Fato público e notório que a escala de contaminação pela doença do coronavírus (covid-19) deu causa a uma declaração de pandemia global1 pela OMS - Organização Mundial da Saúde com afetação inequívoca de todos os estados-nações, dentre os quais se encontra inserida a República Federativa Do Brasil.
Em uma análise perspectiva, seguindo informações fornecidas pela própria OMS, a agressiva contaminação pelo coronavírus, até a última segunda-feira havia infectado 350 mil pessoas, matando mais de 16 mil em um universo de 170 países, sendo os números longe de absolutos e a cada dia aumentando2.
A pandemia em análise afeta imediatamente questões higiênicas, políticas e comerciais-econômicas que, por via oblíqua, geram necessários enfrentamentos da ciência jurídica, em uma situação sui generis sem qualquer paralelo na história contemporânea da humanidade.
A falta de precedentes vem a suscitar mais dúvidas do que certezas, gerando um cenário de caos jurídico e extrema insegurança a operadores e, ato contínuo, aos seus clientes.
No cenário atual brasileiro, o Poder Executivo, tem se válido de suas atribuições e editado medidas com fulcro de assegurar à população algumas certezas3, dentre as quais destaca-se a instauração de estado de calamidade pública nacional4 e os decretos estaduais de quarentena5, com fundamento em minimizar, quando não erradicar o alastramento do covid-19.
Há inevitável afetação da cadeia econômica, vez que a paralisação de atividades tidas como não essenciais imputará ao empresariado a paralisação de suas produções. Existem, inclusive, importantes economistas apontando que o risco social de uma depressão econômica, ocasionado pela ruptura da cadeia produtiva, poderá ocasionar impactos futuros de maior gravidade do que a pandemia6.
A cadeia sofrerá enormes abalos, sendo que a base, invariavelmente, deixará de arcar com certos compromissos, tornando os sucessivos setores credores em determinadas quantias e devedores, assim sucessivamente. Setores importantes da economia empresarial já vislumbram grandes efeitos, como por exemplo o setor de tráfego aéreo, com queda de mais de 80% dos voos internacionais já neste mês de março7.
As medidas de segurança e contenção do avanço do devastador vírus, dentre os quais interrupção da produção das mais diversas empresas atuantes no setor de produtos, são necessárias no combate à doença, medidas preventivas indicadas por órgãos de gabarito como a OMS8, vislumbrando o primordial direito à saúde em detrimento de outros.
Ocorre que, em meio a massa jurídica cinzenta criada pelas incertezas oriundas do quadro fático, um dos pontos que tem gerado inúmeras discussões é quanto as implicações do covid-19 nas relações locatícias comerciais.
A hipótese que mais comumente tem suscitado relevantes dúvidas é simples: o empresário que loca um imóvel para exercício de sua atividade empresarial, em uma relação contratual continuada – independentemente do contrato versar sobre uma sala comercial, um salão ou uma simples loja – e é obrigado a paralisar sua fabricação, fonte de renda única da empresa, como vira a arcar com os valores locatícios previamente firmados?
Hodiernamente tem se defendido que há possibilidade de ampla rediscussão contratual fundamentada na chamada Teoria da Onerosidade Excessiva9, onde, aplicada ao caso em estudo, arguir-se-ia que o locatário de imóvel comercial arcará com prestação excessivamente onerosa em extrema vantagem ao locador pelo fato da paralisação de sua atividade empresarial ocasionar perda abrupta de renda.
Ao caso em comento, a Teoria da Onerosidade Excessiva operar-se-ia pela absoluta ausência ou considerável diminuição de renda do locatário, criando um desequilíbrio10 contratual caso venha a ser mantido nos valores previamente estabelecidos que favoreceriam, exclusivamente, o locador.
Aos que tem defendido a aplicabilidade da onerosidade excessiva a situação em comento, pela norma positivada pura haveria a resolução do contrato11 ou, minimamente, modificação de suas cláusulas para reequilíbrio12, ajustando-se o valor dos alugueres e demais vencimentos a nova realidade vigente.
A teoria foi positivada em nosso ordenamento também sob a alcunha de teoria da imprevisão13, onde incluiu-se para sua realização o requisito da imprevisibilidade do fato que desequilibra a contratação previamente existente, inclusive já suscitando discussões sobre o tema na instância extraordinária do STJ, onde definiu-se que o fato extraordinário que venha a onerar de modo excessivo uma das partes da contratação é aquele que não se encontra abarcado de forma objetiva nos riscos da contratação.14
Aparenta haver subsunção do quadro fático ocasionado pela “Pandemia covid-19” à teoria em comento, sendo possível sua defesa pelos operadores da ciência jurídica.
Há também quem defenda que a parte prejudicada em uma contratação poderá operar excludente de responsabilidade pelos prejuízos, tendo em vista resultarem de caso fortuito ou força maior que o prejudicado não concorreu com responsabilidade15.
Embora a tese esteja se difundindo em artigos científicos e nas mais variadas mídias, a tese urge maior preciso cautela em conjunto com análise mais minuciosa quanto sua aplicação aos contratos locatícios, tanto residenciais quanto comerciais.
Inobstante sua regência por legislação extravagante16, soa desarrazoado que em meio a delicada situação de saúde global, os locatários comerciais sejam compelidos a mantença dos mesmos valores contratual e previamente estabelecidos sem que, via de regra, mantenham seu faturamento.
Oportuno salientar que a fundamentação para excludente de responsabilidade fundada em caso fortuito ou força maior, aparentemente, deverá ser a tese menos difundida, tomando-se como base que, inclusive, o STJ já se debruçou no tema afirmando que crises econômicas não são justificativas para rescisão contratual sem direito a indenização17.
Há de agir com extrema parcimônia, tendo em vista que empresários por todo o país tem mantido seus estabelecimentos fechados e sua produção paralisada, em ato de verdadeira defesa do corolário tomado por magno princípio da dignidade da pessoa humana18.
De outra banda, um dos entendimentos que, aparentemente, tem sido ignorado, mas poderá ter aplicação é quanto a deterioração das faculdades do bem locado19.
A locação comercial se presta a garantir ao locatário o uso, gozo e proveito de imóvel para fins de desenvolvimento de sua atividade empresarial, existindo inviolável nexo de causalidade entre o fim locatício e o bem locado20.
Partindo-se do pressuposto de que o empresário-locatário se encontra compelido a paralisar sua atividade visando um bem maior, o contrato de locação comercial sofre um desequilíbrio que deverá ter recondução a uma prestação razoável21.
Salienta-se que a norma positivada garante ao locatário o uso pacífico e íntegro do bem locado22, sendo que ao caso em comento, a deterioração do bem locado decorre da inutilidade ao fim comercial do locatário, por conseguinte.
Por óbvio que o locador, tratando-se de questão de equilíbrio contratual, também não poderá arcar exclusivamente com os prejuízos dali decorrente, entretanto, na situação exposta soa evidente que o locatário é quem sofrerá maior desequilíbrio.
Cediço que caberá as partes a resolução e a busca pelo bom termo, reequilibrando-se as situações discutidas, quer seja através do bom senso em uma composição extrajudicial, com todos os envolvidos cedendo um pouco de seu direito para manutenção da relação prévia em condições justas; quer seja através do uso de “força” em uma provocação do Judiciário para manifestação e resolução dos pontos controvertidos, onde a relação prévia nem sempre será preservada.
Existem princípios gerais dos contratos que devem ser respeitados, dentre os quais a boa-fé e probidade contratual23, além do gozo do direito constitucional à livre iniciativa24, resguardado pela Constituição Da República, todas variáveis que deverão ser consideradas para fins de segurança jurídica.
Os tempos atualmente vividos não gozam de precedentes na história contemporânea da humanidade, sendo certo que existirão mais incertezas do que conclusões. Entretanto, de forma a garantir um mínimo de alento, deve-se sempre salientar: há um caminho.
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1 Fato esse amplamente divulgado na grande mídia, dentre as tantas matérias, destacando Matheus Leitão, do G1 Política, que escreveu “OMS declara pandemia por coronavírus; Brasil pode ter aumento rápido de casos” em 12 de março de 2020. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2020.
2 Diante da situação de pandemia, em que pese a globalização vivida na atualidade, há extrema dificuldade em se precisar números absolutos, sendo que a OMS tem se manifestado de acordo com o que lhe tem sido passado pelos países afetados. Os dados citados são facilmente encontrados na mídia, dentre as quais destaca-se Carlos Serrano, da BBC News Mundo, em sua matéria “Coronavírus: os 4 tratamentos que a OMS está estudando para combater a covid-19” em 25 de março de 2020. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2020.
3 As normas que vem sendo, diariamente, editadas foram reunidas em um portal eletrônico para consulta unificada, denominado “Legislação COVID-19”. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2020.
4 O Decreto Legislativo Nº. 6/2020, editado pelo Senado Federal em 20 de março de 2020 reconhece para os fins do que resta disposto na Lei Complementar Nº. 101/2000 a ocorrência do estado de calamidade pública, conforme solicitado pelo presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Disponível em: . Acesso em 25 mar. 2020.
5 Ganhou notoriedade o Decreto Nº. 64.881/2020, promulgado a partir do Poder Executivo do Estado de São Paulo, na pessoa do governador João Dória, em 22 de março de 2020, onde decretou-se quarentena estadual no contexto da pandemia do COVID-19, suspendendo as atividades tidas como não essenciais em todo o território estadual entre 24 de março de 2020 e 07 de abril de 2020. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2020.
6 Em artigo publicado aos 22 de março de 2020 no NY Times, o jornalista Thomaz Loren Friedman, vencedor do Prêmio Pulitzer em 1983 e 1988, opinou em seu artigo denominado “A Plan to Get America Back to Work” (Um Plano para trazer a América de volta ao Trabalho, tradução livre) quanto aos efeitos catastróficos de uma recessão econômica posterior a pandemia, tomando como base a adesão massiva ao “lockdown”, trazendo importante reflexão à tona. Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2020.
7 Bruno Aurélio e João Pedro Cortez discorrem sobre esse cenário de incerteza no artigo publicado pelo Estadão Política em 24 de março de 2020, intitulado “Covid-19: impactos econômicos na infraestrutura”. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2020.
8 A internacional e renomada organização tem mantido o seu domínio eletrônico diariamente atualizado, trazendo notícias e, especialmente, medidas a serem adotadas para contenção e combate a contaminação pelo COVID-19. A adoção das medidas tem sido tomada por todos os governadores, conscientes de seu dever de proteção da população. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2020.
9 Define-se de forma sintética por Rodrigo Goulart de Freitas Pombo (2018) como aquela que: “Trata-se de examinar a possibilidade jurídica e os requisitos legais para que um contratante, diante de alteração das circunstâncias que torne sua obrigação excessivamente onerosa, reclame a um tribunal a resolução ou alteração do contrato.”.
10 A importante doutrina de Carlos Roberto Gonçalves (2013), expõe entendimento do doutrinador que a liberdade de contratar e a valoração irrestrita das cláusulas contratuais encontra óbice na chamada “Função Social do Contrato”, onde há de prevalecer um equilíbrio entre os contratantes e destes para com a sociedade, destacando que “é possível afirmar que o atendimento à função social pode ser enfocado sob dois aspectos: um, individual, relativo aos contratantes, que se valem do contrato para satisfazer seus interesses próprios, e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nessa medida, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social.”.
11 Conforme dispõe a norma cível expressa no Artigo 478 do Código Civil: “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.”
12 Tal qual inteligência do Artigo 479 do Código Civil: “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.”
13 Seguindo os ensinamentos do já citado doutrinador, Carlos Roberto Gonçalves (2013): “a teoria da imprevisão consiste, portanto, na possibilidade de desfazimento ou revisão forçada do contrato, quando, por eventos imprevisíveis e extraordinários, a prestação de uma das partes tornar-se exageradamente onerosa – o que, na prática, é viabilizado pela aplicação da cláusula rebus sic stantibus, inicialmente referida.”.
14 Destaca-se entendimento firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 860.277/GO em 19 de agosto de 2010, processo relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão onde fixou-se: “a aplicação da teoria da imprevisão ao contrato de compra e venda somente é possível se o fato extraordinário e imprevisível causador da onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação.”. Embora o cerne da discussão tenha sido contrato de compra e venda, por questões de analogia e, inclusive, isonomia, parece razoável entender que a conceituação também se aplica aos contratos continuados, dentre os quais o contrato de locação comercial.
15 Tese oriunda da interpretação do Artigo 393 do Código Civil: “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”
16 Não se pode olvidar que o ordenamento pátrio possui legislação extravagante que discorre sobre a modalidade em estudo, como é o caso da Lei Nº. 8.245/1991, popularmente conhecida por Lei do Inquilinato.
17 Conforme precedente da Corte Superior reiterado no REsp 779.798/DF, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi de 25 de setembro de 2006.
18 Alçado à fundamento da República quando da quebra do paradigma ditatorial em 1988, conforme consta do Artigo 1º, inciso III da Constituição da República.
19 Consoante disposição expressa do Código Civil ao Artigo 567: “se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.”.
20 Segundo a clássica doutrina da professora Maria Helena Diniz (2011), ao citar o memorável Clóvis Beviláqua: “a locação é contrato pelo qual uma das partes, mediante remuneração paga pela outra, se compromete a fornecer-lhe, durante certo lapso de tempo, o uso e gozo de uma coisa infungível, a prestação de um serviço apreciável economicamente ou a execução de alguma obra determinada.”
21 Cita-se Carlos Roberto Gonçalves (2013), ao tratar sobre o princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva, traduzindo-o: “a teoria recebeu o nome de rebuc sic stantibus e consiste basicamente em presumir, nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida, a existência implícita (não expressa) de uma cláusula, pela qual a obrigatoriedade de seu cumprimento pressupõe inalterabilidade da situação de fato.”
22 Muito bem discutido por Rodrigo da Guia Silva (2018): “Admitindo-se, como regra geral, que somente o possuidor direto sofre danos em decorrência da privação do uso, incumbe reconhecer, por outro lado, a possibilidade de situações excepcionais. Assim sucede, por exemplo, na hipótese de provação do uso que envolva contrato de locação, em razão da disciplina expressa do Código Civil (LGL\2002\400), cujo artigo 586 impõe ao locador o dever de garantir a integridade da coisa contra terceiros e seu uso pacífico. Caso o locador não adimpla satisfatoriamente essa obrigação, serão reconhecidas ao locatário as faculdades de pagar aluguel reduzido e, até mesmo, resolver o contrato (artigo 567 do Código Civil (LGL\2002\400)).”.
23 Com disposição expressa no corolário do Artigo 422 do Código Civil: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
24 Nela também inserida a livre concorrência, com intervenção para garantia do mercado ensinada na obra de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2019): “A livre concorrência é um dos princípios norteadores da atividade econômica. Desse modo, o princípio da concorrência é assumido como garantia-institucional da ordem econômica. A projeção no mercado das diferentes e autônomas iniciativas é tida como a forma mais adequada de racionalização econômica, porque, em razão da diversidade e competitividade de ofertas, cria-se terreno favorável para um progresso econômico e social em benefício dos cidadãos. O Estado tem a obrigação de garantir a racionalização do poder econômico, evitando o desaparecimento da livre concorrência (Miranda-Medeiros. Const. Anotada, t. II, p. 20).”
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Renan Binotto Zaramelo advogado em Advocacia Favero e Vaughn.
Fonte: Migalhas dos Leitores