Os principais textos com base nos quais foram julgadas as ações que serviram de material às súmulas são os que se seguem.
O decreto-lei
58, de 1937, na parte que estendeu a sua disciplina a imóveis não loteados (lei 649/49) já estabelecia:
“Art. 22 - Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma, ou mais prestações, desde que, inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissos direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos artigos 16 desta lei,
640 e 641 do Código de Processo Civil [foram substituídos pelo art.
466-A, CPC/73]. (Redação dada pela lei
6.014, de 1973; [anteriormente, lei 649/49])”.
Frise-se que a redação original do art. 22 do decreto-lei
58/376 já havia sofrido alteração substancial pela lei
649/49,7 que, por sua vez, foi novamente alterado, sem que o tenha sido substancialmente, pela lei
6.014/73.
Corrobora ainda o peso atribuído ao registro, o que está genericamente disposto no art. 23 do mesmo decreto-lei:
“Nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos desta lei, sem apresentação de documento comprobatório do registo por ela instituído”.
É preciso liminarmente considerarem-se as expressões referentes à necessidade de inscrição, pois, pelo art. 22, era necessário que os compromissos de compra e venda fossem inscritos, ainda que, a qualquer tempo, especificamente direcionado o mandamento aos imóveis não loteados.
É também evidente que o entendimento do STJ desconsiderou essa exigência, diferentemente da precedente posição do STF, entendendo o STJ que o tema é tão somente de direito obrigacional.
Em suma, parece que o critério central de julgamento do STF foi o de seguir a literalidade dos textos.
O autor destas linhas, quando integrante do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, em época em que era absolutamente dominante o entendimento do STF, que veio a servir de conteúdo para a súmula 621, julgou, proferindo voto vencido, em conformidade com o que viria estar retratadona súmula 239 do STJ.8 Os argumentos constantes desse voto vencido subsistem, porque são atuais. Vejamos.
1. Era comum, como ocorreu no caso concreto analisado no voto vencido, nada se arguir contra o ajuste, que se mostrava cumprido, como fato incontroverso; o entendimento contrário ao do voto vencido era absolutamente dominante no 1º TAC/SP, em sintonia com o do STF;9
2. A interpretação literal do decreto-lei 58/37 acabava por retirar desse a sua única função, protetiva do compromissário, ainda que, nocaso, sequer de proteção propriamente se tratasse; significava ao invés, pura e simplesmente, de fazer justiça ao compromissário, e não enfraquecer o fraco, que havia cumprido sua obrigação de pagamento (veja-se a respeito os “consideranda” que antecedem o decreto-lei, em que o compromissário é enfaticamente dado como o fraco da relação jurídica, o que era e é verdade);
Se para o direito real era necessária a inscrição/averbação, isso não ocorria com a adjudicação compulsória.
3. Essa a razão pela qual entendíamos que a posição de uma interpretação estritamente literal – quando era possível outra interpretação – não se compadecia com o art. 5º da lei de introdução ao Código Civil (atualmente lei da aplicação às Normas do Direito Brasileiro), em que se enfatizava o caráter social na aplicação do direito; caso contrário seria uma interpretação literal e antissocial, de resto própria do Liberalismo, e contrária à missão da lei de introdução, que era a de superar essa forma de entendimento do direito;
4. Distinguia-se entre direito real e direito obrigacional, e, se para o direito real era necessária a inscrição/averbação, isso não ocorria com a adjudicação compulsória, em que se pleiteava o cumprimento da obrigação e obtenção do título dominial; havia, portanto, um caminho de interpretação que distinguia uma coisa ser o direito real, decorrente do registro, e outra o direito obrigacional ensejando ação de adjudicação compulsória; para isto era útil atribuir-se essa função distintiva à conjunção “e” do texto do art. 22, não tão claramente quanto o fez o art. 25, da lei
6.766/79;10
5. Está coletado no voto vencido o que existia de jurisprudência escassa no sentido do que veio a ser o da súmula 239, bem como expressiva e persuasiva doutrina nesse mesmo sentido;11
6. Examina-se a redação dada ao art. 22, do decreto-lei
58, pela lei 6.014, de 1973, em que se faz alusão aos arts. 640 e 641, do então vigente CPC/73;
7. Fecha-se o voto vencido com a opinião do professor Orlando Gomes e do professor José Osório de Azevedo Júnior, que foi aluno de mestrado do autor desse voto vencido e que, na sua dissertação, produziu obra que nasceu clássica, que até hoje se destaca e que versou com mão de mestre sobre o compromisso de compra e venda;
8. Outros argumentos, porém, não constam do voto vencido: assim, era dever do proprietário, antes de anunciar a venda, depositar em cartório diversos documentos (art. 1º, §§ 1º a 6º; art. 2º, § 1º, do decreto- lei nº 58/37), devendo-se, normalmente, proceder ao registro dessa documentação; aí eram averbados os compromissos (art. 5º), e essa averbação é que atribuía direito real ao compromissário.
Surgia aqui uma questão, ou seja, era obrigação do promitente-vendedor fornecer essa documentação, que era condição para a averbação dos compromissos. E, nos processos em que o promitente-vendedor se defendesse, apenas, com base na ausência de registro,isto significaria, se vencedor, quase que um inconsciente prestígio à legitimidade de um comportamento de venire contra factum proprium. Tinha que fornecer elementos para o registro; não fornecia e se beneficiava com a sua ilicitude (omissão ilícita de cumprir a lei).
Havia recebido o que fora pactuado e apegava-se a um hipotético formalismo – ausência de registro – para não cumprir sua obrigação.
Julgando-se os embargos infringentes opostos com base nesse voto vencido, pelo segundo grupo de Câmaras, acolheu-se a integralidade dos fundamentos desse voto vencido.12
Mais especificamente e do ponto de vista cronológico, se deve abordar a colisão das súmulas do STJ em relação às do STF.
O núcleo da argumentação espelhada na súmula 621 do STF é relacionado com a impossibilidade de embargos à penhora (naturalmente de credor do promitente-vendedor que penhorasse bem nas mãos do compromissário comprador) se não houvesse registro.
Veja-se o que anotou Roberto Rosas, exemplar glosador das súmulas, em obra primorosa e utilíssima (2012, p. 356). A primeira colisão de entendimentos, espelhando o do STJ, ocorreu com a sua súmula 84, que veio a admitir embargos de terceiro, mesmo sem registro, com arrimo no art. 1.046, § 1º, do CPC/73, citada doutrina nesse sentido (ROSAS, 2012, p. 434).
E por fim, veio a súmula 239 do STJ, cujo embasamento dogmático, segundo o correto entendimento de Roberto Rosas, é o de que, porque se trata de direito pessoal, se o que se persegue com a adjudicação compulsória, que bem-sucedida geraria o domínio do compromissário-comprador, transformando-o em dono, não havia de exigir-se registro (ROSAS, 2012, p. 495), raciocinando-se à luz do disposto no art. 466-A do CPC/73. Consequências práticas bastante negativas decorreriam da imprescindibilidade do registro.13
O que pautou o entendimento do STF foi a literalidade do texto. Ao passo que o STJ alinhou-se na grande vertente de uma visão social do direito, que, no caso, não poderia deixar de reconhecer direito à adjudicação pelo compromissário, que adimpliu sua obrigação, e porque não tinha sentido algum beneficiar-se o promitente-vendedor pela ausência de registro, não poucas vezes o que não havia ocorrido por ilícito omissivo deste último.
De 1989 a 1999,14 ou seja, logo após a criação do STJ, elencam-se dez acórdãos que alavancaram a súmula 239 e modificaram o panorama referente ao assunto. Os que se seguiram a esses consolidaram o entendimento.
No REsp nº 30-DF,15 rel. min. Eduardo Ribeiro, julgador excepcional e figura estelar do STJ, é sublinhado o caráter de direito pessoal do promitente- vendedor, a servir de ambiente suficiente para a ação de adjudicação compulsória. No voto do ministro Eduardo Ribeiro cita-se a súmula 167 do STF,16 a que seguiu súmula nº 413 do STF,17 reflexo do disposto no art. 23 do decreto-lei 58/37. Estriba-se este voto na doutrina do professor Darcy Bessone, em sua clássica obra sobre o compromisso de compra e venda (de 1960).18 Seguiram-se votos vencedores, ficando superado pela argumentação o entendimento do STF, como restou evidente por outros entendimentos ulteriores uniformemente sincronizados.
O que nos parece ter ocorrido nesse entendimento do STF é que este se apegou à literalidade do texto, não considerando primordialmente (i) a finalidade da norma, ou suas finalidades, que desautorizam tal entendimento pela letra da lei; (ii) muitas vezes, se não na grande maioria, a decisãoera injusta e também injurídica. Injusta porque, diante de um contrato cumprido pelo promitente- -comprador, só restaria ao promitente-vendedor adimplir sua obrigação de outorgar escritura. E injurídica porque havia caminho hermenêutico confortável para o entendimento que veio a prevalecer no STJ. Antes do decreto-lei 58/37, vigia o art.
1.088 do CC de 1916.19 Com este regramento ficava o compromissário-comprador à mercê do promitente-vendedor. A razão mais profunda desse decreto-lei foi a de colocar o compromissário- comprador em patamar não inferiorizado. O entendimento que valorizava o registro, como ocorreu, acabava mantendo o compromissário- comprador numa posição inferior. A lei
6.766, de 1979, art. 25, com maior clareza, veio corroborar o entendimento espelhado na súmula 239 (v. nota 10, retro).
Veja-se o que ensina Gustavo Zagrebelsky, especialmente na letra “b” do texto abaixo.
Gustavo Zagrebelsky, à guisa de conclusão de sua obra O Direito Suave, alinha os seguintes pontos de que se deve ter consciência para um reentendimento da compreensão do direito. Não deixa de sublinhar – e essa foi a linha condutora de nossas precedentes considerações – que está “simplesmente descrevendo o que na realidade da vida concreta do ordenamento efetivamente ocorre”: a) afasta, porque evidente que, nos casos críticos, que se distinguem dos casos de rotina, é necessário ter-se presente que na interpretação dos casos críticos, um dado concreto, o que aí se mostra ineliminável, pois, se aduz, o caso crítico é o centro de gravidade do problema; b) recorda que, no Estado liberal, a norma jurídica se mostrava como suficiente, e o que atualmente se passa não depende de uma melhor ou mais clara doutrina da interpretação, senão que as dificuldades se devem a uma situação de instabilidade,havendo uma pressão dos casos críticos sobre o direito que, se não existia precedentemente, era ao menos algo pouco evidente, o que não engendrava problemas relacionados com os princípios; mostrava-se viável um direito por normas (“per regole”), justamente porque os valores fundantes estavam resolvidos; c) a “explosão do subjetivismo” na interpretação decorrente do caráter pluralístico da sociedade atual em que os valores estão partejados (o que é excludente de uma convergência ou de agregação em torno de determinados valores); d) há um depauperamento dos valores e ausência de um horizonte de espera (ZAGREBELSKY, 1992, p. 100).20 Consulte-se, ainda, a obra de Claus Wilhem Canaris (2009, passim, mas especialmente p. 42-43, III, 1, letra “c”), na qual se fornecem critérios úteis à compreensão do assunto relativo à interpretação e aplicação do direito.
A lei 6.766/79 veio corroborar o entendimento espelhado na súmula 239.
Na lição de Zagrebelsky, se se entendesse que se estaria passando por cima da existência da exigência de registro, ainda seria a solução correta. Mas, como se frisou, havia caminho de interpretação sem que se precisasse sofrer essa crítica.
Decorria do entendimento cristalizado na súmula 239, todavia, consequência negativa que, no entanto, não prejudicava propriamente o compromissário- comprador vencedor da ação de adjudicação compulsória. Essa consequência era a de que, não havendo registro, onde se iria registrar a vitória (sentença favorável na ação de adjudicação compulsória) para transferir-se o domínio ao compromissário, que passaria a ser dono?
Outra implicação consistiu em que os compromissários que haviam cumprido o contrato (pagado o preço) – diante da impossibilidade de obtenção do domínio – passaram a utilizar ação de usucapião alegando que o compromisso de compra e venda era justo título, pois só assim é que poderiam vir a ter o domínio. No primeiro volume de obra de nossa autoria21procurou-se estudar minudentemente o que é justo título e a evolução do instituto. Verificou-se ao longo da nossa história, tanto em doutrina quanto na jurisprudência, perceptível atenuação dos requisitos exigíveis para ter-se justo título. Mas o compromisso de compra e venda, ainda que cumprido, poderia ser considerado justo título? Em que condições e em que momento?
Um ponto que não foi questionado – mas que contou com a compreensível boa vontade da jurisprudência – é o de indagar se o justo título teria de ter existido ao longo de todo o evolver da relação contratual. A resposta teria de ser negativa. O justo título formar-se-ia somente depois de pago o preço, e aí ter-se-ia de aguardar o lapso temporal para a usucapião ordinária. Em realidade nos casos julgados não se cogitou, e em rigor admitiu-se, sem explicitude, o lapso temporal recedentemente à formação do justo título, pois, como se disse, para configurar-se este, o preço teria de ter sido pago.
A consequência “negativa” de uma ação de adjudicação compulsória em que não houvesse registro, porque não se registrara o loteamento, era a de que não seria possível obter-se o domínio. Ainda assim, com a ação procedente, isso solidificaria a posição do compromissário.
Seguir-se-ão algumas considerações sobre o princípio da igualdade, havido ao longo de séculos como o mais significativo critério de Justiça.22
Por fim, um argumento de caráter constitucional, gravitando em torno do princípio da igualdade. O CPC (art. 1º) estabelece didaticamente que a Constituição deve iluminar a interpretação do direito infraconstitucional, o que, de resto, vale para todo o sistema. A questão que se coloca é se é compatível com o princípio da igualdade atribuir-se ao registrotambém a função de ser condição necessária para a ação de cunho obrigacional de adjudicação compulsória. É certo que ligar-se o registro à configuração de direito real é induvidosamente correto. A nossa impressão é a de que por causa da ausência de registro desproteger-se um número imenso de compromissários significa que se teria eleito umdiscrímen inidôneo, se interpretado em conformidade com o entendimento da Súmula nº 621.23 Outro tratadista, de imenso valor, Humberto Ávila (2015, passim), escrevendo com a atenção voltada ao Direito Tributário e ao princípio da igualdade, tece também considerações gerais, ao lado das sobre o Direito Tributário, que devem ser primordialmente consideradas.
Como epílogo dessas considerações devem ser examinados os arts. 1.417 e 1.418 do
CC, que parece pretendem retornar à posição da súmula 621 do STF. Deve-se dizer que, já pela topografia da disciplina, dentro do direito das Coisas, o compromisso é encarado como“devendo ser” direito real, inclusive para previsão de proteção jurídica, ao compromissário comprador em relação às hipóteses aqui tratadas.
Rezam os textos do CC:
“Art. 1.417 - Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no cartório de registro de imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel”.
“Art. 1.418 - O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel”.
Pode, até mesmo, ser tomado esse dispositivo legal como eliminando a possibilidade de ajuizamento da adjudicação compulsória em falta do registro. O art. 8º em tela somente elenca caminho a ser utilizado pelo cessionário, garantindo-lhe uma proteção, não lhe vendendo o acesso ao documento, que fez jus, pelo cumprimento do contexto.
Ilustre civilista, partindo do pressuposto da não sobrevivência da súmula 239 em relação ao assunto aqui especificamente tratado, ou seja, da exigibilidade de registro, como requisito, para ser buscada a adjudicação compulsória do imóvel, sugere que essa súmula seja aplicada a direitos reais previstos em legislação especial.24
Esses textos ligam-se ao art. 1.225 do CC, inciso VII,25 no qual está elencado “o direito do promitente comprador do imóvel” como direito real.
Deve-se ainda referir o art. 25 da lei 6.766/79: “são irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros”. Contudo, como regra, têm direito à adjudicação compulsória os titulares dos contratos citados por serem irretratáveis. Já em disputa com terceiro se faz necessário dito registro.
A correlação a ser estabelecida entre o art. 1.225, inciso VII, e os arts. 1.417 e 1.418 do CC é a de que o sistema conhece, regula e enfaticamente protege o compromisso como direito real, ainda que possivelmente no plano da realidade exista um número imenso de compromissos sem registro.
Têm direito à adjudicação compulsória os titulares dos contratos citados por serem irretratáveis.
Vale ressaltar, nesse momento, entretanto, o posicionamento da jurisprudência a respeito da matéria.
Conforme acórdão prolatado em recurso especial no STJ, considerou-se que:
“A promessa de compra e venda identificada como direito real ocorre quando o instrumento público ou particular é registrado no cartório de registro de imóveis, o que não significa que a ausência de registro retire a validade do contrato”.26
Fica evidente deste entendimento que há uma dualidade de realidades, direito obrigacional e direito real (se ocorreu registro).
Em outro acórdão do mesmo Tribunal Superior é frisado que:
O contrato, pois, se não registrado, pode ser válido e por isso, se cumprido, enseja a adjudicação compulsória. E suficiente para fundamentar pedido de adjudicação do imóvel a validade e o cumprimento do contrato, nem por essa razão, porém, será direito real, que nasce com o registro (conforme súmula 239): “[...] a jurisprudência tem conferido ao promitente comprador o direito à adjudicação compulsória do imóvel independentemente de registro (súmula 239) e, quando registrado, o compromisso de compra e venda foi pelo Código Civil de 2002 (art. 1.225, inciso VII) [...]”;27 erigido à seleta categoria de direito real.
Quanto à aplicabilidade da súmula 239 do STJ, vejam-se recentes decisões do TJ/SP considerando- a válida e aplicável.
“Malgrado o art. 1.418 do Código Civil conceda o direito à adjudicação compulsória ao titular do direito real, e este decorra do registro do comprometimento de compra e venda no qual inexista cláusula de arrependimento, a súmula 239 do C. STJ continua hígida e aplicável à hipótese.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência majoritárias admitem a adjudicação compulsória sem o registro do compromisso de compra e venda, porque a única finalidade do registro seria a de conferir direito real ao promitente comprador, oponível a terceiros, mas é cabível seja concedida a adjudicação compulsória sem o registro”.28
“[...] A súmula 239 do STJ continua vigendo, pois não há contradição entre seu teor e o dispositivo previsto no art. 1.417 do Código Civil, na medida em que, na hipótese, os apelantes não pretendem exercer direito real, mas apenas direito pessoal correspondente à outorga do título de domínio”.29
A doutrina de Kraemer (2006, p. 219-234) vai ao encontro dos recentes arestos:
“[...] O registro apenas passa a possuir importância nas hipóteses onde haja necessidade de opor a promessa contra terceiros. O registro da promessa produz de forma eficaz a oponibilidade contra terceiros, mas não altera a relação jurídica entre as partes contratantes. Exigir o registro para fins de adjudicação compulsória se mostra absolutamente assistemático”.
No mesmo sentido, Loureiro (2018, p. 1.443): “[...] A única e relevante diferença entre ambas as situações – contrato registrado e sem registro – é a oponibilidade perante terceiros. Se o imóvel tiver sido alienado nesse meio tempo a terceiro de boa-fé, que obteve o registro, o promitente comprador sem título registrado terá direito apenas de exigir do promitente vendedor a devolução do preço, mais perdas e danos, mas não a sentença substitutiva da escritura de venda e compra. Se o contrato estiver registrado, produz efeito erga omnes e impede a disposição e a criação de direito real [ou de direito meramente obrigacional] antagônico.
Em suma o registro do contrato preliminar no oficial competente não é requisito para que o contratante possa exigir a celebração do contrato principal, mas mero pressuposto de oponibilidade a terceiros de boa-fé”.
O TJ/MG, com publicação do acórdão em 23/4/14, 15ª Câmara Cível, Apel. 106471 00008497001, Rel. Antonio Bispo, aplicou o entendimento da súmula 239. Há decisões do TJ/DF, TJ/BA.
Diferentemente, afastando a súmula 239, em face dos arts. 1.417 e 1.418 do CC, TJMT, 3ª Câmara, j. em 30/4/2013, ac. publ. em 14/6/2014, Apel. nº 10647100008497001, Des. Maria Erotides Kneip Baranjak.
Deve-se ainda ter presente dispositivo (art. 26, § 6º, da lei 6.766, nela inserido pela lei 9.785, de 1999), que vai na linha da valorização do compromisso independentemente do registro e que dispõe: “§ 6o - Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas de cessão valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando acompanhados da respectiva prova de quitação. (Incluído pela lei 9.785, de 1999)”.
Ainda que a lei 6.766 tenha por objeto a disciplina de loteamentos (art. 2º), e o art. 22 do decreto-lei 58 trate de imóveis não loteados (redação da lei 649/49, sucedida pela redação da lei 6.014/73), o argumento é forte em favor da prescindibilidade do registro.
É possível que os tribunais continuem a entender que é dispensável o registro, pois se trata de direito obrigacional.
Para finalizar estas conclusões tecidas em relação ao compromisso de compra e venda, sua natureza jurídica, conclui-se poderem ser a ele atribuídas diferentes naturezas jurídicas, consoante sua utilização em relação a situações também diferentes.
__________
1 Este trabalho é escrito em homenagem ao professor José Rogério Cruz e Tucci, antigo presidente da AASP.
2 Súmula nº 621 do STF: “Não enseja embargos de terceiro à penhora, a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis”.
3 Súmula nº 239 do STJ: “O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”.
4 Súmula nº 76 do STJ: “A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor”.
5 Súmula nº 84 do STJ: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”. Colide frontalmente com a Súmula nº 621 do STF.
6 Art. 22 - “As escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das respectivas transcrições aquisitivas para os efeitos dessa lei” (redação originária).
7 Art. 22 - “Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato da sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações desde que inscritos em qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória, nos termos dos artigos 16 desta lei e 346 do Código do Processo Civil [CPC/1939].” (Redação dada pela Lei nº 649/1949). Sucessivamente a Lei nº 6.014/1973 alterou a redação, sem alterar a substância.
8 Cf. Julgados dos Tribunais de Alçada Cível de São Paulo, São Paulo, v. 63, p. 54, 55 e 60, set./out. 1980.
9 Julgados dos Tribunais de Alçada Cível de São Paulo, São Paulo, v. 63, p. 57 (coluna da esquerda), set./out. 1980.
10 Esse entendimento é reforçado pelo disposto na Lei nº 6.766/1979: “São irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiro”.
11 Julgados dos Tribunais de Alçada Cível de São Paulo, São Paulo, v. 63, p. 58, coluna da esquerda, e p. 59, coluna da esquerda (aqui referida doutrina geral sobre direito das obrigações), set./out. 1980.
12 Julgados dos Tribunais de Alçada Cível de São Paulo, São Paulo, v. 69, p. 153, set./out. 1981.
13 Veja-se o que consta da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas,Lei nº 13.655, de 25/4/2018, 20: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)”.
14 Do site do STJ, consultado em 8/1/2019.
15 STJ, 3ª T., REsp nº 30-DF, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 15/8/1989, DJ de 18/9/1989.
16 Súmula nº 167 do STF: “Não se aplica o regime do DL 58, de 10.12.37, ao compromisso de compra e venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro”.
17 Súmula nº 413 do STF: “O compromisso de compra e venda de imóveis, ainda que não loteados, dá direito a execução compulsória, quando reunidos os requisitos legais”.
18 Este mesmo autor, Darcy Bessone (1960), e muitos outros, estão citados no voto vencido do autor destas linhas. V. Julgados dos Tribunais de Alçada Cível de São Paulo, São Paulo, v. 63, p. 58, set./out. 1980 (coluna da esquerda, e é também referenciada jurisprudência do STF, em sentido oposto ao nosso voto vencido e ao do ministro Eduardo Ribeiro).
19 Art. 1.088: “Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer da partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097”.
20 Sobre a intensa repercussão dessa obra veja-se, na Revista Española de Derecho Constitucional (1994), texto de Francisco Rubio LLorente.
21 A orientação que decorria da imprescindibilidade de registro gerou uma consequência. Esta consistiu em que os compromissários que haviam cumprido o contrato (pagado o preço) passaram a utilizar ação de usucapião alegando que o compromisso de compra e venda era justo título. Em obras de nossa autoria (ARRUDA ALVIM, 2009, p. 162, 381 e 473; ARRUDA ALVIM; COUTO, 2009, p. 180-181), procurou-se estudar minudentemente o que é justo título. Se a ideia central de justo título era a convicção de ter adquirido, pensamos que era equivalente a essa ideia a da crença na indiscutibilidade de que se viria a adquirir, diante de contrato irretratável.
22 Veja-se a respeito dessa ideia a obra, densa em informação histórica, de Giorgio Del Vecchio, A Justiça (1960, esp. nº IX, p. 83 e ss.). Foi esta nota, da igualdade, como inerente à Justiça, a primeira percebida por Aristóteles (veja-se a respeito MORAUX (1954, cap. IV, nota 2, p. 109); no mesmo sentido, fundamentalmente, cf. ZIPPELIUS (1973, § 19, p. 92-95), especialmente letra “b”, sobre o pensamento de Aristóteles; letra “c” (p. 95), sobre o de Santo Tomás de Aquino, retomando a mesma ideia; veja-se, ainda, Aristóteles (1959, p. 8, 13, 86 e ss., 154, 164 e ss.), em que este elemento da igualdade aparece.
23 Consulte-se a obra de Celso Antonio Bandeira de Mello (1984, passim), mas veja-se VIII, 43, p. 60, conclusão V, ao dizer conclusivamente: “A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via indireta”. Observa-se ainda que o discrímen tem de ser compatível com situações valorizadas constitucionalmente (nº 30, p. 51).
24 Cf. CAMBLER, 2014, p. 60-63.
25 “Art. 1.225 - São direitos reais: [...] VII - o direito do promitente comprador do imóvel; [...]”
26 STJ, 4ª T., REsp nº 1.185.383, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 8/4/2014, DJe de 5/5/2014.
27 STJ, 4ª T., REsp nº 941.464, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24/4/2012, DJe de 29/6/2012.
28 TJSP, 30ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Ap. nº 1003279-18.2016.8.26.0292, Rel. Des. Carlos Dias Motta, j. 28/9/2018.
29 TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, Ap. nº 1010683- 23.2016.8.26.0292, Rel. Des. Luis Mario Galbetti, j. 15/8/2018. No mesmo sentido: Apelação nº 10106832320168260292 SP 1010683-23.2016.8.26.0292 (TJSP) Luis Mario Galbetti; 10ª Câmara de Direito Privado, 29/8/2017 10066473520168260292 SP 1006647-35.2016.8.26.0292 (TJSP) J. B. Paula Lima; 9ª Câmara de Direito Privado, 13/6/2018 - 00012282520098260477 SP; 0001228- 25.2009.8.26.0477 (TJSP) Angela Lopes.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.
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Arruda Alvim - Livre-docente e doutor pela PUC-SP. Professor no mestrado e doutorado na mesma instituição. Ex-desembargador do TJSP. Advogado em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Fonte: Migalhas de Peso