordo com esse entendimento, os locatários poderiam suspender os alugueis, pois a pandemia do coronavírus caracterizaria caso fortuito ou de força maior.
3.2. A APLICAÇÃO DA TEORIA DE ONEROSIDADE EXCESSIVA – ART. 478 DO CÓDIGO CIVIL
De acordo com essa teoria os contratos de locação se tornaram excessivamente onerosos para o locatário, uma vez que a pandemia tem atacado diretamente o faturamento dos empresários. Razão pela qual o locatário poderia pedir a revisão do contrato ou mesmo resolvê-lo.
Esse entendimento aplicar-se-ia as locações não residenciais, pois devemos analisar sempre o caso concreto, com o fechamento obrigatório e arbitrários das autoridades das atividade comerciais, os locativos tornaram-se excessivos, sem o faturamento das empresas.
Para a aplicação da onerosidade excessiva, é necessário o preenchimento dos requisitos básicos: cumulativamente: a prestação se torne excessivamente onerosa para o locatário; haja extrema vantagem para o locador.
Para a configuração dessa teoria, é imprescindível a presença dos requisitos, tanto que a jurisprudência já se manifestou ao contrário de sua aplicabilidade:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE MÚTUO HABITACIONAL. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA DO CONTRATO NÃO CONFIGURADA. SENTENÇA MANTIDA. 1. A aplicação da teoria da imprevisão como justificativa para a resolução de contratos de execução continuada pressupõe a ocorrência de acontecimento extraordinário que imponha um gravame a um dos contratantes a que corresponda um benefício em favor do outro. Inocorrência dessa circunstância na hipótese em que o mutuário passou a ter despesas extraordinárias e provisórias com medicamentos. 2. Hipótese em que, no ano de 2012, os medicamentos necessários para o tratamento do filho do autor já estavam sendo fornecidos pelo SUS, cuidando-se de contrato de financiamento imobiliário com encerramento previsto para o ano de 2038. 3. Impossibilidade de extinção antecipada do contrato, sem prejuízo de sua repactuação e ajustamento em razão dos eventos alegados. 4. Apelação da parte autora a que se nega provimento. (TRF-1 - AC: 00594359720114013800, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 25/07/2018, QUINTA TURMA, Data de Publicação: 08/08/2018)
No caso concreto, a pandemia do coronavírus até pode fazer com que as prestações das locações de imóveis se tornem excessivamente onerosas aos locatários. No entanto, não geram, de forma alguma, extrema vantagem aos locadores, pois todos estão sofrendo com a pandemia.
3.3. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DETERIORAÇÃO DA COISA CONTIDA NO ART. 567 DO CÓDIGO CIVIL EM ANALOGIA DA TEORIA DA EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO
Já essa corrente, a pandemia do coronavírus trouxe a impossibilidade de usar a coisa (o imóvel) conforme contratado. O que criaria uma espécie de deterioração do imóvel.
Veja-se o teor do art. 567 do Código Civil:
Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.
Essa teoria para a sua aplicação, é preciso uma análise de caso concreto, pois assim, se a coisa alugada se deteriorar sem culpa do locatário, ele poderá pedir a redução proporcional do valor do aluguel ou, ainda, resolver o contrato, caso o imóvel não sirva para a finalidade que se destina.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS – CONCLUSÃO
O período atual reverbera uma intensa necessidade de reflexão dos arranjos sociais, a cada dia o cenário muda, as incertezas são postas na mesa e a sociedade experimenta um trauma coletivo.
A locação de imóveis como demonstrado ao longo do artigo é atividade muito antiga, consagrada pela sociedade e disciplinada pelo Direito. O presente trabalho ocupou-se de realizar um recorte histórico sobre o assunto com a finalidade de reverberar reflexões sobre o tema e não o esgotar, haja vista a impossibilidade momentânea, pois os reclames sociais estão em ebulição e de difícil mensuração.
O tema habitação seja em que modalidade ou contexto for estudado sempre será um tema muito sensível para a sociedade. Pois, como narrado nas páginas acima, uma intervenção do legislativo pode ter efeitos colaterais severos, como também sua omissão pode amargar o sentimento de trauma coletivo experimentado pela sociedade.
A pandemia do medo gera um hard case para o Direito, pois a nova realidade não se subsumi perfeitamente às normas vigentes. O que não significa que não haja Lei que se aplique ao caso concreto, gerando desafios para o Estado em lidar com a nova ordem social.
Caso a União e os demais entes federativos optem por legislar sobre o assunto, uma boa solução é a observação do programa Legislar Melhor da União Europeia, a fim de que a norma possa contribuir com a pacificação social em um momento turbulência e incerteza.
Feitas estas considerações, espera-se ter contribuído para o debate, sem ter a intenção de ter a palavra final sobre a temática tratada, mas sim contribuir com a discussão acadêmica sobre a mesma que é tão relevante para a sociedade, pois alberga questões de viés social, econômica e jurídica.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Código Civil e legislação em vigor / Theotonio Negrão, José Roberto F. Gouvêa, Luiz Guilherme A. Bondioli, João Francisco N. da Fonseca. – 38. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Código de Processo Civil e legislação processual em vigor / Theotonio Negrão, José Roberto F. Gouvêa, Luiz Guilherme A. Bondioli, João Francisco N. da Fonseca. – 51. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Lei do Inquilinato Comentada / doutrina e prática : Silvio de Salvo Venosa, - 15. ed. - São Paulo: Atlas, 2020.
Araújo Júnior, Gediel Claudino de. Prática de Locação: lei do inquilinato anotada, questões práticas, modelos de peças / Gediel Claudio de Araújo Júnior. – 8. ed., ver., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018.
Simão, José Fernando. Pandemia e locação – algumas reflexões necessárias após a concessão de liminares pelo Poder Judiciário. Um diálogo necessário com Aline de Miranda Valverde Terra e Fabio Azevedo. Disponível em: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/835913055/pandemia-e-locacao. Acessado em 08 de Setembro de 2020.
Fonte, Bruno Macedo da. As relações locatícias na era da pandemia do Covi-19 e a (in)segurança jurídica no cumprimento das avenças. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54384/as-relaes-locatcias-na-era-da-pandemia-do-covi-19-e-a-in-segurana-jurdica-no-cumprimento-das-avenas. Acessado em 08 de Setembro de 2020.
Pâmella Batista Del Preto Queiroz - Sou advogada há mais de 10 anos, atuo nas áreas de direito imobiliário, administrativo, eleitoral, tanto consultivo quanto contencioso.
Fonte: Artigos Jus Navigandi
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