sexta-feira, 30 de abril de 2021

Alta do IGP-M pressiona o mercado imobiliário


De acordo com dados divulgados nesta quinta-feira (29/04), pela Fundação Getúlio Vargas, o Índice Geral de Preços Mercado (IGP-M) de abril de 2021 teve alta de 1,51%. O que representa uma desaceleração em relação aos 2,94% apontados no mês anterior. Mesmo assim, com esse resultado, a inflação que corrige os contratos de aluguéis atingiu 32% nos 12 meses terminados em abril. Esse, portanto, é o índice que corrigirá os contratos com vencimento em maio. A título de comparação, em abril de 2020, o índice havia subido 0,80% e acumulava alta de 6,68% em 12 meses.

Historicamente, o IGP-M tem sido o índice dos contratos de locação. A imensa maioria dos contratos de locação em vigência são indexados pelo IGP-M. Gustavo Favaron, CEO do GRI Club, especialista em mercado imobiliário, comenta que com a alta do IGP-M constatada nos últimos 12 meses, fez com que por um lado muitos proprietários tenham tentado não repassar na integralidade esse reajuste. “Tendo em vista o caos que a pandemia trouxe para tantas empresas bem como indivíduos, por outro lado, esses proprietários muitas vezes possuem obrigações financeiras junto a bancos e outros, e por isso, em algumas situações tem mais dificuldade de não repassar os reajustes integrais”, comenta.

O CEO nota que uma boa parte dos proprietários tem aceitado negociar o reajuste por conta do cenário atual. “Estimo que pelo menos 50% dos aluguéis sofreram algum tipo de negociação na hora da aplicação da correção com base no IGP-M. Um elemento que pouco se discute e que apesar dos desafios relacionados ao aluguel, sinto que a demanda por imóveis residenciais a serem locados irá aumentar nos próximos 12 meses. O INCC acumulado dos últimos 12 meses é de 12,22%, ou seja, no que diz respeito ao mercado imobiliário em específico os custos estão elevadíssimos”, nota.

Para Favaron, o preço dos terrenos para construções também tem sido reajustados consideravelmente. “Naturalmente, não existe possibilidade das construtoras e incorporadoras absorverem a totalidade desse aumento sem repassar ao menos boa parte ao valor final do imóvel. Agora, se você somar a esse cenário o fato de que o poder de compra do consumidor está estagnado ou até comprimido, e pensar num futuro próximo de aumento da SELIC, vejo um momento desafiador para a compra de imóveis, pois o juros do financiamento imobiliário irá refletir a subida da SELIC. Com isso, teremos um consumidor com poder de compra comprimido e uma parcela do financiamento mais alta (subida de juros)”, entende.

Segundo o especialista, o Brasil tende a repetir o que aconteceu em outros mercados do mundo. “As pessoas ao invés de comprar vão aceitar que precisarão alugar imóveis. Com isso, o tema do IGP-M como fator de reajuste vai ser cada vez mais debatido, pois estará na mesa de jantar das casas de muitos brasileiros daqui para frente”, afirma.

Indicador alto

Juliana Meyer Gottardi, sócia do escritório PNST especialista em contratos empresariais, explica que o que compõe o IGP-M são 3 indicadores com pesos diferentes. “IPAM: Índice de Preços Atacados de Mercado: 60% na composição, IPC-M: Índice de Preços ao Consumidor de Mercado: 30% na composição e o INCC: Índice Nacional de Custo de Construção: 10% na composição”.

Segundo Juliana, o IPAM foi puxado muito pela alta das commodities, muito sensíveis pela variação cambial, tanto das hard commodities dos metais, como das soft, por exemplo o trigo, soja e arroz. “Com a alta do dólar, por conta da pandemia, a exportação está muito mais vantajosa para os produtores brasileiros do que para vender no mercado local. Assim, a demanda local, que aumentou também por conta da pandemia, é contrária à oferta local, que está menor. Logo, o valor das comidas está mais caro nos mercados também”, afirma.

De acordo com Meyer, outro fator que influencia na alta do IGP-M é a alta quantidade de construções nos últimos meses, seja construção ou reforma. “As pessoas estão passando mais tempo dentro das casas, como novos empreendimentos visando a pulverização dos investimentos. Já que o juros não estão remunerando de forma atrativa com a Selic em 2%, então quem está querendo investir está buscando novas formas, e a aquisição imobiliária acaba sendo uma ótima oportunidade, pois muitas pessoas também estão precisando vender. Embora os preços pudessem estar mais baixos, ainda há muita oportunidade, principalmente para quem quer investir em imóvel com moeda estrangeira forte, como dólar e euro”, informa.

Para a especialista em contratos empresariais, vale lembrar que o IGP-M não foi criado com objetivo de parametrizar contrato de aluguel, e sim criado para dar uma visão geral sobre o ambiente econômico baseado nos setores com maior peso no PIB. “Por isso ele considera o aspecto do produtor, da família e da construção civil. Ele se refere, hoje, muito ao reajuste de aluguéis pois um dos componentes dele trata do mercado imobiliário e de praxe ele virou o índice mais usado para isso. Vale isso para contrato de salas virtuais, de 500 reais por exemplo, uma casa residencial, e contratos empresariais, como uma grande planta fabril por exemplo”, esclarece.

Dicas de negociações para Proprietário e Locatário

O escritório de Juliana, atende diversos grupos europeus que atuam no Brasil, participou de diversas negociações. “Posso assim dizer com assertividade, que a ampla maioria foi exitosa, não só pelo bom senso, mas também pela necessidade. A maioria das negociações teve o índice de reajuste alterado para o IPCA ou INPC. O acumulado de 12 meses do IGP-M, que saiu hoje inclusive, apesar de ter desacelerado em abril, acumulou alta de 32%, o que é muito alto. O INPC teve acumulado de 6,94% e o IPCA com 6,10%, ambos divulgados pelo IBGE”, explica.

De acordo com Gottardi, para locatários, o melhor é primeiro contatar o proprietário. “É importante que ambos tenham ciência do que está acontecendo. A conversa pode ser o meio para um ajuste. O que acontece bastante é quando a imobiliária não passa o pedido do locatário para o locador, e isso acaba nem chegando a ele, então busque tratar diretamente com o proprietário ou quem faz as decisões. Também é importante observar oportunidades similares no seu bairro, imóveis parecidos para entender se você está pagando um valor a mais. Isso pode ajudar na hora da negociação”, explica.

“Dê uma olhada no seu contrato no que diz respeito à multa de rescisão antecipada. A multa padrão é de 3 aluguéis proporcionais ao tempo que você está no imóvel. Por exemplo: se você tem um contrato de cinco anos e quer sair no meio deste período, a multa será de três aluguéis, proporcional ao tempo que você ficou. Saiba então a penalidade que o seu contrato se sujeita para ajudar em negociações futuras”, continua.

Para o locador, a especialista indica que considere o histórico do inquilino, não só em questão de pagamento em dia, mas se ele possui zelo pelo imóvel e se ele não incomoda a vizinhança. “Em caso de proprietários de imóveis comerciais, com raras exceções como o do home office que veio para ficar, há muita oferta e a flexibilidade do locador comercial deverá ser bem maior do que o do residencial. A negociação, por fim, é a melhor das opções, a mais razoável e a mais justa. Lembrando sempre, para ambas as partes, que é importante fazer um novo contrato, deixando em escrito o novo acordo, para que haja consciência de ambos os lados, e não dar margem para discussões futuras. E vale já mudar o índice de reajuste tal como para evitar o mesmo problema em 12 meses”, indica.

Por dentro do cenário imobiliário

Jobson Costa, 42 anos, é educador físico e reside na cidade de Valparaíso de Goiás (GO). Para ele, que possui seu próprio imóvel e disponibiliza para alugar, observa que realizar um ajuste de preços é bastante complicado, ainda mais em meio ao cenário como o da Covid-19. “É bastante difícil realizar um ajuste, ainda mais devido ao desemprego das pessoas e a pandemia. São também vários outros fatores, se eu subo um pouco mais o valor, os inquilinos não querem alugar”, cita.

Mesmo em meio às dificuldades impostas pela pandemia, Jobson ainda tenta se mostrar confiante sobre o cenário imobiliário. “O cenário atual está melhorando, observo que tem várias pessoas procurando aluguel, devido já morar nessa situação em outras regiões e apenas desejam mudar de local ou também morarem em casas de aluguel e que o valor é mais alto. Nesse caso, eu possuo um apartamento e noto que eles procuram por que a oferta é mais em conta, também pela proteção e segurança”, explica.

Para o corretor de imóveis, Néfi Rossi, 28 anos e que reside na cidade de Santa Maria (DF), o aquecimento do mercado imobiliário e a alta demanda de procura de imóveis são fatores de destaque e que foram importantes para alavancar as altas taxas do setor. Além disso, ele conta que as negociações atuais são feitas através das lojas imobiliárias. “A maioria das negociações são feitas por um intermediário, porque acredito que uma grande parte das pessoas que procuram um imovel, elas tem um maior acervo através da loja, que auxilia o dono do imovel a filtrar melhor os inquilinos e também para que eles não possam ter nenhum tipo de problemas maiores e evitar dores de cabeça, tanto para um quanto para o outro”, alerta.

Para Rossi, que também cita que uma das principais dificuldades que as pessoas relatam ao alugar imóveis ou comprar são os altos valores, embora a demanda não tenha esfriado diante do mercado. “O mercado de compra e venda de imóveis não esfriou, pelo contrário, continua quente. As pessoas relatam dificuldades nas questões das entradas, no valor dos aluguéis (para quem está alugando), também relatam dificuldades em relação às burocracias e os fiadores, entre outras. Eu enxergo isso como precauções para que o dono do outro imovel não não se prejudique com o inquilino, que por exemplo, não consiga fazer a parte dele no contrato ou acordo”, conclui.

Fonte: CORREIO BRAZILIENSE

Condomínio edilício de graus sucessivos e outras questões práticas


1. Introdução

Este artigo dedica-se a discutir questões práticas envolvendo o condomínio edilício de graus sucessivos e a formatação jurídica de outras espécies de condomínios edilícios que envolvem várias torres.

2. Definição de condomínio edilício

O condomínio edilício é disciplinado nos arts. 1.331 ao 1.358 do Código Civil - CC e também nos arts. 1º ao 27 da lei 4.591/64. O entendimento majoritário é o de que o CC não revogou esses dispositivos da lei 4.591/64, salvo naquilo em que houver frontal divergência. As duas normas seguem em vigor, mas, no caso de eventual conflito entre elas, deve-se valer-se da técnica do diálogo das fontes, que estabelece a necessidade de, no caso concreto, o intérprete buscar a melhor solução.

A lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP) também tem disciplina, sob o aspecto registral, do condomínio edilício.

Em praticamente todas as cidades brasileiras há edifícios de dois ou mais andares com unidades imobiliárias autônomas, que são geralmente apartamentos ou lojas. Trata-se da figura do condomínio edilício, que também envolve situações de edificações de casas, conforme veremos mais à frente.

Ao contrário do que sucede com o condomínio tradicional, o condomínio edilício não envolve obrigatoriamente uma pluralidade de pessoas na titularidade do mesmo bem.1 Para esse tipo de condomínio, o fundamental não é a pluralidade de pessoas, e sim a pluralidade de unidades autônomas vinculadas a um mesmo terreno e a áreas comuns. Uma única pessoa pode ser titular de todas as unidades autônomas, seja no momento da instituição do condomínio, seja posteriormente mediante a aquisição delas. Metaforicamente, o condomínio edilício não é um condomínio de pessoas, e sim de imóveis (as unidades autônomas). Desse modo, se uma única pessoa for titular de todas as unidades autônomas, ainda assim haverá um condomínio edilício.

Em definição, condomínio edilício é a situação jurídica envolvendo uma edificação (ou um conjunto de edificações) que, por ficção jurídica, é dividida em duas partes: (1) as unidades imobiliárias autônomas, que correspondem às áreas de propriedade exclusiva do seu titular, e (2) as áreas comuns e o solo, que são de propriedade de cada um dos titulares das unidades imobiliárias na proporção da respectiva fração ideal.

O condômino, portanto, é proprietário exclusivo da unidade imobiliária e, concomitantemente, de modo indivisível, titular de uma fração ideal do solo e das áreas comuns.

O cálculo da fração ideal de cada condômino é feito com base em normas técnicas editadas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) por força do inciso IV do art. 53 da lei 4.591/64. A definição da fração ideal leva em conta a proporção da área construída de cada unidade autônoma, de maneira que o titular de uma unidade autônoma de maior tamanho terá uma maior fração ideal nas áreas comuns e no solo.

Em tese, se a edificação ruir e se os condôminos não deliberarem pela reconstrução (art. 1.357, CC), cada condômino terá perdido a unidade autônoma e as áreas comuns que estavam na edificação (como a área do corredor dos andares), mas ainda será titular de uma fração ideal no solo. O condomínio edilício aí se extinguirá pela falta de uma edificação e, no seu lugar, haverá um condomínio tradicional sobre o solo.

O condomínio edilício pode ser vertical ou horizontal. É vertical quando se trata de condomínio em uma edificação em andares (art. 8º, "b", lei 4.591/64). É horizontal quando se trata de edificações de casas: as unidades autônomas estão alinhadas horizontalmente (art. 8º, "a", lei 4.591/64).

Não se ignora que há quem classifique de forma oposta, focando a direção dos planos imaginários que separam as unidades autônomas;2 todavia, preferimos a classificação mais utilizada na jurisprudência.

3. Nascimento do condomínio edilício: instituição vs constituição do condomínio edilício

Instituição do condomínio é o ato jurídico praticado pelo titular de um imóvel com edificação para criar as unidades autônomas vinculadas a áreas comuns e ao solo. É o ato que dá existência jurídica às unidades autônomas do condomínio. Do ponto de vista do Cartório de Imóveis, a instituição do condomínio é ato registrado na matrícula do solo (matrícula-mãe) para, em seguida, gerar a abertura de matrículas para cada uma das unidades autônomas (matrículas-filhas).

O ato de instituição se instrumentaliza por meio do registro de um ato entre vivos ou de um testamento contendo os requisitos do art. 1.332 do CC e do art. 7º da lei 4.591/64. Esses requisitos são basicamente a descrição jurídica do condomínio edilício, ou seja, a indicação das unidades autônomas, a respectiva fração ideal no solo e nas áreas comuns e a finalidade das unidades (ex.: residencial, comercial etc.).

Ao se tratar de condomínio edilício, constituir o condomínio é diferente de instituí-lo. Apesar de sinônimas no vernáculo, constituição e instituição são conceitos diversos em relação a condomínio edilício.

Instituir é o ato que dá existência jurídica ao condomínio, fazendo nascer juridicamente as unidades autônomas vinculadas a uma fração ideal do solo e das áreas comuns. O ato de instituição é registrado na matrícula do imóvel, a qual fica no Livro 2 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", 176, 227, 237-A da LRP).

Constituir é o ato pelo qual se registra a convenção de condomínio, estabelecendo regras relativas ao funcionamento do condomínio. A convenção, além de reiterar os requisitos formais do ato instituição - para deixar claro quais são as unidades autônomas -, dá as regras relativas à custeio financeiro do condomínio, à sua administração, à competência da assembleia e ao regimento interno. Os seus requisitos estão no art. 1.334 do CC e no art. 9º, § 3º, da lei 4.591/64.

A constituição se instrumentaliza por uma convenção que deve ser registrada no Livro 3 do Cartório de Registro de Imóveis (arts. 167, "17", e 178, III, LRP e art. 9º, § 1º, da lei 4.591/64). Ela não é registrada na matrícula do imóvel - a qual fica no Livro 2 -, porque a convenção não trata da estrutura de direito real de propriedade do condomínio edilício, e sim das regras de funcionamento do condomínio.

Numa metáfora, instituir o condomínio edilício é criar o corpo (esqueleto e carne). Constituir é dar a alma para esse corpo funcionar.

Na prática, há ainda a "instalação do condomínio", que nada mais é do que a primeira assembleia dos condôminos destinada a nomear síndico e aprovar orçamentos. Não se trata de uma assembleia prevista em lei; é apenas uma prática. Nessa assembleia, pode também ser aprovada a convenção, mas nem sempre isso ocorre na prática: o costume é a aprovação ocorrer posteriormente.

4. Questões práticas

4.1. Condomínio edilício em parcela de um imóvel

O condomínio edilício necessariamente importa na vinculação da fração ideal das unidades autônomas ao terreno como um todo. Não é possível, portanto, vincular apenas a uma fração ideal do solo.

Se o titular do imóvel tiver esse interesse, o recomendável é ele desdobrar o imóvel em outros dois, criando duas outras matrículas, um para cada um dos imóveis. Em um desses imóveis menores (que terá uma nova matrícula), será viável construir um prédio e instituir um condomínio edilício próprio.

Se, porém, o imóvel for indivisível, o caminho poderá ser o do condomínio de graus sucessivos ou o do condomínio edilício com várias torres, que serão tratados mais à frente.

4.2. Condomínio edilício de graus sucessivos

Apesar de pouco usual e de gerar alguns inconvenientes de ordem funcional, não há obstáculo algum para que, na matrícula de uma unidade autônoma de um condomínio edilício, seja instituído um novo condomínio, que aqui designamos de condomínio de segundo grau. Chamamos assim, porque se trata de um condomínio edilício dentro de um outro.

É possível também que, em uma unidade autônoma desse condomínio de segundo grau, seja instituído um novo condomínio edilício, que agora receberia o batismo de condomínio edilício de terceiro grau.

Outros graus sucessivos de condomínio edilício seriam juridicamente cabíveis. O ordenamento admite o que chamamos de condomínio edilício de graus sucessivos.

Temos que só há dois requisitos necessários: (1) a existência de autorização expressa no ato de instituição, na convenção do condomínio originário ou em votação unânime dos condôminos, porque o condomínio de segundo grau mudará as características da unidade autônoma; e (2) a unidade autônoma na qual será instituído o condomínio de grau sucessivo precisa fisicamente comportar uma construção. Quanto a esse último requisito, exemplifique-se que um apartamento em um prédio é fisicamente inapto a receber uma nova construção em si.

No caso de condomínio de segundo grau, haverá um novo ente despersonalizado, com direito a CNPJ próprio e com um síndico próprio. Não se confunde esse novo ente despersonalizado com o do condomínio edilício originário.

O incômodo nesse tipo de condomínio de graus sucessivos é o fato de que o síndico, por não poder praticar atos de mera administração sem prévia autorização da convenção ou da assembleia, poderá retardar a dinâmica das assembleias do condomínio originário.

4.3. Imóvel indivisível de larga extensão com condôminos interessados em construir prédios nas áreas proporcionais às suas frações ideais

Já tivemos notícia de casos concretos de condomínios de graus sucessivos em serventias de registro de imóveis. Suponha que um terreno de extensão considerável seja indivisível por força de lei. Há matrícula para esse imóvel no competente Cartório de Registro de Imóveis (art. 176, § 1º, da lei 6.015/73 - Lei de Registros Públicos - LRP). Imagine que João seja titular de uma fração ideal de 30% desse imóvel e Artur seja dono do restante.

Nessa situação hipotética, João pode ter interesse em construir um prédio com apartamentos em uma área correspondente a 30% do solo do terreno, deixando o restante do solo para o Artur. Para formalizar isso, João e Artur poderão instituir um condomínio edilício, estabelecendo que 70% do solo do terreno corresponderá a uma unidade autônoma que coexistirá com as várias unidades autônomas que corresponderão aos apartamentos. Artur pode ficar como proprietário dessa unidade autônoma heterogênea.

Nesse caso, como essa unidade autônoma extravagante comporta uma construção em si, nada impede que Artur edifique um prédio e institua um condomínio edilício de segundo grau. Essa instituição ocorrerá por meio de um registro de instituição de condomínio na própria matrícula da unidade autônoma heterodoxa.

4.4. "Condomínio edilícios fechados" com várias torres

Figuras comuns nas grandes cidades são os empreendimentos imobiliários envolvendo várias torres (prédios de andares) erguidas em um mesmo terreno com a construção de áreas de lazer nesse mesmo terreno (campo de futebol, piscina etc.) e com o fechamento de todo esse terreno mediante muros e instalação de portarias para controle de acesso de entrada e saída. Como se podem estruturar juridicamente esses condomínios edilícios fechados com várias torres?

Enxergamos os seguintes arranjos.

Em primeiro lugar, é possível simplesmente instituir um único condomínio edilício, fixando que cada proprietário de uma unidade privativa (um apartamento) será um condômino. Se, nesse conjunto imobiliário houver 4 torres e cada uma contiver 50 apartamentos, teremos 200 condôminos.

Uma desvantagem dessa estrutura é a de que, havendo a necessidade de assembleia para resolver problemas pontuais de apenas uma das torres, será difícil obter quorum para votação. Aliás, diante da grande quantidade de condôminos, haverá dificuldade para a obtenção de quorum de votações para as questões em geral, pois, nesses arranjos imobiliários, é comum a comunidade de condôminos envolver centenas de pessoas.

Para atenuar essa desvantagem, convém que a convenção estabeleça uma gestão descentralizada, conforme exporemos mais abaixo.

Em segundo lugar, é viável valer-se do condomínio de segundo grau. Inicialmente, pode-se instalar um condomínio em que a unidade autônoma será a base territorial do solo sobre a qual será erguida cada torre. No exemplo acima, como serão erguidas 4 torres, haverá 4 unidades autônomas e, portanto, 4 condôminos. Em seguida, em cada uma dessas unidades autônomas, poderá ser instituído um condomínio edilício (condomínio de segundo grau) após a construção da respectiva torre. Nesse caso, cada torre corresponderá a um condomínio edilício próprio e, portanto, os titulares dos apartamentos de cada torre poderão resolver os seus problemas individuais relativos a cada edifício de modo isolado, por meio de assembleias próprias. Quanto ao primeiro condomínio edilício - aquele que, no exemplo, possui 4 condôminos -, caberá a ele resolver os problemas comuns a todas as torres, como as questões relativas a reparos das piscinas, do campo de futebol, da portaria etc. As assembleias reunirão os 4 condôminos, que, agora, serão os 4 condomínios edilícios de segundo grau criados, os quais serão representados pelos respectivos síndicos. Parece-nos que essa estrutura de condomínio edilício é mais vantajosa juridicamente, por facilitar a resolução de questões de interesse restrito de cada torre. Para a formalização desses condomínios de segundo grau, é importante observar o exposto mais acima no tocante aos seus requisitos, como a autorização expressa na convenção ou em assembleia do primeiro condomínio.

Por fim, não nos parece adequado que, nesses arranjos, seja utilizada a figura do condomínio de lotes, exatamente porque ela tem de decorrer de um loteamento. Nesses empreendimentos imobiliários para a instalação de várias torres, não há a intenção de criar lotes, com toda a autonomia jurídica que lhe é inerente.

4.5. "Condomínio edilícios fechados" com várias torres

Há condomínios edilícios em que as unidades privativas estão espalhadas em várias torres em um mesmo terreno. Geralmente, nesses arranjos imobiliários, o terreno é cercado, há uma portaria central para controle de acesso e as áreas comuns possuem piscinas, quadras de esportes e outros equipamentos de uso comum, além de envolver centenas de moradores.

Esses mesmos arranjos imobiliários poderiam ser obtidos de outros institutos jurídicos, como por meio de um condomínio de lotes (em que, em cada lote, seria instituído um condomínio edilício para a respectiva torre).

Estamos aqui a focar a situação em que essa organização imobiliária assume a figura de um condomínio edilício com centenas de condôminos. Formatos jurídicos como esse costumam apresentar problemas operacionais pela dificuldade de aprovação de determinadas matérias em razão da baixa presença dos condôminos nas assembleias ou do desinteresse da maioria em resolver problemas de interesse apenas dos condôminos de apenas uma torre. Em Brasília, em um desses grandes condomínios que envolviam cerca de 800 condôminos, os moradores nunca conseguiam a presença da quantidade mínima exigida para obter o quórum necessário para autorizar a instalação de unidades externas de ar-condicionado na fachada do prédio.

Para esses casos, é recomendável que a convenção de condomínio preveja uma gestão descentralizada para cada uma das torres, nomeando um síndico setorial para cada torre e permitindo que determinadas matérias de seu interesse possam ser deliberadas em assembleia descentralizada que envolvam apenas os condôminos da respectiva torre. A convenção pode fixar quórum específico para essas matérias setoriais. Poderiam essas assembleias setorizadas, inclusive, fixar contribuições extraordinárias oponíveis apenas contra os condôminos da torre envolvida.

4.6. Associação de moradores vs condomínio edilício

Nenhum outro ente tem poder de gestão sobre os interesses comuns dos condôminos senão o próprio condomínio edilício, que é um sujeito de direito. Só ele pode exigir contribuições dos condôminos, fazer obras nas áreas comuns etc.

Nenhuma associação, ainda que composta por condôminos, pode sobrepor-se ao condomínio edilício. Não podem, por exemplo, fazer obras nas áreas comuns nem cobrar dos associados os valores que estes teriam de pagar a título de quota de contribuições condominiais.

Nesse sentido, eventual associação de moradores criada por condôminos de uma das várias torres de um grande condomínio edilício não pode realizar obras nas áreas comuns (com inclusão da fachada e da estrutura de nenhuma das torres) nem pode dispensar os condôminos de continuarem pagando a contribuição condominial para o condomínio edilício. Por isso, o STJ condenou um condômino a pagar as contribuições condominiais atrasadas perante o condomínio edilício, ainda que aquele tenha entregado o valor dessas contribuições para a associação dos moradores de uma determinada torre (STJ, REsp 1231171/DF, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 10/02/2015).

Aliás, se a associação de moradores tiver por objeto social administrar as áreas comuns relacionadas a um dos vários edifícios que compõe um condomínio edilício, esse objeto é ilícito, de maneira que sequer o registro do seu ato constitutivo no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas deveria ser admitido (art. 115, LRP3).

5. Conclusão

A figura dos condomínios edilícios acomoda novos arranjos negociais desenvolvidos pelo mercado imobiliário. Expusemos, neste artigo, formas de aplicação dessa figura para situações envolvendo empreendimentos imobiliários com várias torres ou com perfis diferentes de exploração.
__________

1 Ressalva-se que há respeitoso entendimento doutrinário contrário, afirmando que tecnicamente haveria necessidade de haver pluralidade de pessoas, embora seja admitida a instituição do condomínio apenas por um único titular (Melo, 2018, p. 245), entendimento com o qual não acompanhamos pelo fato de inexistir óbice a que uma única pessoa adquira todas as unidades autônomas e o condomínio continue existindo.

2 Condomínio de andares seria condomínio edilício horizontal, pois linhas imaginárias horizontais separam as unidades. Condomínio de casas seria condomínio edilício vertical, pois linhas imaginárias verticais separam as unidades.

3 Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73).

Atualizado em: 28/4/2021 08:39

Carlos Eduardo Elias de Oliveira - Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil. Advogado, doutorando, mestre e bacharel em Direito na UnB. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB. Ex-advogado da União (AGU).
Fonte: Migalhas Notariais e Registrais

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Direito de preferência, boa-fé e início do prazo para a ação de adjudicação compulsória


Quando Isaac Newton, ainda em 1687, publicou os três volumes do Principia, revelando, para um mundo assombrado, suas leis do movimento e da gravitação universal, quem poderia imaginar que Albert Einstein, após dois séculos e meio de verdades absolutas, demonstraria, com sua teoria da relatividade, que as coisas não eram bem assim? Por essas e por outras, o filósofo Karl Popper, também um gênio, dedicou parte de sua vida defendendo, com seu racionalismo crítico, que a lógica indutiva e as certezas dela extraídas são um mito, e que o erro é componente inevitável de toda teoria científica; é o motor pelo qual a ciência se move1.

No Direito também temos nossas certezas, e precisamos revisitá-las de vez em quando. Este artigo, frise-se, não traz nenhuma descoberta revolucionária. Contamos a história acima apenas porque o exemplo extremado costuma servir bem à didática.

Como se sabe, para vender sua fração ideal de um imóvel a estranhos o proprietário deve ofertá-la ao(s) seu(s) condômino(s) pelo mesmo preço e condições ajustados com o terceiro; e, em caso de violação dessa preferência, o condômino prejudicado tem direito à adjudicação compulsória da fração indevidamente alienada, desde que inicie a ação judicial ou procedimento arbitral no prazo decadencial de até 180 dias (art. 504 do Código Civil).

A Lei de Locações traz regra parecida em favor do locatário, porém de maneira bem mais completa. Enquanto o Código Civil se omite, abrindo espaço para a regulação caso a caso em convenção condominial, a lei 8.245/91 é expressa em prever, além de outros aspectos: (i) o prazo decadencial de 30 dias para o locatário aderir à proposta do locador (art. 28); e (ii) o termo a quo do prazo de seis meses para a ação de preferência se conta "do registro do ato no cartório de registro de imóveis" (art. 33).

Disto decorrem pelo menos duas regras gerais quanto ao prazo decadencial: (i) o locatário deve contar os seis meses a partir do registro do instrumento de alienação na matrícula do imóvel; e (ii) o condômino iniciará a contagem dos 180 dias no termo a quo previsto na convenção de condomínio, ou, em caso de omissão ou inexistência de convenção, também a contar do registro do instrumento de alienação, por aplicação analógica da Lei de Locações. Aqui, o dever ser.

Porém, raramente as coisas são como deveriam ser, e o desrespeito à preferência acontece no mundo real. Uma primeira forma recorrente de violação é a simulação: o alienante oferta o imóvel por um preço, quando, sorrateiramente, ajustara com o comprador um valor menor2. Um segundo modo ilícito de agir é comunicar a intenção de alienar, mediante prévia notificação, e então, mesmo com a adesão do condômino ou do locatário à proposta, simplesmente ignorá-lo, seguindo em frente com a venda para o terceiro. Há ainda uma terceira, que está no foco deste artigo: o silêncio absoluto.

Neste mau caminho, nada é dito ao preferente; nem antes, nem depois. Como raramente o condômino ou locatário monitora a matrícula imobiliária, a transmissão só vem à tona muitos meses, quiçá anos mais tarde, quando o prazo decadencial já se esvaiu. Sim, pois o art. 33 da lei 8.245/91 fixa o termo a quo do prazo decadencial da ação de preferência na data do registro.

E não só a Lei. O Enunciado 545 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, na mesma linha, estabelece que o prazo para a ação anulatória de venda de ascendente a descendente, quando cabível, se conta "da ciência do ato, que se presume absoluto, em se tratando de transferência imobiliária, a partir da data do registro de imóveis".

Presunção absoluta de ciência do ato? Eis a verdade sobre a qual precisamos refletir, senão para encontrar respostas, ao menos para levantar perguntas.

Não se discute que o registro do negócio jurídico na matrícula do imóvel tem o condão de torná-lo público, acessível a todos, o que traz como essencial efeito a presunção de ciência por terceiros. O ato registrado pode não ser verdadeiramente conhecido de alguém, mas é indubitavelmente conhecível. A lei 8.245/91 e o Enunciado 545 do CJF partem precisamente dessa premissa, convenhamos, lógica e razoável.

Contudo, precisamos ter cuidado com as consequências de tal publicidade sobre as pessoas. Quando o oficial conclui o registro na matrícula, não há intimação dos interessados afetados direta ou indiretamente pelo ato. Não há, por assim dizer, o que se denomina "publicidade ativa". A montanha não vai a Maomé, apenas espera por ele, caso ele decida ou precise vir. O ato será conhecido se e somente por quem pedir uma certidão da matrícula ou, por algum modo, tiver sido avisado do negócio. A compra, se não tiver sido feita pelo filho do Presidente da República ou por outro famoso de interesse da imprensa, ou se não estiver no bojo de uma megaoperação imobiliária, dificilmente virá à superfície, mantendo-se além do horizonte, fora do alcance dos olhos distraídos do locatário ou do condômino prejudicado, e quando ficar à vista, se ficar, provavelmente será tarde demais. A publicidade do ato registral é, assim, passiva e limitada. E por isso mesmo, em nome da coerência do sistema, seus efeitos devem ser interpretados na mesma extensão.

Situações diferentes devem ser interpretadas distintamente. Você já se perguntou por que uma averbação premonitória, um registro de penhora ou de arresto, ou de existência de ação, produz plenamente seus efeitos contra terceiros? Que terceiros? Os bilhões de pessoas físicas e jurídicas restantes do planeta? Ao que parece, o terceiro a que a publicidade efetivamente se dirige é o possível adquirente do imóvel, o interessado que, espontaneamente, aliás, obrigatoriamente, obterá uma certidão da matrícula, com a chance real e concreta de descortinar, para sua surpresa, decepção ou indiferença, o gravame ali registrado3.

E se no momento da aquisição a penhora, a averbação premonitória, o arresto, a menção à existência da ação ou a indisponibilidade ainda não estiverem na matrícula do imóvel? Ainda assim haverá fraude à execução? Ou, não havendo registro, não há publicidade nenhuma, e por isso, a presunção de boa-fé do adquirente é absoluta? Não há binarismo. Depende. A Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça responde a parte da pergunta. Segundo seu enunciado, o reconhecimento da fraude depende do registro da penhora, ou, não havendo registro prévio de penhora ou ato similar de publicidade, "da prova de má-fé do terceiro adquirente".

Siga conosco: se a penhora (ou ato similar) está registrada, fica caracterizada a má-fé, isto é, o conhecimento da demanda ou da constrição; se não há registro, o exequente tem que provar que o adquirente sabia. Entretanto, pode ser que o ônus da prova caia sobre o adquirente; pois se este, por sua condição negocial habitual, deveria saber, ou ao menos, deveria ter sido diligente, não haverá aquisição de boa-fé, e o bem se sujeitará à execução, como o próprio STJ já decidiu mais de uma vez4. A jurisprudência, enfim, reconhecendo que a boa-fé objetiva é uma via de mão dupla, imputa ao adquirente empresarial a comprovação de que foi diligente na aquisição do bem, isto é, que cumpriu adequadamente o ônus de se informar5. Entre o branco e o preto há um mar de cinza na riqueza das situações concretas.

Há outro caso que também nos ajuda a chegar onde queremos. O art. 8º da Lei de Locações trouxe a regra "venda rompe locação", ou seja, em caso de alienação do imóvel locado o adquirente tem direito a denunciar o contrato, mesmo aquele protegido pelo direito à renovação compulsória, a não ser que: (i) a locação esteja vigorando por prazo determinado; (ii) haja cláusula de vigência de caso de alienação; e (iii) o contrato esteja previamente averbado na matrícula do imóvel. Três requisitos concomitantes, e o terceiro deles esbarra no tema tratado neste artigo: a presunção de conhecimento do ato registrado por terceiros. Contudo, embora a lei exija do locatário o preenchimento de três requisitos, o STJ analisou um processo em que o contrato não estava averbado, mas se provou que o adquirente, ao comprar o imóvel, sabia da locação. Isso foi o bastante para a interpretação teleológica do artigo: se a função da exigência de prévia averbação era permitir o conhecimento do contrato pelo terceiro, e se, mesmo sem a averbação, o objetivo estava alcançado, o adquirente não poderia se beneficiar dessa questão meramente formal para retirar o inquilino do imóvel6.

Qual é o pano de fundo, o divisor de águas nas questões acima expostas sobre fraude à execução e venda rompe locação? A boa-fé objetiva.

A boa-fé tem sido exaustivamente estudada pela doutrina e sistematicamente aplicada pela jurisprudência, especialmente no contexto de que a função de uma categoria jurídica é tão ou mais importante que sua estrutura, condicionando-a. Jogue um líquido amarelo num pote de tinta azul, e algo diferente sairá dessa mistura. Nessa perspectiva funcional e transformadora da boa-fé, uma cláusula geral, se extraem três papéis principais: (i) oxigenar a concepção do contrato e de cada obrigação nele contida, para modernamente enxergá-la como um processo, um encadeamento dinâmico de atos com um fim a tutelar: a legítima expectativa das partes (CC, art. 422)7; (ii) atuar no plano da interpretação das declarações negociais e das condutas das partes (CC, art. 113); e (iii) funcionar corretivamente, balizando o modo do exercício de um direito (CC, art. 187). A correção se opera, fundamentalmente, no plano das condutas, e no momento do exercício dos direitos, faculdades, pretensões, ações, exceções e ônus.

Se, então, a boa-fé objetiva pode, deve, e vem sendo utilizada pelo próprio STJ para temperar sua Súmula 375 e o art. 8º da Lei de Locações, porque o mesmo não poderia ocorrer com o art. 33 da Lei do Inquilinato (ou com eventual cláusula convencional) em caso de alienação subterrânea, furtiva, sem qualquer aviso ao locatário ou condômino?8

Portanto, e rumo à conclusão, nos parece certo afirmar que nas alienações silenciosas, violadoras da preferência, o comportamento do alienante agride a boa-fé e fere a legítima expectativa do condômino ou locatário de que seria avisado da intenção de venda, o mesmo se dizendo do adquirente que, sabendo da existência de condômino ou de locatário, decide seguir em frente com a aquisição sem ao menos uma declaração do vendedor de que a preferência estaria sendo respeitada.

Em tais casos, o efeito da publicidade passiva decorrente do registro deve ser mitigado, não ocorrendo a presunção de conhecimento pelo titular da preferência profanada, e o prazo decadencial não contará da data do registro da alienação. Sem a presunção militando em seu favor, caberá aos capciosos alienante e adquirente a prova de que o autor da ação teve ciência da transmissão em data anterior ao ajuizamento da ação ou da data por ele alegada, para fins de fixação do termo inicial da decadência.

Naturalmente, tal mitigação é excepcional, e deve ser conservadoramente aplicada, levando-se em conta os seguintes critérios: (i) alienação sem prévio aviso: se o titular da preferência, comprovadamente, foi de alguma forma alertado, o dever de monitorar a matrícula permanece sobre seus ombros; (ii) circunstâncias do caso concreto: se, mesmo no silêncio absoluto, havia razões circunstanciais, como um fato notório, que justificassem a atenção do locatário ou condômino diligente, o dever de monitoramento registral igualmente existirá; e, finalmente, (iii) grau de profissionalismo do locatário ou do condômino: ocorrendo a venda silenciosa, não se pode tutelar a confiança de um fundo de investimento com a mesma intensidade de uma pessoa física leiga9.

A confiança é o cimento, a base para qualquer convivência social e humana10; um dos fundamentos da boa-fé, que norteia a interpretação legal e contratual, estabelecendo um standard jurídico de probidade para o comportamento das partes e atuando corretivamente em caso de abuso do direito, a fim de tutelar a legítima expectativa. A boa-fé, enfim, funcionaliza e transforma as relações jurídicas contratuais e reais, sendo ingrediente fundamental na interpretação e aplicação das normas legais e cláusulas contratuais. Não podemos nos acomodar diante de certas verdades jurídicas esmagadoras, grandes ou pequenas, importantes ou não, revisitando suas premissas e questionando seu alcance. O direito de preferência, se visto e interpretado com as lentes da boa-fé objetiva, pode ter seu potencial elevado, contribuindo para negócios imobiliários cada vez mais impregnados de lealdade. Que assim seja.

*André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador, Vice-Presidente e Diretor Administrativo do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário. Sócio de Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados.
**Demétrio Beck da Silva Giannakos é advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS, mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS, sócio do escritório Giannakos Advogados Associados, membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS, associado do IBRADIM e da AGADIE. Instagram: @demetriogiannakos.
__________

*Este artigo é uma versão desenvolvida a partir do texto publicado no Jornal do Notário nº 202, disponível aqui. Acesso em 23.abr.2021.

1 POPPER, Karl. R. A Lógica da Pesquisa Científica. 18. edição. São Paulo: Cultrix, 2012.

2 Neste sentido, confira a seguinte ementa de caso julgado pelo STJ: "RECURSO ESPECIAL. CIVIL. VENDA DE QUINHÃO DE COISA COMUM INDIVISA. DIREITO DE PREFERÊNCIA... INOBSERVÂNCIA AO DIREITO DE PREEMPÇÃO DOS DEMAIS CONDÔMINOS... RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO... Praticado preço simulado pelas partes, fazendo constar da escritura pública preço a menor, que não reflita o valor real do negócio, deve prevalecer aquele exarado na escritura devidamente registrada para fins do direito de preferência, sendo que o registro do título (que tem como atributo dar publicidade da alienação imobiliária a toda a sociedade, conferindo efeito erga omnes) é o ato substitutivo da notificação, que deveria ter sido anteriormente remetida ao coproprietário, mas não foi, não podendo o condômino alienante valer-se da própria torpeza, a qual denota o abuso do direito infringente da boa-fé objetiva.." (REsp 1.628.478/MG, Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª. Turma, j. em 03/11/2020, DJe 17/11/2020).

3 Apenas para exemplificar: "AGRAVO DE INSTRUMENTO... ANULAÇÃO ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. REGISTRO DA CITAÇÃO OCORRIDA EM AÇÃO REAL OU PESSOAL REIPERSECUTÓRIA NO ÁLBUM IMOBILIÁRIO. A determinação de registro da citação de ação real ou pessoal reipersecutória na matrícula junto ao registro de imóveis atende ao princípio da publicidade. A medida não constitui restrição ao direito de alienar o imóvel e evita o risco de lesão a terceiros de boa-fé interessados na aquisição do bem. No caso concreto, considerando a pretensão de nulidade da cessão de direitos hereditários, que poderá atingir os negócios jurídicos posteriores, o registro da citação deve recair sobre o imóvel descrito no R-2-5330, e não apenas sobre a meação da agravada. Agravo de instrumento provido" (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70058334566, 19ª Câmara Cível, Rel. Des. Marco Antonio Angelo, j. em 14.08.2014). 

4 Confiram-se os seguintes trechos: (i) "Destaca-se que a presunção de fraude à execução quando a alienação do bem do devedor ocorre após a citação é relativa, ou seja, admite prova em contrário, sendo invertida pelo adquirente que comprova que agiu com boa-fé na aquisição do bem, mediante a apresentação de certidões pertinentes ao local onde se situa o imóvel, além de demonstrar desconhecer a existência da Execução Fiscal ou da inscrição em dívida ativa em desfavor do alienante" (EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1225829/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1. Turma, j. 14/02/2017); (ii) "Está demonstrada a boa-fé do terceiro adquirente quando este junta aos autos certidões de distribuição cível e de protestos obtidas no domicílio da alienante e no local do imóvel. Não se pode exigir que o adquirente tenha conhecimento de ações ajuizadas em outras comarcas" (REsp 1015459/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 19/05/2009); e (iii) "Acrescente-se, apenas, que a boa-fé do adquirente não ficou demonstrada nos autos pois tinha sido cientificado da ação de despejo que poderia resultar em obrigações ao fiador/executado/alienante e especialmente porque dispensou as certidões dos cartórios distribuidores. Com efeito, só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé, o comprador que toma mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição" (AgRg no REsp 721.960/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª. Turma, j. 14/10/2014).

5 Rodrigo da Guia Silva e Gustavo Tepedino, com propriedade, sustentam que "incumbe ao credor, dentro das suas concretas possibilidades, o ônus de empreender esforço razoável para a obtenção - ou, ao menos, para a solicitação - das informações necessárias à formação do seu convencimento ou ao desempenho da prestação assumida no bojo do contrato", que "a postura diligente do credor apresenta-se como pressuposto para o legítimo exercício do seu direito à informação", e que, "dificilmente poder-se-ia concluir que age conforme à boa-fé objetiva o credor que deixa de buscar - ou, ao menos, de solicitar - as informações às quais razoavelmente poderia ter acesso sem esforço desmesurado". (SILVA, Rodrigo da Guia; TEPEDINO, Gustavo. Dever de informar e ônus de se informar: a boa-fé objetiva como via de mão dupla. Migalhas. Acessado em 24 de abril de 2021).

6 Confira-se: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESPEJO. DENÚNCIA VAZIA. COMPRA E VENDA. MANUTENÇÃO CONTRATO DE LOCAÇÃO. AUSÊNCIA DE AVERBAÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO COMPRADOR... Na hipótese, trata-se de ação de despejo proposta por comprador de imóvel em face de locatário. Discute-se a possibilidade do comprador de imóvel locado proceder à denúncia do contrato de locação ainda vigente, com fundamento na inexistência de averbação da referida avença na matrícula do respectivo imóvel. 4. O Tribunal de origem, após analisar a documentação apresentada pelas partes, que retratava toda a negociação de compra e venda do bem, até a lavratura da respectiva escritura, entendeu que, não obstante ausente a averbação do contrato na matrícula do imóvel, o adquirente tinha a obrigação de respeitar a locação até o seu termo final. 5. Afastada a possibilidade da recorrente denunciar o contrato de locação com base na ausência da sua averbação na matrícula do imóvel porque ela tinha inequívoco conhecimento da locação e concordara em respeitar seus termos em instrumentos firmados com o locador e proprietário anterior... Negado provimento ao recurso especial" (REsp 1269476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2013, DJe 19/02/2013).

7 SILVA, Clovis Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 17.

8 Vitor Frederico Kümpel, ao criticar o Enunciado 545 do CJF, explica justamente a importância de se diferenciar as publicidades ativa e passiva, e que de acordo com o enunciado teria se "operado a decadência do direito dos descendentes, o que por si só é um absurdo" (KÜMPEL, Vitor Frederico. Publicidade passiva X publicidade ativa. Disponível aqui. Acesso em 8.mar.2021).

9 Novamente na lição de Rodrigo da Guia Silva e Gustavo Tepedino, a extensão do dever de informar haverá de ser investigada à luz, entre outros fatores, do grau de vulnerabilidade ou assimetria informacional das partes na relação contratual; por um lado, quanto maior a assimetria informacional, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar; por outro lado, quanto menor a assimetria informacional, menos intenso é o dever de informar e mais intenso é o ônus de se informar. Cumpre ao intérprete, portanto, investigar a existência e a exata medida da assimetria informacional entre as partes, por ser justamente essa disparidade originária de informações um dos principais critérios para a definição da intensidade do dever de informar e do ônus de se informar em cada caso concreto. (SILVA, Rodrigo da Guia; TEPEDINO, Gustavo, ob. cit.).

10 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé Objetiva e o Adimplemento das Obrigações. Revista Brasileira de Direito Comparado, v. 25, 2004, p. 229-284. A boa-fé subjetiva, por sua vez, é um estado psíquico, uma crença de estar agindo corretamente. Aqui, o direto protege a crença legítima na juridicidade de certos estados, fatos, atos ou comportamentos.

Atualizado em: 29/4/2021 08:48
Fonte: Migalhas Edilícias

quarta-feira, 28 de abril de 2021

IPCA x IGP-m: entre os abismos e os moinhos da pandemia


"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". Essa passagem, em tradução livre, contida no livro "Para Além do Bem e do Mal", de Nietzsche, representa a grande preocupação que a comunidade jurídica tem apresentado no combate do monstro da pandemia pelos poderes da República.

A pandemia demonstrou o quanto pode se tornar maquiavélico o enfrentamento de um problema global, não em sentido pejorativo, mas sim de supressão de um racional na escolha dos meios, e sem solução aparente, nos remetendo aos mais primitivos temores da humanidade: a morte.

Temos que constatar e reconhecer que, salvo raras exceções, falhamos ou tardamos em estabelecer estratégias eficazes para lidar com crises, o que se prova pela constante adoção de soluções que indicam curta visão e longos problemas.

Feito este negativo preâmbulo, é de notório conhecimento a tramitação, no Congresso Nacional, do PL1026/21, que pretende pré-fixar o IPCA como índice de reajuste anual da locação residencial e comercial, sugerindo a inclusão de um parágrafo único ao art. 18 da Lei do Inquilinato:

"Art. 18 ..................................................................................... Parágrafo único. O índice de reajuste previsto nos contratos de locação residencial e comercial não poderá ser superior ao índice oficial de inflação do País medido pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo), ou outro que venha substitui-lo em caso de sua extinção. É permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário."(NR)

Aqui vale destacar alguns itens sobre os quais não se pretende a análise nestas linhas: (i) a incongruência da alteração, fixando o índice para depois tornar possível suposta dispensabilidade e (ii) a aplicação temporal da Lei, se aprovada (por mais que pareça clara a irretroatividade).

Prosseguindo, como passaremos a esclarecer, se trata de mais uma intervenção inconstitucional na economia, ferindo de morte a parte final do art. 174 da Constituição da República Federativa do Brasil ("CRFB").

O Constituinte foi claro em dizer que o Estado, "agente normativo e regulador", será determinante para iniciativa econômica pública e indicativo para a privada. Mas o que isto significa? Parece adequado o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, para quem a intervenção estatal deve se ater a uma justificativa determinante, como o funcionamento anormal da iniciativa privada ou a necessidade de sua reorganização1.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o Estado "deve para evitar intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade"2, mostrando-se compreensivo apenas na presença de justificativas sólidas e marcante interesse social3.

Há alguns anos, vê-se um movimento, por parte do Poder Legislativo, de leitura míope da Constituição, em que se simula um confronto intransponível entre valores constitucionais, devendo um deles prevalecer pelo bem comum (seja lá qual for o seu significado). Como consequência, temos uma profusão de projetos de Lei demasiadamente intervencionistas.

Tal fenômeno também se verifica no Poder Judiciário. Todavia, nestas linhas, deixaremos de lado a apreciação do seu papel na equação desse enclosure da iniciativa privada.

A bem da verdade, essa polarização constitucional soa intuitiva. Na sua sustentação, apresenta-se comumente um discurso eloquente, moralmente afinado e capaz de carrear salvas de palmas, mas que pode impor danos irreparáveis ao tecido jurídico.

É de sabença que a escolha de valores constitucionais para solução de questões, notadamente no campo legislativo, não pode ceder a uma opção discricionária entre eles. Assim, não se deve buscar a prevalência, mas sim a sua aplicação simultânea, compatibilizada e harmônica4.

Sob a lente do equívoco da polarização constitucional, o PL debatido transforma o IGP-M em um "monstro-moinho" da pandemia, seu inimigo número um. Assim, em uma versão quixoteana do direito social à moradia e na sua necessária proteção, afirma, sem nenhuma base racional, que o IPCA é o índice eleito para supostamente salvaguardá-lo, sob a alegação de que o IGP-M se apresentou demasiadamente elevado no período pandêmico.

Como dito, esta solução, oriunda de uma leitura enviesada da CRFB, ignora a premissa da ordem econômica levantada no princípio deste ensaio, que coloca o Estado no exercício das funções de fiscalização, incentivo e planejamento, mas não de interventor ilimitado5.

É preciso respeitar a máxima de Carlos Maximiliano, repetida pela jurisprudência nacional6, que dizia que não se pode presumir a inutilidade das palavras na Lei, especialmente aquelas proferidas pelo Constituinte. É preciso respeitar, ao menos, o núcleo semântico do vernáculo.

Ao afirmar que o Estado é indicativo para a inciativa privada, é aberrante imaginar que poderia o legislador intervir como quisesse em dinâmicas contratuais.

Por óbvio, não se pode esquecer do direito social à moradia, devendo o Estado fiscalizar abusos, incentivar formas mais econômicas de locação (talvez a social) e planejar políticas públicas habitacionais. Porém, sua invocação não autoriza uma intervenção direta no plano legislativo sobre o preço e sua rentabilidade, aspectos pactuados pelas partes em um contrato civil, presumidamente paritário e, portanto, com igual proteção constitucional.

Parece-nos adequada a seguinte conclusão: não cabe ao Estado ditar regras de preço ou definir índices de seu reajuste, para a iniciativa privada, quando se está diante de nichos não regulados ou na ausência de fundamentos que autorizem a excepcionalidade.

E aqui é preciso afirmar que o mercado locatício não é mercado regulado, não se podendo admitir a interpretação de que a tipicidade contratual o elevaria a tal categoria. Claramente, não se nega a relevância social do contrato, mas tal constatação igualmente não autoriza a intervenção indireta na forma pretendida.

Necessário rememorar, que o reajuste do preço do aluguel, previsto na Lei do Inquilinato e na Lei nº 9.069/95, tem por objetivo histórico manter em dia o racional econômico (posto pelas partes) do contrato civil, evitando seu rompimento e garantindo, aí sim, o direito social à moradia e a legítima expectativa econômica das partes.

Não se pode admitir que, por uma argumentação populista, desprovida de razoabilidade ou proporcionalidade, se ignore o importante vetor econômico da locação imobiliária. Isto porque a locação de bens imóveis é um negócio típico, inserido em um mercado maduro, com práticas e costumes já consolidados.

Obviamente, o legislador pode (e deve) abordar questões acessórias e periféricas: periodicidade, condutas abusivas e normas protetivas, mas nunca ditar ou limitar a rentabilidade de uma operação, mais uma vez, presumidamente paritária, inclusive por novel diploma infraconstitucional7.

Sendo certo a imprescindibilidade de justificativa para a intervenção, nos deparamos com o fato de que não há fundamento jurídico em "congelar" o índice de forma perene, senão vejamos: (i) o IPCA é variável (podendo potencialmente ultrapassar o IGPM ou gerar deflação não esperada), bem como pode ter, a qualquer momento, seu método de cálculo modificado; (ii) não se pode equiparar os vetores econômicos da locação residencial e "comercial", ante a sua distinta natureza e razão econômica; (iii) a pandemia é circunstancial e passageira, por mais que não se possa precisar o tempo.

É marcante a contatação de que a escolha do IPCA carece de razoabilidade na medida em que não apresenta solução juridicamente aceitável para os fins preconizados e admitidos pela CRFB8. A baixa variação do IPCA não o torna o índice mais adequado, até, historicamente, já esteve mais elevado que o IGP-M. Assim, o que de fato pretende o legislador é, única e exclusivamente, reduzir a rentabilidade da locação, o que não pode ser admitido.

Um alerta: não se pode colocar panos quentes na verdadeira hecatombe que o COVID-19 se tornou, ceifando as vidas de milhares, sendo certo que qualquer medida que busque ironizar, menosprezar ou negar o seu significado e cicatriz na sociedade brasileira, beira atitude criminosa.

Contudo, analisando com a serenidade necessária a medida legislativa proposta, constata-se que, para além de não resolver o problema, cria uma solução equivocada e desproporcional; em outras palavras, tenta vencer um moinho com uma lança.

Noutro ponto, a irrazoabilidade do PL se caracteriza também no desprestigio dos remédios de intervenção judicial postos pelo legislador infraconstitucional para enfrentar eventuais descompassos produzidos por eventos imprevisíveis e extraordinários, com ampla aplicação concreta pelo Poder Judiciário.

É preciso compreender que a pandemia deve ser combatida, não regulamentada. Pode-se vislumbrar um regime transitório, mas nunca um regime geral, com consequências nocivas a posteriori.

Em uma abordagem mais consequencialista, pensando na política habitacional por exemplo, essa intervenção pode desestimular a oferta de imóveis para locação residencial, o que fortaleceria ainda mais as mazelas deixadas pela pandemia.

Em conclusão, por mais nobre que possa ser o intento das Casas Legislativas, intervenções dessa natureza flertam perigosamente com a subversão do espírito constitucional, vocacionado, acima de tudo, ao equilíbrio dos valores e direitos cuidadosamente construídos pelos Constituintes.

Devemos ser cautelosos e conscientes, pois o abismo tenta nos mirar e uma lança não vence moinhos.

*Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Professor convidado dos programas pós-graduação da UERJ, NUFEI e UCAM. Secretário-geral da Comissão Especial de Direito Imobiliário e Direito Urbanístico da OAB/RJ. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Privado Patrimonial e Direito Imobiliário.
**Vinicius Bragança é advogado. Presidente da Comissão de Litigation e Gestão de Contencioso da 57ª Subseção da OAB/RJ. OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Processual Civil.
Fonte: Migalhas Edilícias
__________

1 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226: 187-212, out./dez. 2001. Pág. 204-205.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 958252 MG - MINAS GERAIS.

3 Idem. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE : ADI 1950 SP - SÃO PAULO.

4 SARLET, Ingo Wolfgang apud LIMA, George Marmelstein, A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navegandi. Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002.

5 Disponível aqui. Acessado em 21/04/2021.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO: ARE 1002041-89.2018.8.01.0000 AC - ACRE.

7 Lei de Liberdade Econômica (lei13.874/2019).

8 BARROSO, Luís Roberto. "Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional". Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Revista dos Tribunais. 23 ed. 1998. Pág. 71.

Atualizado em: 27/4/2021 13:07

Relação de consumo em contrato de locação residencial intermediado por imobiliárias


Quando alguém procura um imóvel para alugar, geralmente, encontrará alguma oferta através de uma imobiliária, seja por procura direta àquela empresa, via sites de vendas conhecidos (Quinto Andar, Olx, Desenrola, Viva Real) ou pesquisando nas redondezas dos próprios imóveis.

Independente da forma buscada, é quase impossível que você consiga realizar a locação diretamente com o proprietário do imóvel, podendo negociar livremente as cláusulas do contrato e estabelecer o que fica melhor para ambos.

Há uma tendência de os proprietários contratarem as imobiliárias para realizarem a administração de seus imóveis.

Isso poupa os donos de lidarem com questões burocráticas e desgastantes, como confecção do contrato, cobrança de valores, ajuizamento de ações judiciais, realização de vistorias, etc. E como contrapartida financeira a essa prestação de serviço, as empresas cobram uma remuneração pequena, geralmente, de 10% do valor dos alugueis recebidos.

Em alguns casos, inclusive, as imobiliárias garantem o pagamento dos aluguéis, caso os locatários (inquilinos) não os paguem. O que é uma tremenda vantagem.

Ocorre, entretanto, que isso impossibilita uma maior negociação e flexibilidade, na hora de realizar a locação.

Essas empresas possuem uma política rígida em relação a eventuais negociações, exigem uma série de documentos e garantias antes de realizar a locação, algo que pode ser um entrave no ato de locar.

Via de regra, o entendimento unânime é de que não existe relação de consumo em contrato de locação, visto que se trata de um negócio civil, com legislação própria (Lei 8.245/91), de âmbito de direito privado, sem as características de uma relação de consumo (AgRg no AREsp n. 101.712/RS).

Todavia, a situação jurídica é diferente quando existe uma administradora que intermedeia a relação de locação, conforme se verá a seguir.

Antes de passarmos à análise da possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, nesse tipo de relação, precisamos entender melhor quem é cada parte em uma locação intermediada por uma imobiliária.

As partes em um contrato de administração imobiliária

O contrato de administração imobiliária, é um negócio realizado entre o proprietário do bem e a administradora/imobiliária com a finalidade, em geral, de efetuar a locação do imóvel a um terceiro.

Temos, portanto, a figurada da imobiliária/administradora, pessoa jurídica que irá realizar a intermediação do negócio entre o locatário e o locador. O proprietário do imóvel, que é o locador, e o terceiro, o locatário (inquilino).

Nessa situação, existem duas relações jurídicas distintas: uma entre o proprietário e a imobiliária; e outra entre a administradora e o locatário.

A justiça tem entendido, pelo menos em relação ao contrato de locação residencial, que há a aplicação do CDC, em ambas as relações, ou seja, entre o proprietário e a imobiliária e a imobiliária e o locatário.

Aplicação do CDC entre o proprietário e a administradora

Para que seja possível aplicar as regras previstas na Lei de nº 8.078/90 (CDC), é necessário que haja uma relação de consumo, ou seja, que haja a presença de um consumidor, um fornecedor e um produto/serviço que os una.

Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. , do CDC). Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (art. , do CDC).

A definição do que é produto e serviço é encontrada nos § 1º e 2º, do art. 3º, a saber:
§ 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Nessa situação específica, a relação entre o proprietário e a administradora é de consumo, onde esta última atua como mandatária do locador na gestão do imóvel e o locador é o destinatário fático e econômico do serviço prestado pela administradora.

Em algumas ocasiões, ainda, o proprietário do imóvel pode ser considerado parte vulnerável - técnica, jurídica, fática e/ou informacional – em relação à administradora, sobretudo por se tratar, usualmente, de um contrato de adesão.

O serviço oferecido pela administradora/imobiliária possui caráter profissional pois, além de, em geral, dispor, em relação ao locador, de superioridade no conhecimento das características da atividade que habitualmente exerce, é evidente a sua natureza econômica.

Ressalvadas circunstâncias especiais, sobressai a natureza jurídica de relação de consumo havida entre locador e administradora, atraindo, por conseguinte, a incidência do CDC.

O Superior Tribunal de Justiça, ao tratar desse assunto, decidiu dizendo existir a relação de consumo, veja-se:
RECURSO ESPECIAL. INTERESSE DE AGIR. AUSÊNCIA. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C INDENIZATÓRIA POR PERDAS E DANOS. CONTRATO DE ADMINISTRAÇÃO IMOBILIÁRIA. RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE LOCADOR E ADMINISTRADORA. INCIDÊNCIA DO CDC. PRAZO PRESCRICIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL. REGRA GERAL DO CÓDIGO CIVIL. JULGAMENTO: CPC/15.

1. Ação de rescisão contratual c/c indenizatória por perdas e danos ajuizada em 24/07/2017, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 11/09/2019 e atribuído ao gabinete em 30/10/2019.

2. O propósito recursal consiste em decidir sobre a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação jurídica estabelecida entre proprietária (locadora) e administradora de imóvel, bem como determinar o prazo prescricional incidente à espécie.

3. Ausente o interesse recursal, no que tange à violação dos arts. 667 e seguintes do CC/02, porquanto o Tribunal de origem, na linha dos argumentos da recorrente, reconheceu a falta de diligência da recorrida e o respectivo dever de indenizar, não tendo sido esta condenada ao integral ressarcimento porque decretada a prescrição de parte da pretensão deduzida por aquela.

4. Pelo contrato de administração imobiliária, o proprietário confia à administradora a gerência do imóvel visando, em geral, a locação do bem a terceiros, daí exsurgindo, portanto, duas relações jurídicas distintas: a primeira, de prestação de serviços, entre a administradora e o locador; e a segunda, de locação, entre o locador e o locatário, intermediada pela administradora.

5. A administradora atua como mandatária do locador na gestão do imóvel, inclusive - e especialmente - perante o locatário do bem, e, nessa condição, o locador, em regra, figura como destinatário final fático e econômico do serviço prestado pela administradora – como consumidor, portanto.

6. Em algumas situações, pode o locador se apresentar ainda como parte vulnerável - técnica, jurídica, fática e/ou informacional – em relação à administradora, sobretudo por se tratar, usualmente, de um contrato de adesão.

7. O serviço oferecido pela administradora possui caráter profissional pois, além de, em geral, dispor, em relação ao locador, de superioridade no conhecimento das características da atividade que habitualmente exerce, é evidente a sua natureza econômica.

8. Ressalvadas circunstâncias especiais, sobressai a natureza jurídica de relação de consumo havida entre locador e administradora, atraindo, por conseguinte, a incidência do CDC.

9. A Corte Especial do STJ, recentemente, decidiu que a expressão 'reparação civil', empregada no art. 206, § 3º, V, do CC/02, refere-se, unicamente, à responsabilidade civil aquiliana, afastando a aplicação da mencionada regra às hipóteses de responsabilidade civil contratual, porque se subsomem estas à regra geral do art. 205 do CC/02. 10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido em parte.” (STJ, 3ª Turma, REsp 1846331 / DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 13/03/2020).

Com a atração das normas consumeristas, vários benefícios jurídicos poderão ser obtidos pelo proprietário, visto que o CDC possui regras mais benéficas ao consumidor do que a legislação civil.

Aplicação do CDC entre o locatário e a administradora

Quanto à relação entre o locatário, quem alugou o imóvel, e a administradora, de igual modo, a Justiça tem entendido que também se trata de uma relação de consumo, onde deverá ser aplicada as normas do Código de Defesa do Consumidor. É importante ressaltar que estamos falando de uma locação residencial.

Inclusive, tais normas são de ordem pública, como estabelece o art. , da Lei de nº 8.078/90, devendo haver a sua aplicação de forma obrigatória, mesmo sem pedido das partes.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), ao julgar um processo que tinham como cerne a discussão sobre a possibilidade de aplicação do CDC a um processo que envolvia um locatário e uma intermediadora, pessoa jurídica, assim decidiu:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE INSTRUMENTO PARTICULAR. COMPROMISSO ARBITRAL. TUTELA DE URGÊNCIA. REQUISITOS DO ART. 300 DO CPC/2015. PROBABILIDADE DO DIREITO. QUESTÃO CONSUMERISTA. INTERMEDIAÇÃO DE PESSOA JURÍDICA NA RELAÇÃO LOCATÍCIA. INVOCAÇÃO DA CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. INTERESSE DO CONSUMIDOR. FUNDADO RECEIO DE DANO. POSSIBILIDADE DE PREJUÍZO DECORRENTE DA PROSSECUÇÃO DA RECLAMAÇÃO N. 134/2020. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O agravo de instrumento destina-se a verificar o acerto ou desacerto da decisão agravada, de modo que, em se tratando de decisão proferida em sede de antecipação de tutela, indispensável averiguar a presença dos requisitos do art. 300 do CPC/2015, quais sejam, a probabilidade do direito e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
2. Em se tratando de contrato de locação com intervenção de pessoa jurídica, a partir de quem o contrato foi assinado, deve-se reconhecer a incidência do CDC, haja vista a existência da relação de consumo reconhecida em negócios com esta configuração, motivo pelo qual, passando, a cláusula compromissória a se condicionar ao interesse consumerista, não pode ser invocada em favor do fornecedor do produto ou serviço.
3. No tocante ao segundo requisito, o mesmo ressai da possibilidade de prejuízo decorrente da prossecução do procedimento arbitral com a prolação da sentença arbitral e conseguinte cumprimento de sentença na pendência do feito em trâmite em primeiro grau, o que poderia lhe acarretar dano irreparável à míngua da possibilidade de um desate diverso do apontado no âmbito da decisão recorrida. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.

Desse modo, havendo a intermediação da locação, através de uma administradora que, geralmente, é uma imobiliária, haverá a incidência do Código de Defesa do Consumidor, com a atração de todas as suas regras.

Rafael Rocha Filho é advogado, especialista em Imóveis, Contratos e Dívidas, com atuação em demandas de pessoas e empresas em Empréstimos Bancários, Financiamentos Imobiliários, Processos de Execução, Execução Fiscal, Revisionais de Contratos, Ações de Indenização, Busca e Apreensão de Veículos e Leilões de Imóveis.
Fonte Artigos JusBrasil

Controvérsias acerca do contrato de locação por meio de plataformas digitais e os limites condominiais


Em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e confirmada pela 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.819.075, fora corroborado entendimento de que o condomínio residencial tem a liberalidade para proibir a locação através de plataformas digitais, no que se inclui o aplicativo Airbnb, dentre tantos, pois, entendeu-se que a locação pela referida plataforma, in casu, estaria configurando contrato de hospedagem e não de locação. Nesse sentido, decidiu-se que, havendo regramento na convenção do condomínio proibindo a locação do imóvel para fins comerciais, os proprietários condôminos devem respeitar o dispositivo. Há controvérsias sobre o tema, principalmente porque a questão se mostra recente e deverá ser analisada de acordo com o caso concreto.


Diante das novas tecnologias e modalidades de prestação de serviços advindas dos novos formatos de contratação, - que não raramente preveem a utilização das residências para trabalhos home office, concomitantemente com a possibilidade de as locações ocorrerem através de plataformas digitais -, têm se tornado cada vez mais comuns as divergências entre direito de propriedade e os limites aos direitos do condômino.

As controvérsias decorrem especialmente da hipótese de a locação do imóvel ter sido celebrada através das plataformas digitais, e mais do que isso, quando a sua utilização enseja uso diverso do fim previsto em lei, qual seja, da locação residencial do imóvel. Sob o viés da doutrina, quando o assunto versa sobre a locação de imóveis para o fim residencial, tem-se que a disposição do imóvel para tal finalidade, não possui nem de longe as características de eventualidade e transitoriedade, diferentemente da natureza das locações que ocorrem através das plataformas digitais, que têm por escopo a locação que permite apenas diárias, dentre a oferta de serviços de hospedagem, incluindo internet ilimitada, serviços de lavanderia e etc.

No REsp 1.819.075, ora em análise, fora constatado que a convenção de condomínio prevê expressamente que o uso das unidades deve se prestar à finalidade residencial, de modo que a locação decorrente da utilização de plataformas digitais, tais como Airbnb, estaria afrontando a convenção e a finalidade residencial do condomínio.

Imperioso destacar que, conforme se depreende daquilo que fora afirmado na decisão, não se pode considerar que as locações na modalidade digital consistiriam ou equivaleriam àquelas que tradicionalmente celebradas através de contratos de locação, ou que se compatibilizariam, eis que, se está diante de contrato de hospedagem, se distanciando, portanto, da locação para fins residenciais, configurando assim atividade comercial, proibida pelo condomínio residencial.

Para tanto, colaciona-se a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que originou o REsp 1.819.075:

APELAÇÃO CÍVEL. CONDOMÍNIO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. ABSTENÇÃO DE REALIZAR ATIVIDADE COMERCIAL DE HOSPEDAGEM NO CONDOMÍNIO. A ausência de vinculação entre os inquilinos, a reforma do apartamento no sentido criar novos quartos e acomodar mais pessoas, a alta rotatividade de pessoas e o fornecimento de serviços é suficiente para caracterizar contrato de hospedagem. No caso concreto, caracterizado o contrato de hospedagem, atividade comercial proibida pela convenção condominial, impõe-se a manutenção da sentença de procedência do pedido cominatório formulado pelo condomínio, ficando vedado aos réus exercerem o referido comércio. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível 70075939884, 19ª câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Marco Antonio Angelo, Julgado em 26/7/18).

(TJ/RS - AC: 70075939884 RS, relator: Marco Antonio Angelo, Data de Julgamento: 26/7/18, 19ª câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 2/8/18)

A respeito do tema, a Lei de locações (8.245/91), em seu artigo 48, dispõe que:

"Art. 48. Considera - se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.

Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram.

Em contrapartida, o doutrinador Silvio de Salvo Venosa refere-se ao contrato de locação por temporada nos seguintes termos:

Como existe um prazo determinado para essa modalidade de locação, noventa dias, há necessidade de contrato escrito. A locação verbal não pode reger essa situação, já que fica subordinada ao art. 47... Ademais, o parágrafo único do dispositivo se refere ao rol de imóveis e utensílios que devem integrar o contrato, o que reforça a necessidade do pacto por escrito.1

Já no que concerne ao contrato de hospedagem, aduz o autor que: "o contrato de hospedagem, atípico, se caracteriza pela exploração de um imóvel ou parte dele destinado a dar habitação temporária [...] o imóvel destinado deve ser hábil para a finalidade ou ter a correspondente autorização legal de funcionamento; deve dar aos ocupantes ou hospedes, além do uso das unidades predeterminadas, serviços tais como luz, telefone, camareira, água corrente, mobília, utensílios de toalete, roupa de cama, portaria e limpeza. Além desses serviços, os hotéis residenciais oferecem também cozinha equipada [...] Geralmente o preço nos contratos de hospedagem vence dia a dia, daí, portanto o nome "diárias" que se lhe dá. O pagamento também nessa hipótese pode ser periódico ou não. Nada impede a cobrança adiantada por todo o período."2

Ademais o contrato de hospedagem consiste na prestação de serviços do anfitrião, por exemplo. O que afastaria a relação locatícia, conforme doutrina da professora Maria Helena Diniz.3

Há que se considerar, por outro lado, que a Constituição Federal em seu art. 5ª caput e inciso XXII, artigo 19 da lei 4.591/644, bem como os artigos 1.228 e 1.335 do Código Civil5, garantem ao proprietário de um imóvel o direito de uso e gozo do bem, no que se inclui a possibilidade do exercício da faculdade da sua locação.

Nesta situação, entende-se que o exercício da locação não estaria ferindo o direito de propriedade. Todavia, quando o assunto se direciona à possibilidade de disposição do imóvel através de contrato de hospedagem, não restam dúvidas de que a referida modalidade diverge completamente da finalidade residencial, que se caracteriza pela habitualidade por parte dos locatários

Fato é, que o embate ultrapassa em muito aquilo que preconiza a lei e até mesmo o referido julgado, considerando que os limites condominiais podem, invariavelmente, se apresentar em manifesta colisão com o direito de propriedade, especialmente quando se tratar de imóvel em região litorânea, em cuja qual o turismo local está umbilicalmente relacionado à oferta de imóveis disponíveis, seja para locação ou hospedagem.

A despeito do entendimento exarado na decisão, se tratarmos de imóvel em cidades não litorâneas, os questionamentos permeiam, primeiramente, a alta rotatividade de pessoas que podem colocar em risco a segurança do condomínio e, segundamente, se a característica residencial não estaria se perdendo, pois, conforme a doutrina e a jurisprudência afirmam, o contrato de hospedagem estaria relacionado ao pagamento das diárias, conforme se constata a partir da análise daquilo que é objeto dos serviços oferecidos pelas plataformas digitais.

Entretanto, independentemente das elocubrações supra, certo que se revela de máxima importância dentro da perspectiva jurídica, que as disposições contidas na convenção de condomínio devem prevalecer nesses casos, pois, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, considerando estar-se diante de modalidade de contrato de hospedagem atípica, se torna premente que os condôminos se atentem à destinação das unidades, a fim de que sejam evitadas controvérsias sobre o tema e eventuais litígios, que sobrecarregam cada vez o Poder Judiciário.

Nesse sentido, vale trazer o entendimento do ministro Raul Araújo:

"Tem-se um contrato atípico de hospedagem, expressando uma nova modalidade, singela e inovadora, de hospedagem de pessoas sem vínculo entre si, em ambientes físicos de padrão residencial e de precário fracionamento para utilização privativa, de limitado conforto, exercida sem inerente profissionalismo por proprietário ou possuidor do imóvel, sendo a atividade comumente anunciada e contratada por meio de plataformas digitais variadas". [6]

Portanto, diante da análise do julgado, bem como das disposições legais que regem a matéria, indispensável observar o que dispõe a convenção de condomínio, bem como a modalidade contratual a ser celebrada, de modo a evitar a configuração do contrato atípico de hospedagem, mormente àqueles que buscam destinar o imóvel à locação. O cuidado deve ainda ser redobrado quando se pretende adquirir um imóvel com a finalidade de locação através de plataforma digital, quando a locação ocorrerá por diária, o que, muito provavelmente, será proibido pela convenção de condomínio.
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1 VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 227

2 VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 18 e 19.

3 DINIZ, Maria Helena, Tratado teórico e prático dos contratos v.3, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 55

4 Brasil. Lei nº 4.591 de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e incorporações imobiliárias. Disponível clicando aqui Acesso em: 20 de abril de 2021.

5 Brasil. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível clicando aqui Acesso em: 20 de abril de 2021.

6 Condomínios residenciais podem impedir uso de imóveis para locação pelo Airbnb, decide Quarta Turma. Disponível clicando aqui Acesso em: 21/4/21.

Atualizado em: 27/4/2021 12:30

Debora Cristina de Castro da Rocha - Advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado nas áreas do Direito Imobiliário e Urbanístico, Mestre em Direito Empresarial e Cidadania e Professora.
Camila Bertapelli Pinheiro - Advogada no escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso.
Edilson Santos da Rocha - Assistente jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Acadêmico de Direito pela Faculdades da Industria - FIEP.
Fonte: Migalhas de Peso