Segundo a organização Mundial da Saúde (OMS), a pandemia causada pela Covid-19 é uma emergência de Saúde Pública de Importância Internacional — o mais alto nível de alerta da Organização, sendo inegáveis os seus deletérios na saúde pública, nas relações sociais e na economia de cada país, o que não é diferente no Brasil.
As medidas de contenção da pandemia tomadas pelo Estado brasileiro e pelas unidades federativas são drásticas e tendem a se intensificar nos próximos meses, sendo presumível que impactem de forma grave os setores produtivos, inclusive os ramos da construção civil e da incorporação imobiliária, que já prenunciam a paralisação de obras, férias coletivas, desabastecimento, quebra de contratos com fornecedores e diminuição das vendas.
Neste cenário, é real a possibilidade de atrasos nas incorporações em curso e consequentemente, na entrega das chaves aos promitentes compradores de unidades autônomas, o que pode gerar a pretensão indenizatória de danos emergentes, lucros cessantes e possíveis danos morais, bem como pedidos de resolução da relação contratual, com imposição multa às incorporadoras.
Por outro lado, os(as) consumidores(as) também sofrerão os impactos econômicos da crise, limitando a sua capacidade de honrar com as prestações financeiras assumidas nos compromissos de compra e venda, o que presumivelmente acarretará um aumento da inadimplência, atrasos na escrituração e na transferência da titularidade proprietária dos imóveis.
Desenha-se, portanto, um cenário de recíproca inadimplência, capaz de gerar tensões significativas nos contratos vigentes e futuros, e que irá colocar em teste a capacidade de adaptação de todos atores envolvidos na complexa cadeia de contratual que envolve a incorporação imobiliária, a fim de se preservar os compromissos assumidos e minimizar o desgaste econômico que se apresenta, ou no pior cenário, atenuar as perdas recíprocas pela inexecução das prestações pactuadas.
Sob a perspectiva do descumprimento dos prazos de entrega das unidades autônomas, concluímos que a Pandemia Covid-19 pode ser considerada caso fortuito ou de força maior, nos termos do artigo 393, parágrafo único, do CC, satisfazendo aos três critérios dessa excludente do nexo causal: a inevitabilidade, a necessidade e a externidade (ou exterioridade).
Trata-se, portanto, de fortuito externo à atividade das incorporadoras e construtoras, a afastar a sua responsabilidade pelos danos causados por atrasos e quebras de expectativas em razão dessa crise de saúde pública. Por outro lado, a excepcionalidade da situação não exonera as incorporadoras de cumprir com o dever de informação, devendo comunicar aos seus consumidores todas as medidas a serem tomadas para enfrentar os efeitos da pandemia, bem como alertá-los sobre os impactos nas prestações devidas e compromissos assumidos nos respectivos contratos.
Estabelecida essa primeira conclusão, indagamos se os(as) consumidores(as) afetado(as) por atrasos que superem os prazos de prorrogação de até 180 dias para a conclusão das obras, tais como previstos nos compromissos de compra e venda, poderão pleitear ao menos a resolução da relação contratual, com a aplicação da multa compensatória em seu favor, alegando o desinteresse na preservação do contrato, na forma do artigo 395, § único, do CC e do artigo 43, § 1º, Lei 4.591/64.
De forma equivalente, concluímos que os efeitos da Pandemia Covid-19 afastam a hipótese resolutiva, mesmo quando causadores de atrasos que superem os prazos de prorrogação automática dos compromissos de compra e venda, uma vez que o fundamento jurídico de incidência do art. 43-A, § 1º da Lei 4.591/64 não é o mero decurso do tempo, mas a configuração do inadimplemento absoluto das prestações imputáveis à incorporada.
Diante disso, caracterizado que a pandemia da Covid-19 se constitui como caso fortuito ou de força maior externa, capaz de exonerar o devedor da responsabilidade pelas consequências do inadimplemento resultante do cenário de exceção, não cabe ao credor pleitear a resolução da relação contratual e o pagamento da multa compensatória correspondente.
Vedada essa possibilidade, vislumbramos duas alternativas à disposição do(a) adquirente de imóveis na planta que, impactado pelo excessivo atraso na entrega do imóvel prometido, tenha perdido interesse no aperfeiçoamento do negócio. A primeira delas é a resilição da relação contratual, possibilidade plenamente assegurada pelos Tribunais brasileiros, antes mesmo da edição da Lei 13.786/2018.
Por se tratar de hipótese de extinção imotivada da relação contratual, contudo, o(a) consumidor(a) estará sujeito ao pagamento da multa compensatória prevista no instrumento (Enunciado 534 da Súmula do STJ). Para os contratos anteriores à entrada em vigor da Lei 13.786/2018, essa multa deverá respeitar os limites de 10% a 25% das parcelas pagas pelo promitente comprador, conforme entendimento sedimentado pelo STJ e, para os contratos posteriores, deverá seguir os padrões expressamente legislados no referido diploma.
A segunda alternativa se aplica ao(a) consumidor(a) que, a exemplo das incorporadoras, ficou impossibilitado de adimplir as prestações de sua responsabilidade por efeito direito da crise causada pela Covid-19, podendo alegar a resolução por onerosidade excessiva, nos termos do artigo 478 do CC.
Para a caracterização desta hipótese, no entanto, além dos aspectos financeiros (prova do prejuízo e do desequilíbrio negocial), o fato jurídico superveniente causador da onerosidade excessiva deve ser extraordinário e imprevisto, condições que, em nosso entendimento estão satisfeitas pela pandemia Covid-19, não só por sua potencialidade de causar desequilíbrio superveniente à conclusão do contrato entre as partes, mas, também, por a consequência desse desequilíbrio ter sido absolutamente extraordinária.
Desse modo, demonstrando o(a) consumidor(a) que todas as restrições e medidas emergenciais decorrentes das ações contra o coronavírus, os atrasos, os problemas bancários, as dificuldades cartorárias, os impactos financeiros, etc., tornaram a manutenção do sinalagma excessivamente onerosa, poderá este pleitear a resolução da relação contratual por onerosidade excessiva, hipótese em que terá direito à restituição dos valores pagos, de forma atualizada, sem a aplicação da multa compensatória em seu desfavor.
Por fim, tratamos da possibilidade de revisão das cláusulas contratuais, apontando que o Direito Civil brasileiro incorporou a teoria da imprevisão, a autorizar a revisão judicial das prestações em situações excepcionais, nos termos do artigo 317 e 478 do CC, sem que isso implique, necessariamente, a resolução da relação contratual.
Concluímos, no entanto, que a beligerância negocial e judicativa não são as melhores alternativas para enfrentar a crise que se apresenta. Os efeitos deletérios da pandemia Covid-19 não apenas permitem como tornam exigíveis a revisão paritária da relação contratual pelas partes contratantes, constituindo-se como mandamento ético, inclusive, da preservação da atividade econômica em um contexto excepcional.
Nesse caminho, recomenda-se que as incorporadoras intensifiquem o diálogo com os(as) promitentes compradores(as), no sentido de lhes informar de todas medidas que serão tomadas no período e os impactos previsíveis nos compromissos anteriormente assumidos, possibilitando a revisão de cláusulas contratuais incompatíveis com a realidade imposta.
Cabe, também, aos(às) consumidores(as), de forma tempestiva, comunicar as alterações significativas de suas circunstâncias pessoais, procurando de, boa-fé, a adaptação de cláusulas contratuais e compromissos ao novo cenário inaugurado, sempre sob uma perspectiva de aproveitamento máximo das obrigações contraídas.
Clique aqui para ler o artigo na íntegra
Pablo Malheiros da Cunha Frota é doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e advogado em Brasília
Ramiro Freitas de Alencar Barroso é advogado e doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB).
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário