Depois de anos de discussão nas casas legislativas, finalmente foi promulgada, em julho de 2021, a chamada Lei do Superendividamento. De fundamental importância para a proteção das pessoas, especialmente as mais vulneráveis, que não raras vezes se veem reféns de dívidas impagáveis cuja origem, em muitos casos é a oferta de crédito "fácil" e sem critérios àqueles que sabidamente terão dificuldades para honrar seus compromissos.
Essa concessão de crédito de maneira desorganizada e, em boa parte das vezes, oferecido de forma acintosa, pode levar os consumidores à insolvência, trazendo muito mais problemas do que soluções a quem passa por um momento financeiro difícil.
Regulamentar a oferta de crédito a fim de evitar o superendividamento das pessoas sempre foi uma bandeira defendida pelos consumeristas, cuja figura central e mais importante é a professora Cláudia Lima Marques, incansável na luta pela promulgação da referida lei que alterou o Código de Defesa do Consumidor inserindo na referida legislação pontos específicos que buscam evitar a oferta descontrolada de empréstimos e financiamentos.
Dentre os superendividados, uma parcela significativa chegou nessa difícil situação em razão de financiamentos imobiliários, que se tornaram impagáveis ao longo do tempo, fazendo com que famílias perdessem todo o investimento de anos de trabalho.
Sem sombra de dúvida, os financiamentos imobiliários são os que trazem mais riscos às pessoas, especialmente porque as parcelas em geral são altas e o tempo de financiamento muito extenso. Mesmo para quem tem um planejamento detalhado e conservador, o longo período do contrato é o maior vilão, pois torna o planejamento mais imprevisível e mudanças drásticas na situação daqueles que contraíram a dívida, tem mais risco de ocorrer quando o lapso temporal é muito extenso.
Assim, a novel legislação foi clara ao excluir os casos de financiamentos que são obtidos por pessoas físicas para a aquisição da casa própria, retirando a possibilidade daquele que se viu em situação difícil, de buscar uma repactuação de pagamento do débito de forma judicial.
Isso porque, a Lei estabelece em seu artigo 104-A que "a requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no artigo 54-A deste código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas".
Porém, em que pese se tratar de pessoa natural, se o motivo do superendividamento advir de um contrato de financiamento imobiliário, a legislação impede essa possibilidade, ao estabelecer no §1º, do artigo 104-A, que "excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural".
Realmente referida exceção legal não parece fazer sentido, especialmente porque o espírito da lei não é fomentar o calote, mas possibilitar àqueles que de alguma maneira se viram impossibilitados que pagar as suas dívidas que o façam, mediante uma repactuação que possa adequar o fluxo de pagamentos à situação financeira do devedor.
A situação se complica ainda mais nos casos da incorporação imobiliária, que apesar de não se tratar de financiamento ou concessão de crédito, da mesma forma pode deixar o consumidor em situação difícil ou até impossibilitado de honrar os pagamentos a que se obrigou, levando à perda da quase totalidade dos valores investidos.
Isso porque a sistemática da incorporação imobiliária tem características próprias que, se em um primeiro momento pode se assemelhar a um financiamento, não o é. Nessa modalidade de compra de imóveis, popularmente conhecida como "venda na planta" o consumidor não compra nada e nem contrai empréstimo para pagamento do preço do imóvel que sequer existe.
A sistemática desse negócio específico é curiosa, pois o consumidor paga por algo que não existe, de forma adiantada, com a promessa de poder comprar o imóvel quando, e SE este ficar pronto. Para tanto começa a pagar para a incorporadora valores referentes à fase de obras, financiando-o, em boa parte, a construção do imóvel para a empresa.
Os valores mensais pagos são corrigidos mensalmente pelo Índice Nacional da Construção Civil (INCC), não raramente maior do que os índices inflacionários, o que faz com que os pagamentos mensais sofram reajustes constantes, assim como o saldo devedor.
Não obstante, os valores já pagos pelo consumidor não são reajustados, tampouco o capital investido é remunerado, o que na prática significa um empréstimo gratuito que o interessado na compra do imóvel faz para a empresa que prometeu construí-lo.
Ocorre que em muitas das vezes o promitente comprador do imóvel não tem fôlego para realizar todos os pagamentos durante a fase da construção, o que pode levar à inadimplência e, em muitos casos, ao chamado distrato.
Nessa situação, em que pese o consumidor ter "emprestado" dinheiro para a incorporadora e financiado boa parte da obra, além de não ter sido remunerado pelo capital que disponibilizou, perde parte substancial daquilo que já pagou.
Importante mencionar que em boa parte dos casos nos quais esse tipo de situação ocorre, grande parte da responsabilidade pelo insucesso do negócio é da própria incorporadora, que no afã de vender, na maioria dos casos, não verifica com a necessária atenção as reais condições financeiras daqueles que se mostram interessados em comprar um imóvel.
Ao contrário disso, o que se vê na prática nos estandes de vendas, são vendedores bem treinados para apresentar aos interessados todas as "vantagens" do negócio. Não importa qual o valor do imóvel negociado tampouco a renda do interessado na compra, sempre haverá uma fórmula que permitirá a realização do negócio. Entrada facilitada, parcelas a perder de vista e vendas sem consultas aos cadastros de crédito são algumas das facilidades oferecidas.
Aliás, nesse ponto da dispensa de consulta aos cadastros de crédito talvez esteja uma das maiores armadilhas. Isso porque, no momento inicial da negociação a incorporadora poderá dispensar essa consulta, afinal não há risco nenhum em prometer vender algo que não existe mesmo a quem não consiga realizar os pagamentos. A razão é simples, pois enquanto o imóvel não ficar pronto e o promitente comprador não quitar integralmente o preço, não receberá o imóvel, que continua sendo da incorporadora.
O grande problema nesse caso é quando o comprador for buscar o financiamento imobiliário, o que somente ocorre com a conclusão da obra e normalmente depois de ter pagado as parcelas da construção. Nesse momento o banco ou o agente financeiro somente concederá o crédito para o financiamento imobiliário propriamente dito, se o interessado demonstrar que tem condições de assumir a dívida. Não sendo aprovado o crédito pelo banco ou instituição financeira, o negócio não vai adiante e a maior parte do investimento pode ser perdido.
A nova legislação busca proteger os consumidores superendividados que chegaram a essa situação em decorrência da prática irresponsável na concessão de crédito, o que é louvável e necessário.
O grande problema é que a lei parece excluir dessa proteção os consumidores superendividados por essa modalidade de negócio, em que pese sistemática negocial na incorporação imobiliária ser semelhante àquela proibida pela novel legislação.
De acordo com a nova sistemática legal, é proibida a oferta que indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor ou que ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo.
Além disso é obrigação daquele que oferece o produto avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito.
Apesar disso, na contramão da proteção ora garantida aos consumidores superendividados, na incorporação imobiliária a legislação retirou direitos e tornou desastrosa a situação daqueles que se veem impossibilitados de levar o negócio até a sua concretização.
A Lei 13.786/2018 promoveu diversas alterações na Lei de Incorporações, porém as mais impactantes foram os pontos que trataram das penalidades impostas àqueles que não conseguem realizar os pagamentos.
Modificou drasticamente direitos já conquistados há décadas pelos consumidores adquirentes, cujos entendimentos sedimentados e Súmulas, tanto dos tribunais estaduais quanto do STJ, já haviam garantido. Como se não bastasse, dispositivos da Lei Civil, do Código de Defesa do Consumidor e até princípios Constitucionais foram violados pela legislação em comento.
Viola, por exemplo, o artigo 884 do Código Civil, que veda o enriquecimento ilícito e estabelece que "aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários". E mais, o artigo 885 estabelece que "a restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir".
O enriquecimento sem causa nos casos de distrato é patente, isso porque as empresas não se desincumbem do ônus de provar que houve algum prejuízo que justifique a retenção de elevados percentuais daquilo que foi pago pelo consumidor.
Em relação às normas consumeristas violadas, destacam-se a do artigo 39, V, CDC, que estabelece que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva e o artigo 51, §1.º, III, que estabelece que são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que se mostrem excessivamente onerosas para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
A violação à Constituição Federal é patente isso porque a Carta Magna elenca como Direito Fundamental, no seu artigo 5º, XXXII, que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, assim como preconiza no artigo 170, V, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado o princípio da defesa do consumidor.
Em que pese toda a legislação até então existente e a clareza do texto Constitucional que preconiza como obrigação do Estado e Direito Fundamental a defesa dos direitos do Consumidor, o Legislativo decidiu pela aprovação da lei que, enquanto vigente, precisa ser cumprida.
Estabelece a Lei 4.591/1964, no seu novo artigo 67-A, § 5.º que o incorporador poderá reter do adquirente 50% dos valores pagos, além da taxa de corretagem, em média equivalente a 5% do valor total do imóvel, o que pode significar a perda de um percentual superior a 60% do que foi pago. Um verdadeiro confisco legalizado.
Não bastasse a desproporcionalidade da medida, o incorporador ainda restituirá os valores pagos pelo adquirente, no prazo máximo de 30 dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, ou, em outras palavras, quando o imóvel estiver pronto.
O que a lei autoriza de forma expressa é que a incorporadora se aproprie de valores que lhes foram "emprestados" pelo promitente comprador, e se utilize de forma graciosa desses recursos e somente os restitua quando terminar a obra.
Como se não bastasse todos os retrocessos legislativos, que afligem a questão da incorporação imobiliária e causam ainda mais prejuízos aos promitentes compradores de imóveis na planta, e que não conseguem levar o negócio adiante, existe um forte movimento de entidades ligadas ao mercado imobiliário com o objetivo de modificar entendimentos sumulados no STJ, que de alguma maneira ainda dão algum tipo de proteção aos consumidores desse setor.
Desta forma, é fácil de se concluir que o tratamento aos superendividados é, e continuará sendo, diferente em razão da natureza da dívida. Se nada for feito em favor dos consumidores do mercado imobiliário, certamente o forte lobby das empresas trará consequências ainda mais funestas a quem um dia sonhou em comprar um imóvel, mas se viu impossibilitado de concluir o negócio em razão de complicações financeiras.
Marcelo Tapai é advogado e professor de Direito, pós-graduado em Direito Processual Civil, especialista em Direito Imobiliário, Contratual e do Consumidor, atua como palestrante, articulista de jornais, sites e revistas, autor da cartilha do Procon-SP de orientações para compra de imóveis novos e usados, membro do Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor) e IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), bacharel em Comunicação Social e formado em Jornalismo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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