quarta-feira, 3 de abril de 2019

A VENDA DO BEM DE DEVEDOR EM MORA

I – A AÇÃO PAULIANA

É reconhecido o ensinamento de Pontes de Miranda: “a ação dos arts. 106-113, do Código Civil é ação de anulação: a sentença tem eficácia constitutiva-negativa no tocante à existência do ato jurídico; era anulável o ato jurídico, foi anulado e passa a não existir”. O mestre alagoano acentua que a revogação dos atos do falido apenas torna ineficazes os atos, não os anula: os atos são válidos e válidos permanecem, salvo posterior anulação, segundo os princípios das anulabilidades. Diz mais:

“Na execução contra o devedor, não é possível oporem-se – no direito brasileiro – embargos de terceiro com alegação de fraude contra credores, embora se possa alegar com defesa...”

O estudo presente parte da ilação de que trata-se de ação de anulação que nasce ao titular do crédito prejudicado pelo ato do devedor, que violou dever jurídico (o dever de não dispor do patrimônio a ponto de prejudicar os credores já existentes, que contam com a estabilidade patrimonial, ação civil). Entretanto, necessário será reconhecer seu caráter não anulatório na medida em que o ato, em verdade, é ineficaz, voltando a estudar, data venia, o caráter constitutivo-negativo da ação pauliana, antes regida pelos artigos 106-113 e, hoje, com a Lei n.° 10.406 (“Novo Código Civil”), pelos artigos 158 a 165 sem esquecer-se que o 768 do Código de Processo Civil fala de ação anulatória consorcial, permitindo-se a legitimação extraordinária para qualquer credor. O Novo Código Civil, em seu art. 159, diz que “serão anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante”. Por sua vez, diz no art. 158, que substitui o vetusto art. 106 do Código Civil, que “os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos dos seus direitos”.

O êxito da ação pauliana depende da configuração do prejuízo sofrido pelo credor que a propõe. Além da prova do prejuízo necessário à demonstração da insolvência (deficit patrimonial) que afeta a garantia de exequibilidade do crédito. O eventus damni (dano) é contemporâneo do ato que se impugna como fraudulento. Não se exige o consilium fraudis, na lei civil, conhecimento que tenha ou que deva ter o devedor do seu estado de insolvência e das consequências do ato lesivo para os credores. O mestre Pontes de Miranda assim conclui:

“O legislador civil satisfez-se, quanto aos atos a título gratuito, com a alegação e prova do estado de insolvência e do eventus damni, e, quanto aos atos jurídicos a título oneroso, com esses pressupostos e a scientia fraudis (por parte do terceiro adquirente).”.

Essa lição é acompanhada pelo TJSP, Ap. 26.191-1, Rel. Des. Alves Braga, Ac. 16/9/1982, RT 568/44. 

Objetiva-se o reconhecimento da ineficácia do negócio jurídico. Assim pensam: Nelson Hanada, Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Jr. Com isso ter-se-á grande consequência: a procedência da pauliana não levará ao cancelamento da transcrição no registro de imóveis e sim à averbação da decisão (art. 167, II, n.° 12, e 246 da Lei n.° 6.015/73). A sentença retira do negócio jurídico o efeito secundário consistente em suprimir a responsabilidade do bem pela obrigação do alienante perante ele. Essa a conclusão de decisões do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 2.ª C, Ap. n.° 283.667, j. 22-10-81, rel. Cândido Dinamarco, respeitando-se o princípio da continuidade registral, já que respeita-se a continuidade do registro (art. 195, Lei n.° 6.015/73). Não há vício de invalidade, carência intrínseca do negócio. Há ineficácia, um impedimento de caráter extrínseco. 

O mestre alagoano bem fazia a distinção entre inexistência, invalidade e ineficácia. Critica, categoricamente, Francesco Messineo (Instituzioni di Diritto Civile, I, 220) que não chegaria a compreender que havia diferença entre inexistente e nulo. O que não existe nem é válido, nem inválido, não entrou no mundo jurídico. O nulo é o desconstituível, que não precisa de desconstituição de efeitos. Na invalidade, falta a idoneidade para produzir os efeitos essenciais do tipo, de forma irremovível. Na ineficácia, o ato tem elementos essenciais e pressupostos em ordem, obstando-se à eficácia uma circunstância de fato a ele extrínseca.

A inexistência é circunstância fenomenal no plano do ser; na nulidade faltam ao ato um dos seus requisitos essenciais (incapacidade, forma adequada). Há, pois, para a fraude contra os credores reconhecida ineficácia relativa do negócio, ineficaz com relação aos credores, pois o ato alienatório não tem efeitos em face dos credores. Essa a característica dessa ação pessoal: reconhecer a ineficácia do negócio, como os velhos comercialistas reconhecem na revocatória para a falência e o próprio Pontes de Miranda reconhecia para aquele remédio falencial. Presente a scientia fraudis, a prova da insolvência e do eventus damni (alienação onerosa), há previsão de ajuizamento de ação em 4 (quatro) anos do negócio jurídico, o qual a doutrina (art. 178, § 9.°, V, b) prevê como de decadência, direito potestativo. Nos negócios gratuitos não precisa ser provada scientia fraudis. O Código Civil não exigiu o concilium fraudis, pois o tem como presumido no comportamento do devedor que cria ou agrava a insolvência. Reconheceu o Superior Tribunal de Justiça que tudo se resume à ineficácia em relação a terceiro (Ap. 59.048-SP, TFR e REsp 5.307-0-RS, Rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, Ac 16/6/92, Lex – JSTJ 47/113).

Lembro julgamento, no REsp 5.307 - 0 - RS, Relator ministro Athos Gusmão Carneiro, no qual se discutia a possibilidade de apreciação de fraude contra credores incidentalmente em embargos de terceiro, onde a Quarta Turma concluiu, por maioria, pela afirmativa e o fez explicitado da seguinte forma: 

"Nestes casos, demonstrada a fraude ao credor, a sentença não irá anular a alienação, mas simplesmente, como nos casos de fraude à execução, conduzirá à ineficácia do ato fraudatório perante o credor embargado, permanecendo o negócio válido entre os contratantes, o executado-alienante e o embargante-adquirente."

Observa-se, nessa linha de raciocínio, que a sentença terá caráter dominantemente declaratório, pois declarará a validade e eficácia do ato de constrição e a possibilidade de o bem fraudulentamente alienado responder pela dívida, embora mantido no patrimônio do adquirente. Tudo, assim, como se pasa nos casos de fraude à execução, deslocando-se a discussão do plano do direito material para o plano predominantemente processual. 

Por sua vez, Humberto Theodoro Jr.(Fraude contra credores - A natureza jurídica da sentença pauliana, 2ª edição, pág. 221) considera que o ato em fraude de credores, não é anulável, mas apenas ineficaz relativamente aos credores prejudicados, a conclusão inevitável é que, na espécie, quer se trae de fraude de execução quer de fraude a credores, a decisão judicial limita-se a restabelecer a "responsabilidade patrimonial" pelas dívidas do alienante; não é a propriedade desde que se ressuscita, como concluiu Liebman(Processo de execução, 1968, n. 44, pág. 83 e 84). 

A sentença pauliana é, pois, uma sentença declaratória. 

Tem-se que a moderna classificação de fraude contra credores, no âmbito material, não é mais entre as causas de anulabilidade, mas de ineficácia relativa ou inoponibilidade. E, conforme disse Humberto Theodoro Jr.(obra citada, pág. 237), não havendo desconsideração do ato fraudulento e, sim, reconhecimento de sua inoperância em face do credor prejudicado, não se pode enquadrar a sentença pauliana entre as constitutivas. Sua sede natural haverá de ser a das sentenças declaratórias. O juiz, acertando os fatos da conjuntura em que se deu a alienação realizada pelo devedor insolvente, não cuida, de maneira alguma, de invalidar ou desfazer o ato juridico, nem tampouco de anular seus efeitos entre as partes contratantes. 

Reconhecendo que a garantia foi ofendida pelo efeito reflexo da venda fraudulenta, a sentença pauliana declara sua ineficácia relativa, mas "o efeito típico próprio do ato de disposição do devedor não se desfaz entre as partes nem perante o credor", como concluiu Vicenzo Scalisi(Ineficácia - direito privado, Enciclopedia del diritto, 1971, v. XXI, n. 19, pág. 353). 

II – A SITUAÇÃO DO COMPRADOR DE BEM DE PROPRIEDADE DO VENDEDOR QUE ESTÁ SEM CERTIDÕES NEGATIVAS

Conforme restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 173-6/DF e 394-1/DF: “1. O Oficial de Registro de Imóveis deve proceder à lavratura da competente escritura pública de compra e venda de imóvel sem exigir que a apresentação da certidão seja negativa; 2. Porém, deve juntar a certidão fiscal do alienante, seja ela positiva ou negativa, em vista do disposto nos artigos 20 e 21 da Lei nº 7.433/85, o que de modo algum obstará o registro”.

Registre-se ainda que seguindo esta orientação, já foi decidido pelo plenário do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, no Pedido de Providências 0001230-82.2015.2.00.0000, a exigência de comprovação de quitação pecuniária compulsória para a realização de operação financeira no registro de imóveis representa uma forma oblíqua de cobrança do Estado, retirando do contribuinte o direito de livre acesso ao Poder Judiciário.

E, por fim, deve-se ainda observar que o artigo 1º, §2º, da Lei Federal nº 7.433/1985, determina que: “Art 1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei. § 2º O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição”.

Observo que já na RE 434.987, o ministro Cezar Peluso examinou situação na qual a autoridade fiscal exigia que os débitos fiscais fossem garantidos, como condição para que lhe fosse permitida a impressão de documentos fiscais. Naquele julgamento, o ministro Cesar Peluso deu provimento aquele recurso para determinar que o fisco autorizasse a impressão de documentos fiscais, independentemente de prestação de garantias.

A posição do STF, de há muito, é a favor do direito fundamental ao exercício profissional e a atividade econômica lícita, como se lê do RE 413.782.

Em 20 de março de 2009 foi publicado acórdão de julgamento proferido pelo STF que declarou a inconstitucionalidade do art. 1º, incisos I, II, IV, §§1º à 3º e art. 2º da Lei 7.711/88 que dispunha sobre a obrigatoriedade da apresentação de CND's - Certidões Negativas de Débitos das empresas que precisassem formalizar operações de crédito, registrar contratos em cartórios ou formalizar alterações contratuais nas juntas comerciais, assim como transferência de domicílio para o exterior.

A inconstitucionalidade foi analisada e decidida no julgamento de duas ADIns (173/DF - e 394/DF propostas pela CNI - Confederação Nacional da Indústria e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Extrai-se do julgamento que a Suprema Corte caracterizou as respectivas exigências como sanção política, na medida em que tais normas obrigam o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário. Foi invocado pela Corte Julgadora, como fundamento constitucional, o direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas (art. 170, parágrafo único da CF/88 bem como o direito fundamental do contribuinte de rever em âmbito judicial ou administrativo a validade dos créditos tributários (art. 5º, XXXV da CF/88).

Apesar de se tratar da inconstitucionalidade de uma norma específica, o julgado é um precedente importante no questionamento das diversas exigências de regularidade fiscal presentes nas normas vigentes, tais como a exigência de certidão previdenciária, prevista na Lei 8.212/91 e necessidade de apresentação de Certidão Negativa de Débito às Juntas Comerciais para atos como fusão, cisão, aquisição, transferências de controle, entre outros.

Nos dizeres do I. Ministro Relator Joaquim Barbosa, extraído de seu voto na ADIn 173-6/DF, "entende-se por sanção política as restrições não razoáveis ou desproporcionais ao exercício da atividade econômica ou profissional lícita, utilizadas como forma de indução ou coação ao pagamento de tributos".

Como tal não há exigência e óbice para que o Oficial de Cartório, nos casos de compra e venda de imóveis, na forma da lei civil, possa ser impedido de lavar escritura pública nos casos acima descritos.

Rogério Tadeu Romano - Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.
Fonte: Artigos Jus Navigandi

Nenhum comentário:

Postar um comentário