sexta-feira, 30 de julho de 2021

IGP-M varia 0,78% em julho de 2021


O Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) variou 0,78% em julho, contra 0,60% no mês anterior. Com este resultado o índice acumula alta de 15,98% no ano e de 33,83% em 12 meses. Em julho de 2020, o índice havia subido 2,23% e acumulava alta de 9,27% em 12 meses.

“Efeitos sazonais, exportações e a alta acumulada nos preços das rações orientaram a aceleração do índice ao produtor, que nesta apuração, contou com a destacada influência de três itens: minério de ferro (-3,04% para 2,70%), adubos ou fertilizantes (5,70% para 14,28%) e leite in natura (6,20% para 5,74%). No âmbito do consumidor, os destaques foram os energéticos. A tarifa elétrica avançou 5,87% e o GLP 4,05%”, afirma André Braz, Coordenador dos Índices de Preços.

Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA)

O Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA) subiu 0,71% em julho, ante 0,42% em junho. Na análise por estágios de processamento, a taxa do grupo Bens Finais variou 1,08% em julho. No mês anterior, o índice havia registrado taxa de 1,32%. A principal contribuição para este resultado partiu do subgrupo alimentos processados, cuja taxa passou de 2,45% para 1,36%, no mesmo período. O índice relativo a Bens Finais (ex), que exclui os subgrupos alimentos in natura e combustíveis para o consumo, variou 1,13% em julho, ante 1,95% no mês anterior.

A taxa do grupo Bens Intermediários passou de 1,78% em junho para 1,15% em julho. O principal responsável por este movimento foi o subgrupo materiais e componentes para a manufatura, cujo percentual passou de 1,71% para 0,11%. O índice de Bens Intermediários (ex), obtido após a exclusão do subgrupo combustíveis e lubrificantes para a produção, variou 1,27% em julho, contra 2,03% em junho.

O estágio das Matérias-Primas Brutas variou 0,09% em julho, após cair 1,28% em junho. Contribuíram para o avanço da taxa do grupo os seguintes itens: minério de ferro (-3,04% para 2,70%), suínos (-13,50% para 5,69%) e mandioca/aipim (-6,01% para 3,57%). Em sentido oposto, destacam-se os itens cana-de-açúcar (7,73% para 1,36%), café em grão (8,15% para 0,04%) e soja em grão (-4,71% para -5,92%).

Índice de Preços ao Consumidor (IPC)

O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) subiu 0,83% em julho, ante 0,57% em junho. Quatro das oito classes de despesa componentes do índice registraram acréscimo em suas taxas de variação. A principal contribuição partiu do grupo Educação, Leitura e Recreação (-0,69% para 2,16%). Nesta classe de despesa, vale citar o comportamento do item passagem aérea, cuja taxa passou de -7,28% em junho para 24,69% em julho.

Também apresentaram acréscimo em suas taxas de variação os grupos Habitação (1,10% para 1,66%), Alimentação (0,31% para 0,59%) e Comunicação (-0,03% para 0,00%). Nestas classes de despesa, vale mencionar os seguintes itens: tarifa de eletricidade residencial (3,30% para 5,87%), frutas (-5,59% para -1,04%) e mensalidade para internet (-0,60% para -0,28%).

Em contrapartida, os grupos Transportes (1,43% para 0,73%), Saúde e Cuidados Pessoais (0,07% para -0,07%), Despesas Diversas (0,29% para 0,06%) e Vestuário (0,40% para 0,26%) registraram decréscimo em suas taxas de variação. Nestas classes de despesa, destacam-se os seguintes itens: gasolina (2,72% para 1,44%), médico, dentista e outros (0,73% para -0,99%), alimentos para animais domésticos (2,60% para 0,91%) e roupas (0,58% para 0,36%).

Índice Nacional de Custo da Construção (INCC)

O Índice Nacional de Custo da Construção (INCC) variou 1,24% em julho, ante 2,30% no mês anterior. Os três grupos componentes do INCC registraram as seguintes variações na passagem de junho para julho: Materiais e Equipamentos (1,75% para 1,52%), Serviços (1,19% para 0,65%) e Mão de Obra (2,98% para 1,12%).

O estudo completo está disponível no site.

Fonte: FGV

Projetos de retrofit e conversão de uso em condomínios pulverizados: como superar o desafio da unanimidade?


O problema

Aceite o que não se pode mudar, e mude o que não se pode aceitar. A pandemia de Covid-19 afetou o mercado imobiliário, as empresas e as pessoas de todos os modos possíveis, em todas as direções. Nada será exatamente como antes.

No turismo, os hotéis foram atirados em um jogo impossível para conseguir hóspedes. Em 2020 a queda foi vertiginosa1, chegando a assustadores 10% de ocupação, com empreendimentos fechando as portas país afora. Mesmo nas férias escolares a previsão de ocupação média ficou em 50%, a exemplo do Estado de São Paulo2. Para se adaptar e sobreviver, começou-se a estudar, em alguns casos, a conversão para uso residencial da totalidade ou de parte das unidades então disponíveis para hospedagem, como o Hotel Gloria e outros dez hotéis no Rio de Janeiro3.

Outro efeito da pandemia, não inédito, foi o esvaziamento de bairros comerciais tradicionais, como o centro da cidade do Rio de Janeiro, cuja vacância de salas e lojas, em fevereiro/2021, já beirava absurdos 40%, sem nenhum sinal de arrefecimento da crise4.

Para tentar reverter a tendência de degeneração desse importante espaço urbano, a Prefeitura do Rio lançou o Programa Reviver Centro, com o objetivo macro de atrair novos moradores e promover a recuperação urbanística, social e econômica da região5. Além de prever incentivos fiscais, o programa estimula a locação social, a construção de novas moradias e a conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou misto.

Na mesma linha, o Prefeito de São Paulo sancionou a lei municipal nº 17.577, de 20 de julho de 2021, que trata do Programa Requalifica Centro, que também prevê incentivos a fim de atrair investimentos para a região.6

Planos como o Reviver Centro (Rio de Janeiro) e o Requalifica Centro (São Paulo), para serem bem-sucedidos, necessitam do óbvio: uma adesão relevante dos particulares proprietários das edificações locais, a ponto de realmente fomentar a transformação da região, e é neste ponto que surge um obstáculo relevante a ser ultrapassado. A maioria dos edifícios tem seu domínio pulverizado, com muitos donos, e os arts. 1.343 e 1.351 do Código Civil, geralmente, e sem reflexão, reforçados pelas convenções condominiais, exigem a anuência da unanimidade dos condôminos para se aprovar a alteração. Um quórum virtualmente impossível em muitos casos. Como, então, superar este desafio?

Antes de avançarmos, porém, é preciso desviar a rota para não nos perdermos em uma perigosa salada conceitual, distinguindo-se três figuras distintas, que podem ou não estar juntas na remodelação de um edifício, e que influenciam diretamente as soluções propostas neste artigo: retrofit, criação (e/ou extinção) de unidades autônomas, e alteração de uso.

1.1. Retrofit

O retrofit está definido na Norma de Desempenho NBR 15575-1, da ABNT, como a "remodelação ou atualização do edifício ou de sistemas, através da incorporação de novas tecnologias e conceitos, normalmente visando valorização do imóvel, mudança de uso, aumento da vida útil e eficiência operacional e energética"7, no âmbito de uma incorporação imobiliária ou fora dela.

Sim, caro leitor: tais figuras nem sempre estão juntas, e nem sempre estão isoladas. E sua triagem nem é tão difícil. Basta nos guiarmos pela razão de ser da concepção dos artigos 28 e seguintes da Lei de Condomínios e Incorporações: a proteção, desde o longínquo ano de 1964, muito antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, do adquirente de unidade na planta, assim considerada aquela que ainda depende de relevantes intervenções construtivas e aprovação da municipalidade para estar apta ao uso do comprador.

Então, sempre que o empreendimento se caracterizar pelo compromisso de entrega, aos adquirentes, de unidades imobiliárias e/ou áreas comuns a serem construídas ou substancialmente reformadas, o empreendedor, antes de iniciar a alienação dos imóveis, deve promover no cartório imobiliário o arquivamento dos documentos previstos no art. 32 da lei 4.591/648.

O que isso tem a ver com o quórum de aprovação? Veremos adiante. Por ora, basta guardarmos o conceito.

Clique aqui e confira a íntegra da coluna.

*Melhim Chalhub é membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil, da Academia de Direito Registral Imobiliário, Cofundador e Membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor dos livros Incorporação Imobiliária, Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário e Direitos Reais, entre outros.
**André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Presidente do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ e do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário.
__________

1 Novo coronavírus impacta gravemente setor hoteleiro. Smartus. Matéria publicada em 25.mar.2020 com dados da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH Nacional) disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021.

2 Hotéis devem atingir até 50% de ocupação em julho no estado de SP, apontam dados do setor. Reportagem publicada e 9.jul.2021 em O Globo, com projeção da ABIH-SP. Disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021.

3 Confiram-se as seguintes reportagens: (i) Com menos hóspedes, 11 hotéis do Rio planejam transformar parte dos quartos em residências e escritórios. O Globo. Matéria publicada em 22.jun.2021. Disponível aqui; e (ii) Conversão de uso é alternativa para hotéis e lajes corporativas. GRI Club. Matéria publicada em 18.jun.2021. Disponível aqui. Ambos os acessos em 12.jul/2021.

4 Os dados variam em cada pesquisa, mas há consenso sobre uma vacância de pelo menos 30%: (i) Um em cada três imóveis para alugar no Centro do Rio está desocupado. O Globo. Matéria publicada em 27.mai.2021. Disponível aqui; e (ii) RJ tem quase 40% dos escritórios de alto padrão vazios - não só pela pandemia. CNN Brasil. Matéria publicada em 21.jan.2021. Disponível aqui.Todos os acessos em 11.jul.2021.

5 Prefeitura lança Reviver Centro, plano para atrair novos moradores e estimular a recuperação urbanística, social e econômica da região. Prefeitura Rio. Matéria publicada em 26.jan.2021. Disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021. Inteiro teor do PL aprovado na Câmara. Disponível aqui. Para mais detalhes sobre o Programa Reviver Centro. Todos os acessos em 24.jul.2021.

6 A referida Lei Municipal é objeto de pelo menos uma ação anulatória no TJSP (processo 1044733-40.2021.8.26.0053), ainda não julgada, sob o fundamento de supostos vícios legislativos, mas nenhum dos fatos alegados impacta o objeto deste artigo.

7 A versão mais atual, de 2013, está disponível para aquisição, mas a definição pode também ser encontrada em versão anterior, de 2010, disponível aqui (p. 7, item 3.26). Ambos os acessos em 12.jul.2021.

8 Eduardo Moreira Reis trata do tema em interessante artigo, e afirma o seguinte: "Em face de tais elementos, lança-se aqui a segunda pergunta deste breve ensaio: seria lícito ao empreendedor do retrofit voluntariamente atrair para si o regime jurídico das incorporações, aprovando perante a municipalidade seu projeto interventivo e obtendo o alvará da obra, registrando no Registro de Imóveis o memorial previsto no art. 32 da Lei 4.591/64, optando pelo patrimônio de afetação, nos termos do art. 31-A da Lei e requerendo ao Fisco o Regime Especial Tributário das Incorporações, nos termos da lei 10.931/2004 e legislação complementar? Nosso entendimento particular é que SIM, pois todos os princípios constitucionais e legais envolvidos na produção construtiva, especialmente a habitacional, como os de proteção à aquisição da moradia própria, de proteção ao consumidor, de proteção à ordem urbanística e tributária e de liberdade econômica são atendidos, em maior ou menor grau, pelo regime legal das incorporações. Não vislumbramos qualquer prejuízo público ou privado decorrente da aplicação das regras de tal regime, ao invés da aplicação das regras gerais dos contratos imobiliários. E a identidade entre o retrofit com venda prévia de unidades e a incorporação, criando uma "zona cinzenta" em termos conceituais, especialmente no caso de intervenções construtivas mais onerosas e complexas, nos parece plenamente justificadora da opção por tal regime, até que um regime legal próprio seja positivado". REIS, Eduardo Moreira. Os empreendimentos com retrofit e o regime das incorporações imobiliárias: alguns aspectos registrais e contratuais. In: Estudos de Direito Imobiliário: Homenagem a Sylvio Capanema de Souza. ABELHA, André (Coord.). Porto Alegre: Paixão Editores, 2020, p. 270-281.

Atualizado em: 29/7/2021 08:27

Fonte: Migalhas Edilícias

Responsabilidade pela obrigação de pagamento das despesas condominiais


A controvérsia sobre a legitimidade para responder por dívidas condominiais se tornou objeto do Tema Repetitivo 886 do STJ, principalmente no que concerne à hipótese de alienação do imóvel quando o compromisso de compra e venda não for levado a registro1. A questão se mostra bastante interessante, em especial sob a perspectiva envolvendo o conjunto de deveres e obrigações dos condôminos perante o condomínio, os quais recaem sobre aquele que exerce a posse da unidade autônoma.

As despesas condominiais possuem natureza propter rem, ou seja, obrigação própria da coisa. Significa dizer que, aquele que adquirir a propriedade, também adquire as obrigações financeiras relativas a este imóvel, no que se incluem as taxas condominiais.

A decisão que originou o tema 886 no STJ, se fundamenta na necessidade de definição sobre a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais, no caso de inexistência de registro do compromisso de compra e venda, haja vista os inúmeros questionamentos sobre o tema.

Assim, estabeleceu-se que a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não depende do registro do compromisso de compra e venda, mas sim, da relação jurídica material estabelecida com o imóvel, representada pela imissão do promissário comprador na posse e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação2.

Anteriormente ao tema repetitivo, a jurisprudência era dividida, alguns tribunais entendiam que a cobrança deveria recair sobre o proprietário que figura na matrícula do imóvel junto ao Registro de Imóveis, mesmo que o imóvel já houvesse sido alienado através do denominado "contrato de gaveta", não obstante, outros tribunais entendiam que a responsabilidade deveria recair sobre o comprador3.

Em atenção à realidade que envolve as negociações imobiliárias em nosso país, o segundo entendimento prevaleceu, no sentindo de que a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais deve recair sobre o comprador, mesmo que o contrato ainda não esteja registrado, com a ressalva de que o referido comprador esteja na posse do imóvel e o condomínio tenha conhecimento do fato.

Desta maneira, quem tem a posse direta do imóvel, ou seja, reside na unidade, usufruindo de todos os benefícios oferecidos pelo condomínio, deverá responder pelas despesas condominiais, mesmo que o proprietário tabular seja pessoa diversa. Todavia, não se pode desprezar a necessidade de adoção das cautelas necessárias pelo alienante do imóvel, no sentido de comunicar o condomínio sobre a celebração do negócio.

Nesta senda, o proprietário que está vendendo o imóvel através de contrato de promessa ou compromisso de compra e venda - mesmo que não esteja registrado à margem da matrícula do imóvel -, não deve responder pelas obrigações condominiais, que de acordo com a jurisprudência, passaram a ser do detentor da posse da unidade.

Vale colacionar a decisão do STJ (Resp 1345331/RS) que trata sobre o tema

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. CONDOMÍNIO. DESPESAS COMUNS. AÇÃO DE COBRANÇA. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA NÃO LEVADO A REGISTRO. LEGITIMIDADE PASSIVA. PROMITENTE VENDEDOR OU PROMISSÁRIO COMPRADOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. IMISSÃO NA POSSE. CIÊNCIA INEQUÍVOCA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, firmam-se as seguintes teses: a) O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador. 2. No caso concreto, recurso especial não provido.

(STJ - REsp: 1345331 RS 2012/0199276-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 08/04/2015, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 20/04/2015)

(TJ-RS - AC: 70075939884 RS, Relator: Marco Antonio Angelo, Data de Julgamento: 26/07/2018, Décima Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/08/2018).

Conforme se depreende da análise do referido julgado, restou consignado que, em caso de compromisso de compra e venda não levado à registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio dependerão das circunstâncias do caso concreto, podendo recair tanto sobre o promitente vendedor, quanto sobre o promissário comprador.

Entretanto, para fins de incidência da responsabilidade, não restam dúvidas sobre a importância da comprovação da relação jurídica direta com o condomínio. Nesse sentido, assim relatou o Ministro Luis Felipe Salomão no Resp 1345331: "as despesas condominiais, compreendidas como obrigações propter rem, são de responsabilidade daquele que detém a qualidade de proprietário da unidade imobiliária, ou ainda do titular de um dos aspectos da propriedade, tais como a posse, o gozo ou a fruição, desde que esse tenha estabelecido relação jurídica direta com o condomínio".

No mesmo sentido, se apresenta o entendimento de Luiz Antonio Scavone Junior

"Como se depreende, é a orientação que mais se coaduna com a lei, vez que no mundo fático é sabida existência dos chamados "contratos de gaveta", prática já arraigada nos negócios imobiliários que não tem sido ignorada pelo Poder Judiciário, atento à realidade social.

Em consonância com o acatado, obrigar o cedente ou o proprietário ao pagamento de despesas de exclusiva responsabilidade do promitente comprador ou cessionário que tomou posse - o que é imprescindível no caso - seria premiar o enriquecimento ilícito destes que, afinal, são os verdadeiros possuidores e titulares do imóvel."4

Há casos, porém, em que são realizadas cobranças de despesas condominiais em decorrência do simples fato de ter sido celebrado um contrato de promessa ou compromisso de compra e venda, desprezando-se a ausência de imissão na posse do imóvel, problema bastante corriqueiro na modalidade de aquisição de imóvel ainda na planta, o que se apresenta em desacordo com o entendimento jurisprudencial.

Pois, o entendimento consolidado na jurisprudência estabelece que ao estar diante de imóvel adquirido na planta, "antes do recebimento das chaves e, pois, da imissão na posse do imóvel, as despesas condominiais não podem ser imputadas aos compromissários compradores que não podem exercer os direitos de condômino previstos no artigo1.335 do Código Civil."5

Veja-se, nesse sentido, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

APELAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA. DESPESAS CONDOMINIAIS. Imóvel adquirido na planta. Inviável a cobrança de despesas de condomínio antes da entrega das chaves. O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. Entendimento do E. STJ firmado em sede de recurso repetitivo (REsp nº 1.345.331/RS). Inexigibilidade do débito perseguido pelo apelado junto aos apelantes, uma vez que vencido anteriormente à imissão dos promitentes compradores na posse do imóvel. DANOS MORAIS. Ocorrência. Protesto indevido da dívida e proibição de participação dos apelantes em assembleia condominial. Quantum debeatur arbitrado em R$ 10.000,00. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO.

(TJ-SP - AC: 10085300620148260577 SP 1008530-06.2014.8.26.0577, Relator: Rosangela Telles, Data de Julgamento: 05/11/2020, 27ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/11/2020)

Portanto, diante da análise dos julgados, bem como do entendimento doutrinário que regem a matéria, indispensável observar o caso concreto, mormente em razão da data da imissão da posse do adquirente do imóvel, bem como se atentar à necessidade de que seja realizada a comunicação sobre a sua alienação ao condomínio, de modo a permitir a ciência sobre quem de fato exerce a posse da unidade, evitando-se dessa forma a responsabilização indevida pelo pagamento das despesas condominiais.
----------

1- STJ. Acesso em 25/07/2021. Disponível aqui.

2- STJ. STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 1345331. Disponível aqui.

3- SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2021, pág. 1040.

4- SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2021, pág. 1043.

5- TJSP, Apelação n.º 0017742-73.2013.8.26.0037, rel. Des. Mourão Neto, 33ª Câm. Dir. Priv.,j.17/03/14

Atualizado em: 30/7/2021 08:48

Debora Cristina de Castro da Rocha - Advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado nas áreas do Direito Imobiliário e Urbanístico, Mestre em Direito Empresarial e Cidadania e Professora.
Camila Bertapelli Pinheiro - Advogada no escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso.
Edilson Santos da Rocha - Assistente jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Bacharel em Direito pela Faculdades da Industria - FIEP.
Fonte: Migalhas de Peso

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Mediação e Arbitragem – Meios de solução de conflitos nas operações de permuta para empreendimentos imobiliários


No contexto dos contratos de permuta imobiliária, tendo como objeto o terreno para construção de empreendimento, o presente texto tem por escopo discorrer sobre meios alternativos para solução de conflitos quanto há crises no cumprimento de obrigações nos contratos de operações imobiliárias, notadamente quando há inadimplemento nos contratos de permuta de imóveis entre proprietários de terreno (“terrenistas”) e incorporadoras. A mediação e arbitragem são procedimentos extrajudiciais de composição de conflitos que trazem vantagens importantes em prol do desenvolvimento deste segmento da economia, trazendo confiança aos investidores ao vislumbrarem que há uma via alternativa à judicialização do litígio.

A demanda imobiliária vem crescendo ao longo dos anos com maior aceleração nos centros urbanos por força do próprio desenvolvimento das cidades e crescimento demográfico. Mesmo com alguns intervalos causados por crises econômicas, vê-se que, diante da pandemia da Covid-19, a indústria imobiliária apresenta números positivos em larga oferta de novos empreendimentos residenciais, a exemplo do que ocorre atualmente na Cidade de São Paulo.

Nas últimas décadas, a legislação também contribuiu para o desenvolvimento econômico do setor, tal como do programa “Minha Casa, Minha Vida” para a população de baixa renda e, também, com o advento da Lei 9.514/1997, que introduziu o instituto da alienação fiduciária de coisa imóvel, dinamizando as garantias do crédito imobiliário e simplificando a forma de cobrança, além da rescisão por inadimplemento do comprador e retomada da posse do bem imóvel. Também instituiu a securitização de créditos imobiliários mediante a emissão de CRI – Certificado de Recebíveis Imobiliários, fomentando o setor.

A captação de recursos para empreendimentos imobiliários se popularizou como uma nova forma de investimento, no qual o investidor tem a opção de participar de operações de grande porte, inclusive com benefícios fiscais e maior liquidez, por meio dos FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO (FII) . Com mais crédito disponível a um menor custo de captação, várias incorporadoras aumentaram seu volume construtivo; o que repercutiu também nas diversas fusões e aquisições das empresas do setor e movimentos de abertura de capital na bolsa de valores destas companhias (IPO).

Neste contexto, o presente texto visa analisar a pertinência das cláusulas que podem ser pactuadas entre as partes contratantes que prestigiam a obrigação de negociar, como (i) a cláusula de HARDSHIP; (ii) o aceite das partes em se submeterem ao procedimento de mediação com vistas a buscar um acordo sobre a questão conflituosa; (iii) e, finalmente, a convenção da arbitragem como forma de resolver o impasse obrigacional que dependerá do julgamento do árbitro no curso de um processo próprio.

Nas operações de permuta de bens imóveis há um descompasso temporal entre a transferência da propriedade do terreno onde será erigido o empreendimento imobiliário, (o que ocorre antes do lançamento das unidades habitacionais para venda ainda na planta) e o recebimento pelo vendedor da área construída em permuta, geralmente no próprio terreno, o que se dará no futuro com o cumprimento da obrigação principal pela incorporadora de construir as unidades e áreas conforme o projeto arquitetônico.

Não se pode perder de vista que a estruturação de um empreendimento imobiliário seja para loteamento de área, seja para a construção de edifícios residenciais e/ou comerciais, incluindo-se nisto os mais modernos empreendimentos que conjugam prédios residenciais com escritórios e centros comerciais, demandam uma estrutura de contratos com cláusulas suspensivas e resolutivas por força dos elementos externos e intrínsecos que podem impedir ou alterar o curso do projeto a ser desenvolvido, razão pela qual os contratos celebrados perpassam pelo contrato preliminar (opção de compra com exclusividade e compromisso particular de compra e venda/permuta) até o contrato principal e definitivo de transferência da propriedade (escritura pública de transferência aliado a instrumento de confissão de dívida, escritura complementar de dação em pagamento e contratos de garantia com terceiros – Bancos/Seguradoras).

São comuns crises no cumprimento das obrigações contratuais diante de uma universalidade de condições a serem avaliadas e superadas, não só com relação aos elementos comerciais mas também jurídicos e, assim, busca-se cada vez mais importar experiências de cláusulas e modelos contratuais de outras áreas do direito e jurisdições anglo-saxônicas (contract law) que tragam soluções jurídicas para composição de controvérsia entre as partes como alternativa à resolução contratual, afinal estas operações são de longo trato de modo que os instrumentos contratuais deverão regular mecanismos de composição e até ajuste de preço na hipótese de fato superveniente capaz de alterar as condições comerciais iniciais.

Fatores imprevisíveis podem resultar na perturbação do cumprimento contratual e excepcionalmente reclamar a revisão do trato, seja pela teoria da onerosidade excessiva, seja por menos, pois o desequilíbrio contratual que altere o sinalagma do pacto pode ensejar a renegociação sem a necessidade da presença concomitante de todos os requisitos como (i) advento de obrigação excessivamente onerosa;(ii) com repercussão de extrema vantagem para outra parte; (iii) por fato extraordinário e imprevisível, segundo sustentado por Judith Martins Costa (p. 218/219, Crise e perturbações no cumprimento da prestação):

“Ademais para os contratos sinalagmáticos, o art. 478 (NCC) não ampara a revisão ou qualquer forma de acomodação do contrato às circunstâncias. Sequer as tentativas de, por via hermenêutica, obviar o requisito da extrema vantagem, poderiam auxiliar a encontrar uma solução para o caso de ambas as partes do contrato virem a sofrer excessiva onerosidade em razão do fato da pandemia. A regra resolutiva tem por finalidade proteger o devedor, por meio da inserção, no sistema jurídico, da relevância 0econômica da prestação e distribuição do risco entre as partes, o que significa dizer que, se ultrapassada a álea normal – estabelecida pelo sinalagma ligado ao tipo ou convencionada pelas partes – e observados os demais requisitos legais, nasce o direito formativo extintivo.”

É salutar a previsão contratual que regule o tratamento em caso de alterações significativas capazes de tornar a conclusão do negócio imobiliário menos satisfatório ou com impacto negativo substancial naquilo que foi inicialmente considerado na formação do pacto. Dependendo da magnitude da causa adversa, as partes terão a prerrogativa de não concluir a operação, ou renegociar à luz do princípio da boa-fé contratual.

Nesta linha de raciocínio, a convenção de cláusula HARDSHIP representa também uma opção adicional de cláusula cujo mecanismo busca evitar a rescisão contratual, partindo da premissa de preservação do sinalagma; repartição dos custos do fato superveniente; e renegociação como modo de readaptar as partes sem desfazer o negócio.

Na cláusula HARDSHIP a obrigação é de renegociar quando há uma situação superveniente que impacta no contrato de permuta, isto é, frente a um fato ou condição concreta em que as partes definiram contratualmente como gatilho para cumprir a obrigação mútua de renegociar, logo o inadimplemento é o descumprimento do dever de negociar em uma pauta procedimental como a mediação, e não necessariamente a obrigação de chegar-se a uma composição efetiva, cujo inadimplemento, se caraterizado, implementa a omissão na obrigação de fazer, e consequentemente favorece a parte prejudicada a pleitear os consentâneos contratuais. Observe-se que a cláusula HARDSHIP se apresenta em linha com a legislação pátria no aspecto de balizar os atos jurídicos pelo princípio da boa-fé .

“Quando as partes preveem o dever de negociar antes de qualquer outra solução, constitui-se o direito subjetivo a exigir, desde logo, a renegociação. Esta pode ser pedida tanto pela parte que sofre o hardship quanto pelo seu cocontratante, interessado na manutenção da relação contratual.”

O descumprimento contratual do dever de negociar, se previsto em contrato, se caracteriza pela violação do dever de buscar uma composição amigável, isto é a recusa de buscar a superação dos impasses, mesmo que esta recusa venha disfarçada de desídia e propostas inaceitáveis no contexto do negócio em pauta.

A culpa pela parte infratora ao violar a obrigação de fazer acima apontada pode resultar efeitos jurídicos importantes, como o inadimplemento definitivo e assim constituir o direito de rescisão contratual por justa causa a ser suscitado pela parte prejudicada.

Na negociação para busca de uma composição, as partes devem ponderar as alternativas que cada uma delas possui para tomar a decisão de ceder e chegar a um acordo em detrimento de um julgamento futuro e incerto. BATNA (best alternative to a negotiate agreement) é um termo utilizado no qual a parte deve ponderar qual a melhor alternativa na defesa do seu interesse em relação à proposta de acordo eventualmente negociada, isto é, se a alternativa ao acordo for menos vantajosa ou traz riscos não admissíveis, a via da composição amigável deve prevalecer.

“When we turn to thinking about how a negotiator can satisfy her or his interests, a critical question is what the negotiator could do in the abstence of a negotiated agreement. That is, if the negotiation fails, what will each negotiator do – what are the alternatives to agreement or possible “walkaway” courses of action. By definition, an alternative to agreement must be a course of action that the negotiator can implement without the consent of the other negotiator. In trying to negotiate a resolution of a business dispute, for example, one party’s alternatives might include doing nothing, suing the other party, trying to sell out to a third party, holding a press conference, and so on.

Since a negotiator unable to reach agreement will have to choose one of his or her various alternative to pursue, a key question is which one. Among the various alternative courses of action a negotiator could pursue, which would best satisfy that negotiator’s interests. This alternative is commonly referred to as negotiator’s best alternative to a negotiate agreement, or BATNA.”

Há técnicas de negociação para serem aplicadas na mediação, cujo procedimento será desenvolvido por meio de reuniões e conversas entre as partes organizadas e controladas por um mediador que terá como objetivo aproximar os interesses e reduzir as diferenças de entendimento entre partes, com o objetivo de buscar a transação.

Imperioso a prévia preparação da estratégia, com perguntas táticas para colher informações e entender o que cada parte de fato deseja, principalmente o que é prioridade para cada uma e o que é negociável como “moeda de troca” para que ser objeto de barganha. Na negociação distributiva há instrumentos para que haja compensações futuras como forma de concluir a fase negocial, a exemplo da convenção de cláusula de “earn-out” (originado nos contratos de M&A – merge and aquisition), na qual as partes estabelecem um gatilho para o cumprimento de obrigação futura, geralmente uma compensação financeira, em caso de implementação de um evento futuro positivo.

Seja durante a fase inicial da negociação do contrato de permuta ou em caso de renegociação no seu curso, a cláusula de earn-out pode ser empregada, por exemplo, para que em caso de sucesso no volume de vendas (fluxo de vendas na fase de lançamento do empreendimento imobiliário) das unidades habitacionais que serão construídas no terreno adquirido, o proprietário do terreno seja compensado com a antecipação de valores (chamada de “permuta financeira”). Outra hipótese a ser considerada é a contratação da cláusula de earn-out estipulando-se um prêmio ou ajuste de preço do terreno caso o VGV (valor geral de vendas) do empreendimento seja majorado por aspectos positivos do mercado, ou seja, negocia-se um prêmio em favor do vendedor-terrenista condicionado ao fluxo de vendas e majoração do preço dos imóveis, de sorte que haverá um acréscimo no preço do terreno desde que a projeção financeira da incorporadora também aumente, tudo como forma de viabilizar as condições comerciais entre as partes.

“Mecanismos de earn-out podem e devem ser utilizados como uma forma de auxiliar comprador e vendedor na definição do preço da operação em determinados casos, por permitir um maior equilíbrio entre os riscos e expectativas de cada uma das partes quanto ao negócio em si.”

Os permutantes também podem prever o instituto da arbitragem como o meio pelo qual, em caso de controvérsia sobre o negócio jurídico sobre direito patrimonial disponível, as partes resolvam com o uso deste procedimento extrajudicial cuja análise e decisão caberá a um ou mais árbitros em sede de uma Câmara Arbitral escolhida pelas partes, com regras procedimentais pré-definidas. Para tanto, tudo se inicia, como é cediço, com a estipulação voluntária da cláusula compromissória, indicando a arbitragem e a respectiva Câmara no próprio contrato de permuta, o que significa que as partes elegem antecipadamente que em caso de conflito a forma de solução se dará pelo procedimento da arbitragem ao invés da justiça comum estatal, segundo regulado pela lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem). Esta modalidade veda o direito das partes de ajuizarem demanda na justiça estatal sobre questões relacionadas ao negócio jurídico se a arbitragem foi pactuada.

Adicionalmente o regimento interno da câmara arbitral escolhida também trará suas próprias regras procedimentais, como a indicação e escolha dos árbitros (de um ou três árbitros). A imparcialidade e independência dos árbitros é fundamental sob pena do procedimento vir a ser anulado (art. 32 da Lei de Arbitragem), razão pela qual a análise e verificação de ausência de conflito de interesse entre as partes e os árbitros deve ser perquirido rigorosamente.

Considerando que a sentença arbitral constitui uma decisão terminativa e irrecorrível do conflito, com força de coisa julgada, a justiça comum poderá ser acionada apenas na fase de execução da decisão arbitral, na hipótese de não cumprimento voluntário pela parte sucumbente.

Objetivamente as duas grandes vantagens pela escolha da arbitragem é a rapidez na solução do conflito e o sigilo do procedimento. A rapidez porque as etapas de apresentação dos argumentos e provas são céleres e respeitam uma agenda pré-definida, admitindo-se perícia se necessário for, o que por via de consequência apresenta uma previsibilidade mais acurada que a justiça comum, inclusive por conta da irrecorribilidade da decisão arbitral de modo que com o julgamento da questão controversa, somente caberá eventual esclarecimento sobre a decisão sem efeitos infringentes.

Nos contratos de permuta, principalmente na fase de prestação de contas para pagamento da permuta financeira (parcela de pagamento do terreno em pecúnia) e, também, na fase de entrega das áreas construídas (permuta física) pode ser palco de cumprimento de obrigação de forma diversa da originalmente contratada por diversas razões técnicas e inclusive intercorrências supervenientes. É justamente neste ponto que o conflito de interesse emerge, pois pelo lado da incorporadora/construtora a tese do adimplemento substancial lhe favorecerá para justificar que eventuais diferenças no objeto da prestação obrigacional não é suficiente para caracterizar o seu inadimplemento contratual. Se questões desta natureza forem levadas para a justiça comum, o tempo para concluir a prestação jurisdicional e se obter um julgamento definitivo pode demorar anos, enquanto na arbitragem tal impasse será abreviado consideravelmente.

Nos casos mais graves que levam à ruptura do contrato de permuta em ações de rescisão contratual, a demora para encerrar o processo judicial com o trânsito em julgado é pernicioso, pois até lá o bem imóvel em discussão não poderá ser comercializado com terceiros até que haja a sua respectiva liberação judicial para que este se torne disponível à venda ou permuta novamente.

A confidencialidade do procedimento arbitral é objeto de convenção entre as partes, o que geralmente é estabelecido, e neste sentido representa um benefício quando se trata de sociedades empresariais cuja proteção das informações que possivelmente são reveladas pelas provas produzidas no curso do processo pode gerar prejuízos de outra ordem, como na esfera reputacional, além da revelação de estratégias de mercado, práticas comerciais, divulgação de preço envolvido no negócio e a exteriorização do próprio contrato celebrado entre as partes.

O lado negativo a ser sopesado é o custo deste tipo de procedimento. A depender da câmara de arbitragem escolhida na cláusula compromissória, os encargos financeiros como as taxas da instituição e os honorários dos árbitros pode representar uma barreira para uma das partes buscar a solução de eventual controvérsia, por isso recomenda-se analisar previamente os custos da câmara de arbitragem indicada no contrato, até porque a sua convenção importará no efeito vinculativo o que impede a parte de ajuizar demanda na esfera estatal, justiça comum, afinal, como já dito, este será o método escolhido para solução do conflito depois de assinado o compromisso arbitral.

Uma via alternativa para a parte que tem seu direito violado e não possui recursos financeiros para arcar com as despesas inerentes de um procedimento de arbitragem é um sistema já utilizado no exterior conhecido como “THIRD PARTY FUNDING”, o que representa o financiamento por terceiro que não é parte no processo como uma instituição financeira que custeará as despesas em contrapartida de um benefício futuro, como o êxito da demanda. Porém, certamente questões relevantes como o dever de sigilo e a ausência de conflito de interesse do financiador com os árbitros deverão também ser observados.

Por fim, mais um elemento atrativo é a possibilidade de se obter medidas decisórias urgentes na arbitragem, assim como ocorre nas liminares judiciais, pois as partes podem se socorrer de medidas urgentes por meio do árbitro de emergência, cujo procedimento é célere com vistas a dar uma resposta imediata a uma tutela de urgência, cuja decisão será posteriormente referendada pelo árbitro nomeado para conduzir o procedimento regular de arbitragem. A previsão deste instituto está nos regimentos das Câmaras de Arbitragem o que inclusive também é matéria de opção pelas partes contratantes quando da convenção da cláusula de arbitragem.

“O árbitro de emergência, em regra, é designado pela própria instituição arbitral e tem jurisdição, exclusivamente, para o exame de medidas urgentes. Instituído o tribunal arbitral, exaure-se a jurisdição emergencial, que, por natureza, é provisória e precária. O painel nomeado poderá, então, confirmar, modificar ou mesmo revogar a tutela anteriormente deferida, tal e qual ocorre no caso de tutela de urgência antecedente deferida pelo Poder Judiciário, a teor do artigo 22-B da Lei de Arbitragem [2]. Significa dizer que as decisões do árbitro de emergência não são decisões finais, mas de natureza meramente provisória.”

Em conclusão, os institutos de resolução de conflito extrajudicial de caráter patrimonial são de extrema importância também no mercado imobiliário, o qual importou arranjos contratuais e institutos jurídicos de outras áreas do direito para viabilizar formas mais eficientes de resolução de controvérsias em prol do desenvolvimento econômico, além de trazer segurança jurídica para os empreendedores que passam a investir mais em empreendimentos imobiliários por compreenderem que há formas céleres de solução de conflito em comparação à Justiça Comum Estatal.

Remo Higashi Battaglia – Advogado com atuação na área do direito imobiliário, Sócio Fundador do escritório Battaglia & Pedrosa Advogados www.bpadvogados.com.br. Pós-graduado em Direito Tributário pela PUC e em Direito Societário pela FGV. Especialista em Gestão Estratégica de Projetos – INSPER/SP e Negociação (Program on Negotiation) – Harvard Law (Cambridge USA). Mestrando em Direito dos Negócios pela FGV LAW – Faculdade Getúlio Vargas. E-mail: remo@bpadvogados.com.br

quarta-feira, 28 de julho de 2021

A validade jurídica da 'cláusula de raio' na locação em shopping centers


As relações estabelecidas entre os shopping centers (locadores) e os lojistas (locatários) são regidas, basicamente, por três documentos, sendo esses o contrato de locação, a escritura declaratória de normas complementares ao contrato de locação e o estatuto da associação dos lojistas.

Frequentemente, os lojistas se deparam com a chamada "cláusula de raio" constante no contrato de locação ou na escritura declaratória de normas complementares ao contrato de locação. A validade da cláusula de raio, com recorrência, é discutida no Poder Judiciário. Essa discussão ganhou novamente repercussão neste ano, desde o julgamento do tema pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).

A cláusula de raio, também chamada de cláusula de exclusividade territorial, tem como objetivo principal impedir que os lojistas, que pretendam fixar seus espaços comerciais em shopping centers, se instalem em outro estabelecimento que explore o mesmo ramo de comércio, a uma certa distância daquele shopping center, geralmente em um raio de dois a cinco quilômetros.

A cláusula de raio, no entanto, é tida como abusiva por muitos lojistas que questionam sua validade.

A discussão em torno da cláusula de raio é travada sob duas óticas. A primeira, a ótica da validade e eficácia das cláusulas contratuais, levando em consideração os princípios da liberdade contratual, da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, que justificam, portanto, a sua validade. A segunda, sob a ótica de eventual limite ao exercício empresarial pelos lojistas, diante dos princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e das normas infraconstitucionais que reprimem o abuso de poder econômico, justificando, portanto, a sua invalidade.

Sob a ótica contratual, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar a validade da cláusula de raio constante na escritura declaratório de normas complementares ao contrato de locação de um shopping center de Porto Alegre, entendeu que "a cláusula de raio inserta em contratos de locação de espaço em shopping center ou normas gerais do empreendimento não é abusiva, pois o shopping center constitui uma estrutura comercial híbrida e peculiar e as diversas cláusulas extravagantes insertas nos ajustes locatícios servem para justificar e garantir o fim econômico do empreendimento". O STJ entendeu ainda que "o controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos de cunho empresarial é restrito, face a concretude do princípio da autonomia privada e, ainda, em decorrência da prevalência da livre iniciativa, do pacta sunt servanda, da função social da empresa e da livre concorrência do mercado" [1].

Sob a ótica concorrencial, no início deste ano o TRF-1 manteve condenação imposta pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ao um shopping de São Paulo, que decidiu que este não poderia impedir os lojistas de abrirem filiais em shopping centers concorrentes, mesmo que o contrato de locação vedasse tal ação expressamente, bem como o proibiu de exigir a cláusula de raio em seus contratos com os lojistas [2].

Para o Cade [3], a cláusula de raio, naquele caso, lesou os lojistas de shopping centers concorrentes, além dos interesses dos consumidores, que acabaram sendo privados de escolher o local mais conveniente para a realização de compras.

Certamente a recente decisão do TRF-1 corrobora com a construção jurisprudencial acerca do tema sob a ótica concorrencial e faz com que o lojista passe a ter amparo jurídico apto para questionar a validade da cláusula de raio.

Inclusive, diante da relevância dessa discussão, está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.513/2016, que pretende alterar a Lei nº 8.245/1991 (Lei do Inquilinato) e normatizar a cláusula de raio, devendo ser observadas algumas regras, cumulativamente: 1) no tocante ao objeto, deverá restringir-se a instalação de marca idêntica no mesmo shopping center; 2) no tocante à vigência, duração de, no máximo, cinco anos; e 3) no tocante à extensão, estipulação de um raio de no máximo três quilômetros.

Diante da inexistência de entendimento pacificado sobre o tema, a discussão acerca da validade da cláusula de raio deve obrigatoriamente passar pela apreciação das circunstâncias fáticas de cada caso concreto, sua abrangência para aquele caso e a racionalidade nos parâmetros de tempo, espaço e objeto estabelecidos nos documentos firmados.

Inclusive, como se pode verificar nos julgamentos da 4ª Turma do STJ, do TRF-1 e no processo administrativo no Cade anteriormente citados, há a menção de que a cláusula deve ser analisada conforme as particularidades de cada caso, não podendo a cláusula de raio ser reputada como abusiva de uma forma genérica.

Desse modo, é importante que, antes da celebração do contrato de locação, os contratantes negociem a cláusula de raio de acordo com as características específicas daquela relação jurídica, levando em consideração as circunstâncias econômico-financeiras e territoriais aplicáveis.
_____________

[1] Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma, REsp 1535727/RS, relator: Ministro Marco Buzzi, data de julgamento: 10/5/2016.

[2] Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Processo nº 0010504-07.2008.4.01.3400, data de julgamento: 28/1/2021.

[3] Processo Administrativo nº 08012.006636/1997-43

Maria Vitória Alves é advogada sênior da área Contratual e Imobiliária do escritório Finocchio & Ustra Advogados.
Ana Letícia Fagundes é trainee da área contratual do escritório Finocchio & Ustra advogados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico

A ATA NOTARIAL COMO MEIO DE PROVA NO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – POR SULLIVAN SCOTTI

 

INTRODUÇÃO

Objetiva-se avaliar a utilização da ata notarial como meio de prova em processos administrativos voltados à promoção da regularização fundiária de núcleos urbanos consolidados, a fim de que sejam incorporados ao ordenamento territorial municipal e os seus ocupantes sejam titulados.

Como condição para a titulação, o Poder Público Municipal, por ser, em regra, o responsável por conduzir o processo de regularização fundiária, precisa avaliar a prova documental produzida pelo titular da posse.

Não sendo incomum a existência de posse, exercida por ocupantes de unidades imobiliárias integrantes de núcleos urbanos consolidados, destituída de qualquer documento que a legitime ou, ainda, ancorada em frágil documentação, deixando dúvidas sobre a sua natureza e suas características. A fim de que em tais situações o ocupante da unidade imobiliária possa ser titulado, a avaliação do uso da ata notarial como meio de prova em processos de regularização fundiária se mostra relevante.

Para tanto, far-se-á uma breve incursão pelo atual cenário da regularização fundiária em nosso país.

De forma breve, discorrer-se-á sobre o processo de regularização fundiária.

Feito isso, serão conceituadas a legitimação fundiária e a legitimação de posse.

De forma derradeira, será avaliada a possibilidade da ata notarial ser utilizada como meio de prova no processo de regularização fundiária.

1. Da regularização fundiária

A regularização fundiária ganhou novos contornos e normatização específica com o advento da lei 13.465 de 2017.

Enfim, o direito social à moradia (art. 6° da CF/88) recebeu a devida atenção por parte do Poder Legislativo Federal, o qual não mediu esforços para resguardar tão relevante direito fundamental, atendendo assim ao principal fundamento constitucional: o da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III, da CF/88).

No Brasil, estima-se que mais de 50% de todas as unidades imobiliárias são irregulares. Vícios culturais, arraigados na própria essência do povo brasileiro, levaram à consolidação, em todo o território nacional, de núcleos urbanos, irregulares e clandestinos, em absoluto desrespeito a preceitos urbanísticos e ambientais, dos quais cidades planejadas não podem prescindir.

Atento a tal realidade, após sopesar as particularidades que permeiam a imbricada questão fundiária brasileira, ao publicar e tornar vigente a lei 13.465/2017, o legislador federal deu o passo mais importante e audacioso rumo à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.

No que pese a questionável forma como adentrou no ordenamento jurídico nacional, visto ter suas raízes na Medida Provisória 759 de 2016 e mesmo tendo sua constitucionalidade contestada perante o Supremo Tribunal Federal, via controle de constitucionalidade direto (ADIn de 5883), a lei 13.465/17 é uma realidade.

Passados mais de três anos da entrada em vigor da lei 13.465/17, cabe aos municípios implementarem por meio de processos de regularização fundiária, a serem instaurados, de ofício ou a requerimento dos legitimados, a regularização fundiária e, assim, a incorporação dos núcleos urbanos informais consolidados ao território nacional.

Os municípios foram elevados à condição de protagonistas da regularização fundiária, como não poderia deixar de ser, pois há muito tempo já figuram como responsáveis por gerir todo o seu espaço territorial (art. 30, inciso VIII, da CF/88).

As políticas públicas voltadas à regularização fundiária devem ser pautadas em princípios de sustentabilidade econômica, social e ambiental e ordenação territorial, buscando a ocupação do solo de maneira eficiente e funcional.

Para que isso se tornasse possível, a lei 13.465/2107 concebeu novos institutos jurídicos e deu um colorido diferente a outros tantos - já existentes -, para que seus audaciosos objetivos, previstos em seu art. 10, possam ser alcançados.i

A lei traz um marco temporal para a regularização fundiária, estabelecendo que a legitimação fundiária, principal instituto jurídico de titulação dos ocupantes dos núcleos urbanos, só pode ser aplicada àqueles consolidados antes de 22 de dezembro de 2016 (art. 9°, 2°, da lei 13.465/2017).

Uma interpretação sistemática da lei de Regularização Fundiária Urbana como um todo deixa evidente o recado dado pelo legislador federal aos municípios da nossa nação: regularizar é a palavra de ordem.

O próprio Ministério Público, por meio de suas procuradorias e promotorias, tem buscado, em alguns casos, enquanto curador do direito difuso a um meio ambiente urbano sadio e equilibrado, por meio de ações civis públicas, compelir os municípios a promoverem à regularização fundiária. ii

2. Do processo de regularização fundiária

O caminho a ser trilhado para que a regularização fundiária ocorra exige a instauração de um processo administrativo de regularização fundiária, o qual foi concebido e sistematizado pela lei 13.465/2017, que, por sua vez, foi regulamentada pelo Poder Executivo Federal, por meio do decreto 9.310/18.

O devido processo legal é uma das maiores e mais significativas garantias fundamentais do cidadão brasileiro (art. 5°, LIV, da CF/88), sendo que o Estado e também os particulares não podem exercer qualquer tipo de ingerência sobre direitos e interesses alheios, sem que exista um "devido processo legal".

Como se está a tratar de um processo de regularização fundiária, de natureza administrativa, necessário em razão de tão significativa garantia constitucional, sujeito também se encontra esse procedimento a todos os princípios processuais, derivados do princípio do devido processo legal.

A própria origem etimológica da palavra processo, que advém da expressão latina procedere, a qual significa método, deixa às claras o propósito de todo e qualquer processo: a concepção de um método para a consecução de um fim.

A lei 13.465/2017, ao sistematizar e normatizar mais uma espécie de processo administrativo, concebeu um método - com um objetivo claro: a incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e a titulação de seus ocupantes.

O processo concebido pelo legislador federal, por meio da lei 13.465/17, não é autossuficiente e, de forma supletiva, outras leis existentes em nosso ordenamento jurídico, capazes de suprir suas lacunas devem complementá-lo. Eis aí um dos papéis mais relevantes de um operador jurídico: compreender e bem interpretá-lo a fim de que o bem comum e os fins sociais sejam alcançados, quando da aplicação da lei (art. 5° do Decreto-lei de 4.657/1942.).iii

Nesse passo, não tendo o legislador federal, tratado dos meios de prova, que podem ser utilizados para a comprovação da posse, quando da titulação dos ocupantes dos núcleos urbanos informais, sem maiores esforços, conclui-se que todos os meios de prova, lícitos e legítimos, típicos ou atípicos, podem ser utilizados, no contexto do processo de regularização fundiária, desde que com ele sejam compatíveis (art. 5°, LVI, da CF/88). A todos, seja no processo administrativo ou judicial, são assegurados o contraditório e a ampla defesa (art. 5°, LV, da CF/88), com todos os meios inerentes à comprovação dos fatos, que sustentam suas pretensões. Ademais, a todos são assegurados os meios de prova, lícitos e legítimos, como consequência lógica da ampla defesa, como princípio norteador de todo processo.

A ata notarial tem se mostrado, enquanto documento público, dotado de fé pública, um relevantíssimo instrumento de comprovação da forma e modo como os fatos ocorreram.

Nessa linha de raciocínio, tendo-se por base o já experimentado e aprovado uso da ata notarial em processos administrativos de usucapião extrajudicial, não há como desconsiderá-la como meio de prova no contexto da regularização fundiária, dada a própria similitude entre a usucapião e a legitimação fundiária, ambas modalidades de aquisição originária da propriedade.

Dando continuidade, antes que se adentre nas particularidades inerentes ao uso da ata notarial no processo de regularização fundiária, importante se mostra a abordagem da legitimação fundiária, eis que a aplicação de tal instituto, forma de aquisição originária da propriedade, exige um acurado exame da legitimidade e características da posse exercida pelo ocupante da unidade imobiliária.

Não há como não destacar a imensa responsabilidade, que ora recai sobre os ombros do Poder Público Municipal e de seus servidores, encarregados da regularização fundiária, quando da análise da documentação comprobatória da posse. Artimanhas, engodos e fraudes, objetivando a obtenção de um imóvel titulado, na "terra brasilis", não serão obra do acaso. Olhos atentos precisam ter os atores da regularização fundiária, para que apenas os legítimos possuidores sejam titulados.

Logo, não tendo sido idealizada uma fase instrutória no processo de regularização fundiária, que permita a produção de prova oral para fins de comprovação da posse, deve um bom operador jurídico orientar os encarregados de conduzir o procedimento de regularização a utilizar a prova documental em sentido amplo, aí compreendida a ata notarial.

3. Da legitimação fundiária e da legitimação de posse

Dentre os instrumentos da regularização fundiária previstos na lei 13.465/17, ganham destaque: a legitimação fundiária e a legitimação de posse.

A legitimação fundiária foi definida no art. 23 da lei 13.465/17. Trata-se de instituto jurídico novo, uma forma de aquisição originária da propriedade, a ser reconhecida pelo poder público nos processos de regularização fundiária, capaz inclusive de incidir sobre bens públicos o que é vedado constitucionalmente em casos de usucapião (art. 187 da CF/88).

Para tanto, basta que o ocupante de uma unidade imobiliária, integrante de um núcleo urbano informal, preexistente a 22 de dezembro de 2016, comprove exercer a posse do bem imóvel a ser regularizado.

Como não poderia ser diferente, implicando a aquisição originária da propriedade, a legitimação fundiária, em qualquer uma das modalidades da Reurb - Social ou Específica - permite que o ocupante adquira a unidade imobiliária livre e desembaraçada de qualquer ônus, direito real, gravame ou inscrição eventualmente existente em sua matrícula de origem, exceto quando disser respeito ao próprio legitimado (art. 23, §2º, da lei 13.465/17).

Ressalta-se, mais uma vez, a importância de serem bem avaliadas a natureza e a característica da posse, visto ser o resultado do uso da legitimação fundiária a aquisição da propriedade, que também é um direito fundamental e deve cumprir com sua função social (art. 5°, incisos XXII e XXIII, da CF/88).

A legitimação de posse, ainda que relevante, atua como coadjuvante na regularização fundiária, pois por não implicar a aquisição da propriedade, será utilizada naquelas situações em que houver dúvida acerca da posse e sua legitimidade.

A legitimação de posse, por sua vez, encontra-se prevista no art. 25 da lei 13.465/17 e consiste em instrumento de uso exclusivo para fins de regularização fundiária, constitui ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse, o qual é conversível em direito real de propriedade.

4. Da ata notarial como meio de prova em processos de regularização fundiária:

A doutrina tem conceituado a ata notarial como: o testemunho oficial de fatos narrados pelo notário no exercício de sua competência em razão de seu ofício

O Código de Processo Civil, em seu art. 384, assim dispõe: "a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião".

A ata notarial tem natureza jurídica de documento público e, consequentemente, é dotada de fé pública, gozando assim de presunção de veracidade.

Parâmetros seguros sobre o uso da ata notarial como meio de prova da posse podem ser extraídos do Provimento 65 de 2017 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que assim estabelece:

Art. 5º A ata notarial mencionada no art. 4º deste provimento será lavrada pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele, a quem caberá alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa no referido instrumento configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.

§ 1º O tabelião de notas poderá comparecer pessoalmente ao imóvel usucapiendo para realizar diligências necessárias à lavratura da ata notarial.

§ 2º Podem constar da ata notarial imagens, documentos, sons gravados em arquivos eletrônicos, além do depoimento de testemunhas, não podendo basear-se apenas em declarações do requerente.

§ 3º Finalizada a lavratura da ata notarial, o tabelião deve cientificar o requerente e consignar no ato que a ata notarial não tem valor como confirmação ou estabelecimento de propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial de usucapião para processamento perante o registrador de imóveis.
Segundo lição de Humberto Theodoro Júnior, a ata notarial implica na presunção de veracidade do fato narrado:

Em razão dessa presunção de veracidade, diz-se que a ata faz prova plena do fato nela narrado. Independentemente de corroboração por outras provas, o instrumento constitui elemento bastante dos fatos nela declarados como aferidos diretamente pelo oficial público que a lavrou. Todavia, a presunção é juris tantum, ou seja, admite prova em contrário. Vale dizer, reconhecer a veracidade do fato atestado na ata notarial não enseja a automática procedência ou improcedência do pedido. O juiz deverá cotejar a ata com as outras provas existentes nos autos para formar o seu convencimento a respeito do litígio. E, caso o material probatório abale a fé da ata, a sua veracidade poderá ser afastada.
Nesse passo, o tabelião no exercício de sua função pública, enquanto delegatário de um serviço público, pode, em ata notarial, atestar a existência, o tempo e o modo como aconteceram fatos relevantes, passíveis de serem objeto de prova.

Assim, havendo requerimento por parte do interessado, o tabelião pode diligenciar no sentido de verificar a existência da posse, visto se tratar a posse de direito com características especiais, que precisa existir enquanto fato jurídico.

Portanto, não sendo incomum a existência de posse exercida por ocupantes de unidades imobiliárias, destituída de qualquer documento que a legitime ou, ainda, embasada em documentação precária, que deixe dúvidas sobre a sua natureza e características.

A ata notarial, indiscutivelmente, é meio de prova eficaz e deve ser utilizada nos processos de regularização fundiária.

Por meio dela, o interessado poderá produzir prova robusta da posse, ensejando a produção de documento público, a qual dará segurança aos responsáveis pela condução do processo de regularização fundiária. Estes estarão aptos a reconhecer a aquisição originária da propriedade, por meio da legitimação fundiária, afastando a incidência da mera legitimação de posse.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após abordar o atual cenário da regularização fundiária em nosso país, discorrer sobre o processo, conceituar a legitimação fundiária e a legitimação de posse.

O presente estudo avaliou a possibilidade de a ata notarial ser utilizada como meio de prova no processo de regularização fundiária e as considerações finais apontam dito meio de prova como sendo um importante e relevante ferramenta para a comprovação da posse exercida por ocupantes de núcleos urbanos informais consolidados. Em especial, quando a posse exercida for destituída de qualquer documento que a legitime ou, ainda, estiver embasada em documentação precária, que deixe dúvidas sobre a sua natureza e características.

Sendo a ata notarial um documento público, dotado de fé pública, que goza de presunção de veracidade, certa é sua perfeita adequação à prova da posse enquanto fato jurídico a ser provado no seio do processo de regularização fundiária.
-----------------------------------------------------

i Art. 10. Constituem objetivos da Reurb, a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios:

1 - identificar os núcleos urbanos informais que devam ser regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar as condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior;

2 - criar unidades imobiliárias compatíveis com o ordenamento territorial urbano e constituir sobre elas direitos reais em favor dos seus ocupantes;

3 - ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados;

4 - promover a integração social e a geração de emprego e renda;

5 - estimular a resolução extrajudicial de conflitos, em reforço à consensualidade e à cooperação entre Estado e sociedade;

6 - garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas;

7 - garantir a efetivação da função social da propriedade;

8 - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes;

9 - concretizar o princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo;

10 - prevenir e desestimular a formação de novos núcleos urbanos informais;

11 - conceder direitos reais, preferencialmente em nome da mulher;

12 - franquear participação dos interessados nas etapas do processo de regularização fundiária;

ii APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL. MINISTÉRIO PÚBLICO OBJETIVANDO COMPELIR O MUNICÍPIO DE SÃO FRANCISCO DO SUL A REGULARIZAR LOTEAMENTO SITUADO NO BAIRRO MAJORCA. PRECEDENTE ANÁLOGO JULGADO POR NOSSA CORTE, ENVOLVENDO AS MESMAS PARTES, E QUE EQUALIZOU AS DETERMINAÇÕES INSTITUCIONAIS PARA EVITAR DEMASIADA INTROMISSÃO NO EXECUTIVO. APLICAÇÃO DO ART. 926 DO CPC. READEQUAÇÃO, ENTÃO, DOS COMANDOS MANDAMENTAIS, IMPONDO-SE À MUNICIPALIDADE (1) A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA, POR ENQUANTO, APENAS PARA A POPULAÇÃO PREDOMINANTEMENTE DE BAIXA RENDA; (2) MANTER A RESPONSABILIDADE DO EXECUTIVO FRENTE À QUESTÃO AMBIENTAL; (3) EXONERAR O ERÁRIO DA IMPLEMENTAÇÃO DA DRENAGEM PLUVIAL, BEM COMO DO (4) TRATAMENTO DO DESPEJO DE ESGOTO SANITÁRIO (DESDE QUE AMBOS JÁ NÃO ESTEJAM EM CURSO PELA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO); (5) REFERENDAR A ORDEM PARA FORNECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL, (6) DA DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA, (7) DE LIMPEZA URBANA, (8) E DA COLETA E MANEJO DE RESÍDUOS SÓLIDOS, DESDE QUE TAIS SERVIÇOS NÃO CONFRONTEM COM OUTRAS NORMAS OU AÇÕES JUDICIAIS QUE DEPENDAM DA PRÉVIA REGULARIZAÇÃO DAS GLEBAS; (9) CONSOLIDAR A ORDEM PARA COIBIR NOVAS EDIFICAÇÕES IRREGULARES E (10) DEMOLIR OBRAS INVIÁVEIS DE CONVALIDAÇÃO ADMINISTRATIVA/JUDICIAL, TUDO, EVIDENTEMENTE, SEM PREJUÍZO DAS PRÓPRIAS ATIVIDADES INATAS À ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. [...] Em caso análogo, envolvendo o Município de Criciúma, houve rejeição da pretensão ministerial para "implantação da rede de tratamento de esgoto sanitário e de regularização do poder de polícia e da vigilância sanitária [...]", frente a flagrante "interferência do judiciário nas políticas públicas, já que consubstanciada em ação de grande investimento financeiro [...]" (TJSC, Apelação Cível n. 0017308-34.2009. 8.24.0020, de Criciúma, rel. Des. Paulo Henrique Moritz Martins da Silva, j. 21/03/2017). [...] Ainda sobre o tópico da regularização fundiária, alguns imóveis possivelmente estão providos de título dominial, enquanto outros deverão ter a escrituração providenciada - se possível -, pelos próprios interessados, caso tenham condições. Essa distinção é feita pela própria lei do REURB, quando traça dicotomia dos casos "Reurb de Interesse Social (Reurb-S)", predominantemente para população de baixa renda, ou "Reurb de Interesse Específico (Reurb-E)". Ou seja, a obrigação que sobeja pertinente, condiz em abarcar os menos favorecidos. Mas as portas não estão fechadas para que administrados e administradores comunguem esforços na implementação do Projeto Lar Legal, por exemplo. [...](TJSC, Apelação Cível n. 0003870-46.2008.8.24.0061, de São Francisco do Sul, rel. Luiz Fernando Boller, Primeira Câmara de Direito Público, j. 11-09-2018).

(TJSC, Apelação n. 0004092-14.2008.8.24.0061, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Cid Goulart, Segunda Câmara de Direito Público, j. 18-05-2021).

iii Art. 5° Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

iv A fé pública é definida como "a veracidade presumida das afirmações de Oficiais de Justiça, de Escrivães e Notários. A fé pública é o princípio legal, mas é presunção tantum" (MOREIRA, Alberto Camiña. Ata notarial. In: OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; LOPES, Ricardo Augusto de Castro (coords.). A prova no direito processual civil: estudos em homenagem ao professor João Batista Lopes. São Paulo: Verbatim, 2013, p. 16).

v THEODORO Júnior, Humberto. Curso de direito processual civil, volume 1. 62. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 823.

Fonte: Migalhas

Os impactos econômicos da Súmula 308 do STJ


A Súmula 308 foi editada em março de 2005 com a seguinte redação: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior a celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imovel".

Neste sucinto enunciado o STJ deixou expresso seu posicionamento quanto à ineficácia da hipoteca firmada entre incorporadoras e agentes financeiros em duas situações de aquisição em sede de incorporação imobiliária: (i) caso uma pessoa adquira um imóvel e este seja posteriormente hipotecado ao banco, ou (ii) quando uma pessoa adquire o imóvel já hipotecado ao banco.

Em que pesem as críticas passíveis de serem tecidas quanto a utilização em demasia do "poder de síntese" na edição do verbete sumular, que deixou de imprimir importante delimitação acerca da real finalidade almejada pelo STJ de tutelar tão somente pessoas físicas que adquirem o imóvel para fins de moradia (no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação - não sendo aplicável a imóveis de natureza ou destinação comercial 1), o presente artigo se presta a identificar como a própria jurisprudência, que vem sendo construída há mais de 16 anos, impacta no crédito imobiliário e onera o consumidor que se pretendeu tutelar.

Comecemos pelo início. O mercado imobiliário brasileiro movimenta elevada monta de dinheiro, sendo um dos principais fatores o alto custo para construção decorrente do funcionamento a longo prazo do setor, dos gastos com materiais e mão de obra, e da necessidade de cumprimento de legislações urbanísticas, que variam de cidade para cidade e impõem inúmeros requisitos ao construtor 2.

É esse alto custo de execução que aproxima o mercado imobiliário do mercado de crédito, fazendo com que as incorporadoras contratem o "Plano Empresário", que nada mais é do que o financiamento destinado à construção, sendo este um produto bancário obrigatório nas "prateleiras" das instituições financeiras, conforme Resolução 4.676/2018 do Banco Central.

Como o valor do financiamento Plano Empresário é elevado, seu risco-retorno também é expressivo, motivando a exigência de garantias compatíveis, sendo uma delas, a hipoteca do terreno e de todas as unidades que lá serão construídas.

Num fluxo padrão de crédito, a liberação da hipoteca concedida em favor do agente financiador ocorre em etapas: primeiro, a incorporadora deve prestar informações de comercialização das unidades ao agente financiador para que este, então, lhe informe sobre o valor mínimo de desligamento da garantia (VMD).

Com o pagamento do VMD pela incorporadora, esta assegura ao adquirente a entrega da unidade livre e desembaraçada de ônus, conforme prometido no contrato de compra e venda, uma vez que o agente financiador amortizará o financiamento tomado e concordará com a liberação da hipoteca.

Contudo, a aplicação desmedida da Súmula 308 do STJ, sem a visão integrada com os impactos no mercado de crédito, tem prejudicado esta dinâmica, sobretudo na hipótese de aquisição do imóvel já hipotecado ao banco, pois, ao retirar a eficácia erga omnes do gravame (e, atualmente, também da alienação fiduciária 3), os tribunais têm desconstituído a garantia real que a princípio havia sido licitamente pactuada.

Justamente este esvaziamento da garantia hipotecária tem ensejado prática inesperada por parte de muitas incorporadoras, que se valem do enunciado sumular a seu favor e de má-fé para inadimplir com suas obrigações.

Explico. É comum os agentes financiadores deste setor, crendo na boa-fé contratual das financiadas, acabarem se vendo num cenário em que são obrigados a liberar suas garantias sem mesmo terem recebido os recursos correspondentes.

Isto acontece, pois, grande parte das vezes, as incorporadoras que agem de má-fé, se valem da aplicação da Súmula 308 a seu favor e deixam de fornecer as informações sobre a comercialização das unidades, descumprindo uma de suas obrigações contratuais e impossibilitando a cobrança do Valor Mínimo de Desligamento ou dos recebíveis pelo banco.

Ou seja, utilizam-se da Súmula para uma prática injusta e imoral de desvio de valores. Pois é claro: se no fim do dia o banco será obrigado a liberar a hipoteca em favor do adquirente mesmo se não houver o pagamento do respectivo VMD, por qual motivo a incorporadora que age de má-fé irá informar sobre a comercialização da unidade, sobre a entrada de recursos em caixa? E como a instituição financeira cobrará um crédito sem ter ciência sobre a realização da venda da unidade já que não participa do contrato consumerista de compra e venda e a responsável pelo repasse de informações se omite?

Os prejuízos decorrentes da Súmula 308 não param por aí, eles alcançam tanto o agente financiador, quanto ao próprio adquirente que se buscou tutelar. Por vias reflexas, ela permite que a incorporadora descumpra com o próprio contrato de compra e venda e não entregue a unidade livre e desembaraçada de ônus como prometido, e ainda legitima a falta de transparência junto ao consumidor, já que não exige que a vendedora dê ciência ao adquirente sobre o que é a hipoteca (ou alienação fiduciária) e tampouco sobre o fluxo de liberação do gravame, convalidando, portanto, com a violação do artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor.

Na visão da Teoria das Falhas de Mercado e Análise Econômica do Direito, quando há uma assimetria de informações em uma relação jurídica, é natural que a parte com menor incentivos e que não possui meios de verificá-los ou obtê-los de forma concreta eleve seu preço para se blindar do denominado "risco moral" ou "moral hazard".

E é exatamente isso o que se observa com os efeitos inesperados da Súmula 308. Pela perspectiva do agente financiador, este se vê sem uma garantia real que acreditava ser idônea e com um risco de crédito majorado. Recebendo, geralmente, a informação sobre a comercialização da unidade pelo próprio adquirente que já quitou a unidade e não pela incorporadora responsável.

Consequentemente, esta imposição da liberação da garantia sem o recebimento da respectiva contrapartida impacta na taxa de inadimplência de companhias junto às instituições financeiras e, por lógica, reflete no aumento geral do risco de crédito e no valor dos juros remuneratórios cobrados pela prestação do serviço bancário, o que, por sua vez, agregará como fator de encarecimento da execução da obra e da oferta que chegará ao adquirente, onerando-o ainda mais e contribuindo para um dos problemas mais latentes do Brasil: a distância entre a população de mais baixa renda e a moradia digna.

Logo, o adquirente é lesado por não ter a transparência devida pela Incorporadora; por receber a unidade imobiliária com o gravame hipotecário, que lhe impede de transferir a propriedade para seu nome, se vendo obrigado, em muitos casos, a contratar um advogado para resolver o impasse ocasionado pela incorporadora. E ainda por ter que suportar preços de ofertas mais elevados.

Nessa linha de raciocínio, é pertinente embasar o explicado acima com o estudo feito por Marcel Balassiano e Vitor Vidal 4 segundo o qual as operações com garantias idôneas comportam um spread bancário de aproximadamente 13,1 p.p. menores do que aquelas sem garantia. Fato este relevante, já que o spread bancário brasileiro é o segundo maior do mundo, em decorrência das altas taxas de inadimplência e baixos índices de recuperação do crédito.

(Imagem: Divulgação)

Dessa forma, notório que a Súmula 308, ao impactar no crédito imobiliário, mascara uma falha do mercado e, ao invés de tutelar o adquirente, no fim das contas, onera-o. Assim como onera os agentes financiadores do setor.

O caminho para a devida proteção do adquirente-consumidor é certamente mais complexo do que aquilo que se pretendeu com a súmula, demandando um nível maior e mais justo de responsabilização dos players corretos, visando fomentar a transparência da incorporadora junto ao adquirente e a disseminação da educação imobiliária no país. Até mesmo porque, de 2005 (ano de edição da súmula) para 2021, com o avanço da tecnologia, é inegável que o acesso à informação se tornou mais fácil e o perfil do consumidor já não pode mais ser considerado o mesmo e tão fragilizado quanto antes.

Outrossim, em virtude dos desequilíbrios promovidos pela aplicação da Súmula 308 do STJ e seu descompasso com a efetiva proteção do consumidor somado a seus efeitos negativos no mercado de crédito, conclui-se pela necessidade de superá-la. Com esperança de que haja o reforço na responsabilização das incorporadoras que agem de má-fé; a implementação de medidas que ataquem as falhas do mercado imobiliário e assegurem um efetivo arcabouço jurídico para recuperação do crédito aliado à segurança e idoneidade das garantias ofertadas licitamente, culminando, em via transversa, na redução do spread bancário brasileiro e do preço da oferta que chega ao consumidor.
---------

1 Vide jurisprudências do STJ: AREsp 1860436; REsp 1894561; AREsp 1758380.

2 ACOSTA, Claudia. O PROGRAMA FEDERAL BRASILEIRO "MINHA CASA, MINHA VIDA" É UM REGULADOR-SOMBRA AS NORMAS URBANÍSTICAS MUNICIPAIS?. Dissertação de Mestrado - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2015. Pág. 01 a 40. Disponível aqui. Acessado em: 10 de abril de 2021.

3 Vide: REsp 1576164, Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Rel. Ministra Nancy Andrighi, Julg. 23/05/2019.

4 BALASSIANO, Marcel. VIDAL, Vitor. A parcimônia com o mercado de crédito. Blog do IBRE, 2019. Disponível aqui. Acessado em 30/05/2021.

Atualizado em: 27/7/2021 13:50

Andressa Tioma Nakayama - Advogada de Contencioso Cível e Imobiliário na Itaú Unibanco S.A. Graduada em Direito pela PUC-SP e Pós-Graduanda em Direito Imobiliário pela FGV-SP
Fonte: Migalhas de Peso